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The Batman: para além de vingança, esperança

Se alguém me perguntasse, eu não diria que precisávamos de uma nova encarnação do Batman nos cinemas — mas ainda bem que não sou eu quem decide esse tipo de coisa. Embora o Batman seja um dos meus personagens favoritos dos quadrinhos (com direito a bonequinhos e camisetas com a logo do morcego), me parece que já temos versões suas o suficiente nos cinemas. Quando, em meados de 2020, Robert Pattinson foi anunciado como o novo detentor do manto do Homem-Morcego, minhas atenções foram conquistadas e questões foram levantadas: como o ator daria nova vida ao vigilante de Gotham e ao milionário Bruce Wayne, criando algo diferente do que já havíamos visto mais recentemente com Christian Bale na trilogia de Christopher Nolan e Ben Affleck do DCU?

Desde que conquistou corações ao interpretar o vampiro Edward Cullen em Crepúsculo (2008) que Robert Pattinson tem construído uma carreira brilhante. O ator fez escolhas interessantes para os próximos papéis após finalizada a saga inspirada nos livros de Stephenie Meyer, o que só mostrou sua versatilidade na profissão: de Água para Elefantes (2011) até Bel Ami: O Sedutor (2012), de Cosmópolis (2012) até O Farol (2019), Pattinson mostrou que sabe muito bem do seu ofício e navega com tranquilidade entre diferentes gêneros cinematográficos. Ser escalado para The Batman, de Matt Reeves, é só mais um degrau em uma jornada que o alçaria ainda mais ao estrelato. Entre Edward Cullen e Bruce Wayne há mais semelhanças do que se possa imaginar — e Robert Pattinson entrega ambos de maneira excelente.

The Batman, o filme de 2022, consegue trazer uma nova luz para o personagem, devolvendo-o às raízes de detetive que acompanhamos nos quadrinhos e produções animadas. Aqui, Batman não tem todo o arsenal militar que vimos em seus últimos filmes (ainda que pudesse ter, se quisesse), e é muito mais observador e dedutivo do que suas versões anteriores. Matt Reeves apontou em entrevista ao MovieMaker que a primeira aparição de Batman nos quadrinhos foi justamente na Detective Comics #27, de 1939: Bob Kane e Bill Finger, as mentes por trás da criação, apresentaram um personagem com um quê de figura noir e em consonância com os demais detetives dos romances, quadrinhos e filmes da época — e, não à toa, o personagem eventualmente começou a ser descrito como “o maior detetive do mundo”. E é essa a essência que Matt Reeves resgata em seu roteiro, co-escrito com Peter Craig, mostrando um protagonista muito mais atento aos pequenos detalhes e quebra-cabeças do que em pancadaria e perseguições — ainda que tudo isso, é claro, também esteja presente no filme de quase três horas de duração.

The Batman

Em The Batman, Bruce Wayne ainda é jovem e só assumiu o manto do morcego há meros dois anos. Ele anda por Gotham em meio às sombras, atento ao sinal que brilha no céu quando há algo acontecendo na cidade. Jovem e melancólico, dá até para dizer que Bruce é ligeiramente desajeitado quando em público, parecendo muito mais à vontade e confortável por trás da máscara do morcego, com os olhos pintados de preto, e combatendo o crime, do que circulando pela alta sociedade de Gotham. Sua melancolia é resultado do trauma que o assombra desde criança, quando perdeu os pais, e a difícil cruzada pessoal que definiu como prioridade: proteger Gotham mesmo que às custas de sua própria vida. Bruce Wayne rejeita tudo o que é pessoal e que requer vínculos, relacionando-se de maneira inábil com Alfred (Andy Serkis), que o criou, e o tenente da polícia de Gotham, James Gordon (Jeffrey Wright).

