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Aniquilação: a vida, o universo e tudo o mais

Aniquilação, trabalho mais recente do diretor e roteirista Alex Garland, responsável por Ex Machina — filme pelo qual levou o Oscar de Melhor Roteiro Original, em 2016 —, chegou à Netflix na última semana. Inspirado no best-seller homônimo escrito por Jeff VanderMeer, o filme, uma mistura de ficção científica com leves pitadas de terror, foca na história da bióloga e ex-soldado Lena (Natalie Portman), e a misteriosa Área X, local contaminado por um estranho fenômeno alienígena. Com árvores em formato de seres humanos, um crocodilo gigante e albino que possui presas de tubarão, além de cervos com flores no lugar dos chifres, Aniquilação é uma história que reúne o fantástico e o improvável à altas doses de questionamentos sobre a vida e o universo.

Atenção: este texto contém spoilers!

O filme tem início com Lena sendo interrogada em uma sala de quarentena. Lomax (Benedict Wong), responsável por conduzir as perguntas, veste um traje completo a prova de contaminação química enquanto outras pessoas, nos mesmos trajes, os observam pelas divisórias de vidro. Lena é questionada a respeito do que comeu durante o tempo que passou na Área X, visto que só havia ração suficiente para duas semanas; a bióloga, no entanto, não se lembra sequer de ter comido e fica realmente surpresa ao saber que passou muito mais tempo do que o esperado na expedição: o que ela sentiu como se tivessem sido dias foram, na verdade, meses.

Antes de nos dizer sobre o que se trata todo o questionamento, Aniquilação volta à vida de Lena anterior à expedição, reconstruindo, assim, o seu passado. Após sair do exército norte-americano, a bióloga tornou-se professora de uma universidade de medicina e sua especialidade, o estudo de células e suas progressões genéticas, é o assunto da aula que acompanhamos por um breve momento: “The structure of everything that lives and everything that dies” (“A estrutura de tudo que vive e tudo que morre”, em tradução livre). Não demora muito para descobrirmos que Lena vive o luto há quase um ano devido ao misterioso desaparecimento de seu marido, Kane (Oscar Isaac), durante uma missão junto ao exército. A bióloga parece ter decidido seguir em frente com sua vida apesar da perda, e é justamente quando Kane retorna misteriosamente. Em um primeiro momento, Lena não acredita no que está vendo, mas, no instante seguinte, cai em prantos nos braços do marido. Kane, por sua vez, não reage exatamente da maneira esperada e parece distante e sem emoções. Assustada, a bióloga começa a questionar sobre o período em que ele esteve desaparecido, o que fez e o motivo do sigilo da missão da qual participou, mas Kane não parece estar sintonizado com a angústia da esposa.

Enquanto tenta compreender o que aconteceu ao marido durante quase um ano de ausência, Kane começa a expelir sangue pela boca e é levado às pressas para o hospital, Lena desesperada ao lado. A ambulância em que está o casal é interceptada e ambos são retirados a força do veículo por uma equipe fortemente armada. Lena tenta resistir, grita e chama por socorro, mas é colocada fora de combate por meio de um anestésico que aplicam à força em seu pescoço. Quando abre os olhos novamente, ela já não está na ambulância, mas nas dependências do Comando Sul, uma organização que estuda a Área X, a poucos metros do local onde o fenômeno alienígena segue ampliando seu poder e raio de interferência. É no laboratório que Lena encontra a Dra. Ventress (Jennifer Jason Leigh), responsável pelas equipes despachadas para estudar a misteriosa Área X, e é por meio da conversa com a psicóloga que ela descobre o estado delicado em que seu marido, o único sobrevivente da última expedição fracassada, está: respirando com a ajuda de aparelhos enquanto uma infecção desconhecida toma conta de seu corpo.

