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Venom: um ponto fora da curva, mas nem tanto

Antes de se tornar o protagonista de seu próprio filme, Venom já havia feito as vezes de vilão na franquia de seu colega mais famoso, o Homem-Aranha, em uma desventurada incursão nos cinemas. À época de seu lançamento, Homem-Aranha 3 foi um curioso sucesso de público e crítica, reiterado por uma arrecadação notável de bilheteria, cujo faturamento chegou a alcançar a marca de 890 milhões de dólares, mais de 600 milhões do custo total de produção. Seus problemas, contudo, não demorariam a aparecer e, somados ao crescimento e avanços tecnológicos dentro do gênero, o filme logo passou a ser visto por uma ótica menos lisonjeira, que evidenciaria seus muitos defeitos em detrimento de algumas notórias qualidades.

Incluso no roteiro por insistência do produtor Avi Arad, também responsável por títulos como Homem de Ferro e O Incrível Hulk, Venom seria o personagem que mais sofreria as consequências de um projeto mal acabado. Desde sua chegada à Terra até seu inevitável desfecho, cada um de seus passos foram baseados na força de coincidências e arranjos pouco inspirados que, por fim, o transformaram em uma sombra (uma sombra bastante caricata e por vezes infantil) do vilão que efetivamente fora idealizado para ser. De fato, até o próprio Sam Raimi, diretor da trilogia, viria a reconhecer as falhas e incoerências do projeto, razões que também o motivaram a abandoná-lo, cancelando a possibilidade de uma nova sequência.

Mas a trilogia havia sido, de fato, um sucesso, e ele não se repetiria com tanta facilidade. Foram necessários alguns anos para que a Sony recuperasse o fôlego e, ainda assim, somente em 2017, com a estreia de Homem-Aranha: De Volta Ao Lar — em uma parceria ainda inédita com a Marvel Studios — é que ele se tornaria, mais uma vez, palpável. A boa recepção, por sua vez, impulsionaria a produção de novos títulos pelo estúdio; todos, inevitavelmente, ligados ao intitulado Aranhaverso, dos quais é detentor dos direitos (o que pode parecer pouco, mas, na realidade, inclui cerca de 900 personagens).

É importante ter isso em mente ao falar sobre Venom, que é, antes de mais nada, um produto de seu próprio tempo; um filme que talvez não existisse em um cenário diferente, e é preciso entendê-lo como tal. Em 2018, o personagem retorna com uma história diferente, em uma cidade diferente, e uma dupla responsabilidade: iniciar uma nova franquia e abrir espaço para que novos personagens possam fazer o mesmo, além de redimir-se diante de um público ainda cético. Em partes, ambos os objetivos são alcançados: é verdade que Venom está mais assustador, que Tom Hardy faz um excelente trabalho, e que a relação entre humano e simbionte é tão absurda quanto interessante. Mas é também uma verdade incontestável que não há nada de muito novo ali. Em suas quase duas horas de duração, Venom dá continuidade ao padrão já conhecido das histórias de super-heróis, cujo desenvolvimento centraliza, inicialmente, a aquisição e manutenção dos poderes, como e por quê eles existem, e quais são suas consequências, para só então estabelecer a ameaça a ser combatida — que, neste caso, existe na figura de Carlton Drake (Riz Ahmed), um jovem bilionário que busca uma maneira de tornar possível a vida humana longe da Terra.

Atenção: este texto contém spoilers!

Menos preocupado com o futuro da humanidade do que sugere seu discurso, Drake é responsável por trazer os simbiontes à Terra — em uma das muitas liberdades tomadas pelo roteiro — e também pela perda de um deles, que desaparece após um acidente de percurso fatal para os tripulantes da nave. As consequências do desastre não demoram a aparecer, mas porque é um homem de recursos — e recursos são importantes na manutenção de segredos —, o fato é mantido em sigilo. Mesmo a imprensa não parece particularmente disposta a destrinchar a história, revelando tanto a verdadeira face dos acontecimentos quanto a realidade por trás dos experimentos conduzidos pela Life Foundation, sua companhia.