Gotham nunca foi uma cidade modelo, mas as coisas começam a piorar quando figuras políticas importantes são assassinadas de maneiras tétricas com pistas sendo deixadas em bilhetes endereçados ao Batman. Charada (Paul Dano), o serial killer sádico por trás de todas as cenas e jogos macabros, força Batman a iniciar uma caçada que o levará para os recônditos do crime na cidade, investigando a corrupção oculta a olhos vistos. Tal investigação também fará com que Bruce remexa no passado da família, descobrindo esqueletos nos armários dos Wayne e dos Arkham, fazendo com que ele questione até que ponto vai o envolvimento de seus pais no mundo das propinas e dos crimes que existem nas sombras de Gotham.

Ainda que, de maneira geral, eu não ache que filmes precisem ter quase três horas de duração, a trama conduzida por Reeves e Craig desliza pelos minutos quase sem se fazer sentir. O enredo que se desenrola com as investigações de Bruce, tentando rastrear o serial killer antes que uma nova vítima surja, evoca os melhores filmes do gênero e o tempo de filme é até plausível, levando-se em consideração como a trama se sobrepõe e se reinventa a cada momento, há sempre alguma coisa acontecendo, uma nova pista, uma nova questão. É possível perceber como Matt Reeves bebeu da fonte de produções como Seven (1995) e Zodíaco (2007) para se inspirar, imprimindo um tom de urgência na investigação que precisa parar o criminoso antes que mais pessoas caiam em sua mira. E é acompanhando Batman e sua investigação que passeamos por uma Gotham cada vez mais decadente e que atua como um personagem à parte no filme — ela é enorme, urbana, escura, perigosa e barulhenta, mas também é a cidade que Bruce decidiu proteger às custas de si mesmo. Matt Reeves, inclusive, é muito bom em nos fazer ver os abismos que se perpetuam em Gotham e como a corrupção corrói todas as camadas da sociedade, para surpresa de um idôneo Gordon que se vê abismado com o que acontece dentro da própria polícia.

The Batman

É nessa corrida desenfreada para rastrear o Charada que vemos Batman ser detetive, seguindo pistas, fazendo conexões e interrogando personagens que o levam a uma próxima etapa em sua jornada. O mistério que permeia The Batman não é muito complexo e imprevisível, mas é desenhado peça por peça para fazer com que a audiência explore ao lado do protagonista uma Gotham carcomida pelo caos. Dessa forma, conhecemos outras figuras emblemáticas das histórias do Homem-Morcego, tais como Pinguim (Colin Farrell), Carmine Falcone (John Turturro) e, claro, Selina Kyle (Zoë Kravitz). Mesmo que o filme seja indubitavelmente do Batman de Robert Pattinson, é indiscutível que todo o elenco se destaca em seus papéis. Colin Farrell, irreconhecível como Pinguim, é o mais caricato dos personagens, mas isso casa de maneira perfeita com a personalidade patética de um homem que se tem em alta conta, mas não passa de um paspalho. A Selina Kyle de Zoë Kravitz, enquanto isso, é um quebra-cabeça que intriga Bruce desde o primeiro momento em que seus caminhos se cruzam.

Sendo uma das poucas personagens femininas do filme — há, além dela, somente a candidata à prefeitura de Gotham, Bella Reál (Jayme Lawson), e Annika (Hana Hrzic), amiga de Selina —, é importante que o filme tenha considerado um tempo para que a audiência pudesse perceber e entender essa nova versão da Mulher-Gato. A personagem sempre atuou como uma contraparte do Batman, alguém que se parece com ele ao mesmo tempo que possui uma história pregressa completamente diferente e o faz encarar seus privilégios por outro ângulo. Aqui, Selina trabalha em um clube e se envolve na investigação de Bruce quando precisa encontrar Annika, mas o que vemos na superfície é somente aquilo que ela decide nos mostrar. A Selina de Zoë Kravitz usa, sim, de sua sensualidade, mas ela não é reduzida somente a isso. Quando parte em busca de sua amiga ou decide se aliar ao Batman para descobrir o que está acontecendo em Gotham, vemos como a personagem é fiel à sua essência, corajosa e determinada a ir até o fim quando decide alguma coisa. Selina é essencial à trama não somente por seu papel ao lado de Bruce, mas por ser um espelho: mesmo que pensem de maneiras semelhantes, o caminho de Selina sempre foi mais difícil. É um mundo de homens, afinal.