A expedição — apenas mais uma de uma série de missões organizadas nos últimos três anos — tinha como objetivo recolher informações a respeito do fenômeno, batizado pelos cientistas de “Brilho”, que tomou parte do litoral dos Estados Unidos. Todas as equipes enviadas para investigar o caso desapareceram, no entanto, sendo Kane o único a retornar. Embora o “Brilho” estivesse sob estudo por alguns anos, a Dra. Ventress é categórica ao afirmar que ela e sua equipe sabem pouco sobre a anomalia além de ser ela a responsável pelas modificações ao redor da área em que se instalou. É a Dra. Ventress, também, quem diz a Lena que uma nova expedição sairá da base do Comando Sul em poucos dias com o objetivo de, mais uma vez, tentar assimilar os estranhos fenômenos que tomam parte no litoral. Lena acredita que poderá ser útil no processo e que encontrará uma maneira de salvar Kane e, para isso, se voluntaria a participar da jornada ao núcleo do “Brilho” em busca de respostas.

A partir de então, acompanhamos a equipe — inteiramente feminina — se embrenhar pela mata onde fica o coração da anomalia alienígena. A Dra. Ventress é a líder da nova expedição, e com ela, além de Lena, estão a paramédica Anya Thorensen (Gina Rodriguez), a física Josie Radeke (Tessa Thompson) e a geologista Cass Sheppard (Tuva Novotny). Munido com armas, inteligência e coragem, o quinteto procura elucidar o mistério que levou muitas vidas antes delas, encontrando um ambiente ao mesmo tempo hostil e belo. Os primeiros passos dentro da Área X revelam flores multicoloridas e de espécies aparentemente diferentes que nascem do mesmo caule, estranhas formações rochosas que parecem arte, e uma energia cósmica capaz de deixá-las alheias ao tempo e espaço. Aniquilação consegue passar todas essas sensações por meio de cenários trabalhados em cores fortes, o belo que pode ser tão diferente que chega a assustar.

Não demora para que a expedição tome um rumo dramático e cada novo passo dado para o interior da Área X passe a ser permeado por novos mistérios e coisas estranhas à espreita nas sombras. As cinco mulheres descobrem aos poucos o que o “Brilho” tem feito naquela porção de terra que ocupa e quanto mais se aprofundam no desconhecido, mais desejam entender o que realmente está acontecendo — ainda que a jornada fique cada vez mais perigosa. O roteiro de Garland consegue reunir o grotesco ao surreal, contando a história de maneira não linear, saltando de cenas da expedição para flashbacks entre Lena e o marido, e então para a sala de vidro da primeira cena, posterior à expedição. As idas e vindas do roteiro, além das mudanças do tom das cenas, são responsáveis por manter o telespectador conectado à história, tentando encaixar as peças do quebra-cabeças que é o “Brilho” da mesma forma que os personagens. O visual do filme emula com eficiência a dicotomia entre pesadelo e sonho causada pela anomalia, uma força que pode entregar belezas inimagináveis assim como horrores sem fim em suas paisagens surreais e coloridas.

Embora a equipe principal do filme seja formada por cinco mulheres, todas tão diferentes entre si, o desenvolvimento que lhes é dispensado não deixa de ser um problema, ainda que Aniquilação desenvolva toda a trama ao redor delas. Das cinco mulheres que participam da expedição, apenas Lena, a protagonista, tem background e passado definidos, revisitados ao longo do filme com o intuito de explicar os motivos que a levaram a se voluntariar para a missão. Enquanto isso, as outras integrantes da equipe não passam de nomes, profissões e, quando muito, pequenos detalhes do passado, trazidos à tona por Sheppard quando ela e Lena navegam em uma canoa por um rio da Área X. Se temos conhecimento sobre as motivações de Lena, e até sobre um caso extraconjugal com um colega professor, por outro lado, o que sabemos sobre Ventress, Anya, Josie e Cass é apenas um vislumbre daquilo que elas realmente são. Não há problema no roteiro em aprofundar a história de Lena, visto que ela é, de fato, a protagonista, mas isso não significa que suas coadjuvantes precisem ser apenas um delineio, mulheres que até achamos interessantes, mas cujo desenvolvimento não vai além, que jamais alcançam o potencial que poderiam ter.