Paul Dano também se sai muito bem ao interpretar o lunático Charada. Ele e Bruce podem até ser descritos como duas faces de uma mesma moeda, mas Charada utiliza de sua inteligência e trauma para fazer sua justiça de maneira torta e doentia. Dano aparece em boa parte das cenas usando uma máscara, mas sua linguagem corporal e discurso inflamado ecoam os gritos de qualquer incel que se refugia na internet para destilar ódio — o que não deixa de ser perigoso. O Alfred de Andy Serkis também não tem muito tempo em cena, mas o pouco em que aparece já é capaz de nos indicar com maestria a essência de seu personagem e que tipo de relacionamento ele e Bruce construíram ao longo dos anos. A posição em que Alfred se encontrou, com Bruce órfão, não foi fácil, mas ambos conseguiram chegar a um certo conforto em uma cena em que Serkis e Pattinson atuam de maneira marcante. Turturro incorpora um Carmine Falcone astuto e que tem anos de experiência ao navegar em meio às corrupções de Gotham, conseguindo, por algum tempo, levar Bruce para a direção errada, manipulando sua dor e as cicatrizes do passado ao seu bel prazer.

The Batman

A perda dos pais marcou Bruce de forma permanente. Sim, voltamos a esse ponto da história de origem do personagem, mas dessa vez, pelo menos, não vemos nenhum colar de pérolas arrebentado em um beco escuro. Aqui a questão é muito mais com relação ao dano psicológico que o assassinato dos pais causou em Bruce, transformando-o em alguém trágico e quebrado que não consegue processar o trauma, do que perder tempo recontando uma história que já está presente no imaginário popular. Quando assume o manto do Batman, Bruce diz que “o medo é uma arma poderosa”, mas quando a máscara cai e só restam os olhos pintados de preto, vemos que de Bruce, em si, só restou uma casca. Ele está constantemente atormentado por algo que não pode mudar e, portanto, foca toda a sua energia em resgatar uma cidade doente, completamente obcecado com a cruzada que colocou diante de si. Robert Pattinson, inclusive, é excelente em demonstrar as dores e tragédias desse Batman, de quem só vemos os olhos por boa parte do filme. Nos seus rompantes, ao confrontar Charada, aos sentimentos confusos que experimenta quando se encontra com Selina, tudo é transmitido para a audiência apenas por meio de olhares. A sensação de claustrofobia é constante, e Bruce/Batman parece sempre estar a um passo de jogar tudo para o alto e abraçar de vez a escuridão que mora dentro dele.

Mas, no final do dia, é isso o que o diferencia de seus vilões. Enquanto Charada, por exemplo, decide que o melhor a fazer após uma vida de provações é abraçar a loucura e instar incels a cometer crimes de ódio em fóruns obscuros na internet, Bruce ainda luta pela esperança de fazer com que Gotham renasça, mesmo que a suas próprias custas. Esse Batman não é uma figura infalível: ele cai, se machuca, levanta, o que só mostra sua humanidade; ele sente confusão, desesperança. Há um homem por baixo da máscara, alguém que briga diariamente para fazer o que se propõe, ainda que, na maior parte do tempo, tudo pareça em vão. Uma das cenas mais bonitas no filme acontece nos instantes finais e mostra como o vigilante se torna um símbolo para Gotham, algo que é tão humano quanto possível. É de encher os olhos não apenas pela beleza da cena em si, mas para o que ela significa na trama como um todo.

Essa encarnação do Batman talvez seja a que decide tomar mais tempo para revelar o psicológico do personagem, mostrando as cicatrizes de uma vida levada ao lado da dor e do luto. As cicatrizes que Bruce carrega se refletem em todas as suas ações, no relacionamento com Alfred, na maneira como decide combater o crime em Gotham, ou como não é capaz de deixar a cidade ao lado de Selina. A corrupção que assola Gotham é apenas a ponta do iceberg — e um dos aspectos mais importantes de The Batman. A cidade está doente e Bruce, ainda preso no trauma de se ver órfão aos dez anos de idade, procura encontrar um significado para tudo o que aconteceu. Curar Gotham é o significado que ele está buscando, uma maneira de tentar reverter o que aconteceu quando não tinha poder nenhum nas mãos. E assim o filme se desenrola em passagens que são quase de terror, mas que também são um thriller e que são ação; e, ao mesmo tempo, uma trama de investigação e uma história de detetives. A figura do Batman é reinventada por Matt Reeves quando o cineasta reúne todos esses gêneros em um único pacote.

The Batman

A direção de Reeves é ótima tanto nos momentos de introspecção dos personagens quanto nas grandiosas cenas de ação. Elas ocorrem de maneira direita, sem muitas firulas e, mesmo na escuridão de Gotham, nós conseguimos acompanhar todos os momentos e todas as lutas que se desenrolam. A perseguição de Batmóvel é uma das cenas mais empolgantes de The Batman, com suas luzes e explosões tomando toda a tela. Gosto especialmente de uma cena em que apenas os disparos das armas servem de luz no momento da luta, em uma situação que é sufocante e empolgante na mesma medida. As cores do filme, inclusive, se movem em camadas de pretos, dourados e vermelhos, marcando a identidade visual de The Batman enquanto o destaca dos demais.

A trilha sonora de Michael Giacchino — responsável por OST que vão de Rogue One: Uma História de Star Wars, a nova trilogia do Homem-Aranha e Lost — é uma beleza à parte. O compositor criou peças que casam perfeitamente com as cenas e seus personagens, desde o tema mais obscuro e melancólico de Bruce Wayne até a explosão soturna que acompanha Batman. A trilha sonora usa uma base musical que se repete e se reinventa, ficando lenta e baixa em alguns momentos, explosiva e intensa em outros. “Catwoman”, em contrapartida, é quase melancólica e evoca a atmosfera noir que o filme se propõe a ter. “Can’t Fight City Halloween”, que abre o filme e a OST em si, indica algo sinistro e aterrorizante a caminho, marca o tom de tudo o que veremos nas próximas três horas. Posso soar ligeiramente emocionada aqui, mas “Sonata in Darkness”, que encerra a trilha sonora, é uma das composições mais bonitas em piano que já ouvi para um filme dito de herói, e Michael Giacchino tem toda a culpa aqui. São doze minutos em que o compositor usa o piano para navegar entre os temas de Batman e Bruce Wayne, incorporando as melodias de “Catwoman” para um fechamento capaz de soar até mesmo esperançoso.

The Batman é um filme de herói que não se prende aos moldes que fizeram sucesso nos últimos anos. Matt Reeves cria uma história interessante, capaz de fazer com que a audiência sente por três horas no cinema e ainda peça por mais — eu sei, fã é uma coisa maluca mesmo. Mas o fato é que me senti confortável acompanhando todos aqueles personagens, personagens de que já gostava, em outra roupagem e narrativa, e veria ainda mais sobre eles. Robert Pattinson, fazendo com que os “haters gonna hate”, incorporou com maestria um Bruce Wayne quebrado e machucado ao mesmo tempo em que foi capaz de imprimir uma presença sombria impressionante enquanto Batman. Sua figura mascarada assombra Gotham, surgindo quando menos esperado, se envolvendo em investigações e retornando às origens dos quadrinhos, por assim dizer. Os demais personagens que orbitam ao seu redor apenas fazem com que The Batman cresça em qualidade, um início promissor para uma nova série de filmes do Homem-Morcego nos cinemas. Se no início do filme o Batman se vale do medo e se autodenomina “A Vingança” para fazer com que Gotham mude, ao final ele compreende que é melhor ser outra coisa: a esperança.

The Batman recebeu 3 indicações ao Oscar, nas categorias de: Melhores Efeitos Visuais, Melhor Som e Melhor Cabelo e Maquiagem. 


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