Aniquilação parece se valer da diversidade — seja de gênero, seja de etnia — apenas para cumprir uma meta, visto que a construção das personagens, à exceção de Lena, não passa da superfície: elas são totalmente diferentes entre si, com traços de personalidade distintos e etnias que fogem do padrão da mulher branca de olhos claros típica da produção cinematográfica norte-americana, mas ainda são personagens rasas, cujas motivações dificilmente vêm à tona, como é o caso de Ventress, ou que rodeiam a protagonista, mas não recebem tanto destaque, como Anya, Josie e Cass; uma falha considerável, visto que as atrizes que dão vida às personagens são excelentes e tanto poderiam quanto deveriam ser mais bem aproveitadas pela trama. Em Anya, Gina Rodriguez imprime força e personalidade com facilidade, enquanto a Josie de Tessa Thompson demonstra doçura e fragilidade, seja com olhares baixos a suavidade da voz, sem jamais mascarar a inteligência da personagem.

Não há dúvidas de que Aniquilação é o show da Natalie Portman. A atriz, sempre impecável em seus trabalhos e detentora do Oscar de Melhor Atriz de 2010, resultado de seu papel como a bailarina Nina, de Cisne Negro, constrói uma Lena forte e vulnerável em igual medida. A professora, a bióloga, a soldado, a esposa e a cientista encontram espaços iguais na interpretação de Natalie, e mostram que Lena pode não ser uma personagem fácil ou simples, mas é verossímil, uma mulher em conflito com o passado e que cometeu erros, mas que não deixa de amar ou se dedicar à busca da cura para seu marido. Mesmo como uma mulher apaixonada que se joga praticamente às cegas em uma missão perigosa para salvar o amado, Lena não é reduzida ao estereótipo em nenhum momento: sua inteligência é determinante para o compreendimento da anomalia que está alterando a biologia da vida na Área X assim como sua destreza enquanto soldado é responsável por salvar as vidas das companheiras em diversos momentos do filme.

É uma pena, no entanto, que Aniquilação tenha feito sua estreia diretamente no serviço de streaming em vários países — apenas algumas salas de cinema dos Estados Unidos, do Canadá e da China poderão exibir o filme. Embora a Netflix tenha transformado a maneira de assistir e consumir cultura pop, fazendo com que o usuário possa assistir o que quiser, quando quiser, no conforto do lar, um filme como Aniquilação perde parte de sua magia e encanto fora das grandes telas do cinema. Todo o visual da misteriosa Área X, com as mutações que explodem em cores e formas, não parece tão marcante visto da tela de um notebook ou televisor. Os efeitos sonoros, tão presentes e significativos na meia hora final do filme, também perdem um pouco de seu encantamento — a imersão que poderia ser proporcionada em uma sala de cinema faria, aqui, toda a diferença. De acordo com uma reportagem do The Guardian, a recepção do filme aos testes de exibição não foi das melhores, o que levou o estúdio responsável por sua produção, a Paramount, a buscar outros meios de exibi-lo — meios que, a rigor, deveriam custar menos aos cofres do estúdio. Na reportagem, levanta-se a questão do filme ser muito “intelectual” e “difícil” para o telespectador médio, o que comprometeria sua arrecadação nas salas de cinema.

Mas Aniquilação não é um filme “difícil”, como a Paramount parece acreditar. Ainda que explore os fundamentos da ficção científica, o longa funciona muito mais como uma alegoria a respeito de como mudanças são difíceis, e como nós, enquanto espécie dominante, sentimos medo do desconhecido, do que qualquer outra coisa. Em um momento do filme, Lena diz que estar na Área X não era sempre viver um pesadelo, pois as mutações podem ser belas se encaradas com outros olhos — olhos que não enxergassem a intervenção como algo ruim, apenas como algo diferente. O “Brilho” não está destruindo a vida na Área X, mas modificando-a e construindo algo novo no lugar, criando novos padrões e reorganizando células de maneira única. É possível levantar questões a respeito dos limites da criação e se o “Brilho” quer destruir a humanidade ou simplesmente se juntar a nós; há a chance de que um novo e incrível processo evolutivo possa tomar forma por meio das mutações, mas nunca saberemos se isso é possível se o receio nos afastar daquilo que é desconhecido.

O medo da mudança se reflete nas ações de cada uma das cientistas enviadas na expedição. Enquanto Anya perde a cabeça ao sentir-se assustada com o ambiente, Josie transforma-se em algo belo ao decidir que não quer lutar contra a atração e a mutação que o “Brilho” tem feito em seu corpo. A Dra. Ventress, por sua vez, havia decidido não retornar da Área X muito antes de entrar em seu perímetro e assim o “Brilho” a consome, quase atendendo o seu desejo mais sombrio. Lena, enquanto isso, transforma-se na sobrevivente da expedição pois, nas palavras da própria, era a única cujo objetivo era retornar — senão apenas para manter-se viva, também para fazer o possível por Kane. Aniquilação basicamente diz que, às vezes, aceitar a mudança, por maior e mais assustadora que seja, pode ser a melhor saída. Isso fica ainda mais evidente ao final do filme, quando Lena e o humanoide espelham as ações um do outro em uma dança inquietante em que dois organismos totalmente diferentes buscam se entender.

Não espere respostas prontas em Aniquilação, visto que o filme não se prenderá a questões como de onde veio o “Brilho”, o que ele realmente é ou que deseja no planeta Terra. O roteiro de Alex Garland deixará grande parte dessas dúvidas em aberto, assim como o final. Partindo de uma premissa básica — a jornada de um grupo em direção ao desconhecido —, Aniquilação constrói uma história empolgante com uma protagonista interessante que não se deixa abater pelas adversidades, mas persiste e resiste à elas. O filme investe no protagonismo da Lena de Natalie Portman e a coloca como alicerce de sua trama navegando pelo fantástico e o medonho, enquanto retomamos uma frase dita pela personagem ainda no início do filme, durante sua aula a respeito das células: “The structure of everything that lives and everything that dies”. O enigmático final de Aniquilação dá a entender exatamente isso, que a estrutura de tudo o que vive precisa morrer para o novo florescer.

“It’s destroying everything.
It’s not destroying… It’s making something new.”

“Está destruindo tudo.
Não está destruindo… Está criando algo novo.”

2 comentários

  1. Eu gostei muito mais do filme do que do livro, que só não voou pela janela porque eu estava lendo no Kindle e não posso comprar outro. E muita gente veio me dizer “não, porque o new weird é assim e você…” Não! New weird não é o culpado, é que o livro é ruim mesmo, mal escrito, vazio. O filme conseguiu preencher os buracos que o autor deixou no livro e entregou uma história que, se não é perfeita, ao menos tem começo, meio e fim. Tô até pensando duas vezes se devo escrever sobre o filme, já que me criticaram até por causa da resenha do livro.

    1. Oi Sybylla!
      Normalmente eu resisto e persisto na leitura até o fim, mesmo que o livro não seja maravilhoso, mas abandonei Aniquilação antes de chegar a metade. A narrativa é arrastada e, concordo, o livro é mal escrito. Não tenho como comparar os dois, visto que não concluí a leitura, mas o filme foi uma ótima surpresa. Por mais surreal que a trama possa parecer, a princípio, ela é “redondinha”. E, olha, se você se animar em escrever sobre o filme, vou adorar ler e saber sua visão da história!

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