Em tempo, cabe a Eddie Brock (Tom Hardy) esclarecer essas questões — primeiro, como repórter investigativo; depois, a pedido da Dra. Dora Skirth (Jenny Slate), que o procura em busca de ajuda quando a situação na empresa torna-se insustentável. A essa altura, porém, Brock já não é mais um nome relevante na televisão, mas um homem cuja carreira caíra em desgraça após uma entrevista mal sucedida, o que viria a implicar tanto em sua demissão quanto na impossibilidade de adquirir um novo trabalho na área. A investigação — secreta, sem qualquer vínculo com um veículo tradicional — é o que eventualmente possibilita a interação entre jornalista e simbionte, mas nem mesmo a origem do personagem-título ou a crescente crueldade do líder da Life Foundation são suficientes para que o embate entre os dois converta-se em algo mais do que mera formalidade. Bem e mal continuam a constituir conceitos bem delineados, com objetivos e motivações facilmente perceptíveis, mas ainda são definições bastante simplórias, arquétipos unidimensionais que servem tão somente à sua própria dicotomia. Mesmo a imprevisibilidade da união entre o bilionário e um segundo simbionte (Riot, então desaparecido no acidente) não torna o atrito mais interessante, servindo apenas para adicionar nuances ao passado de Venom em seu planeta de origem e, consequentemente, à relação com seu hospedeiro.

É evidente que Venom poderia ser um grande fiasco, mas o que o salva de tornar-se ordinário e, pelo contrário, o torna genuinamente divertido, é a dinâmica construída entre alienígena e humano. Para Brock, há um inevitável drama faustiano que permeia a relação (usar o poder letal de um alienígena assassino em nome de um bem maior e tornar-se, ele mesmo, um ser extraordinário, ou permanecer como um homem comum e limitado), mas se a dúvida inicialmente o faz relutante em admitir que Venom permaneça em seu corpo, é o próprio simbionte que o convence do contrário e uma vez que esse limite é ultrapassado (poder e responsabilidade não precisam ser, necessariamente, fatores excludentes), não demora para que a ligação entre eles deixe de ser apenas física para ser, também, emocional. É verdade que muitas são as dificuldades impostas para a manutenção do elo: Venom e Brock são criaturas diferentes, de planetas e espécies diferentes, e prioridades e instintos radicalmente diferentes. Mas o filme jamais se esquiva dessas dificuldades, preferindo projetar seu foco sobre aquilo que existe de mais complexo e humano em cada um deles. Assim, enquanto Venom precisa aprender a se comportar em um lugar inteiramente novo e se encaixar, respeitando regras de moral e convivência, Brock precisa entender como suas ações reverberam naqueles ao seu redor, como não agir impulsivamente e encarar a vida com mais seriedade. É curioso que a jovialidade de Venom seja justamente o que o conduz por um caminho diferente, mas é o que acontece, e não da maneira afetada que talvez lhe fosse mais óbvia.

Essas mudanças também são refletidas na relação entre Brock e Anne (Michelle Williams), sua ex-noiva, que acaba envolvida nos muitos acontecimentos do filme. Quando recorre à Anne em busca de ajuda, Brock percebe que, diferente dele, sua vida não entrou em declínio após o fim do noivado; ela seguiu em frente muito melhor do que ele próprio. Embora não seja feita nenhuma menção à sua situação profissional, a mágoa do passado não a impede de relacionar-se novamente com outra pessoa ou de acreditar em sua felicidade, o que é visível em sua dinâmica com o aparentemente bem sucedido e muito simpático Dr. Dan Lewis (Reid Scott). Isso não significa que não exista qualquer resquício de tensão entre o antigo casal; pelo contrário, a inquietação é perceptível e torna-se mais forte com a convivência. Mas Anne sabe o que os levou à separação e reconhece que amor e reciprocidade, tanto quanto atração física e sexual, não são suficientes para a manutenção de um relacionamento saudável. Não deixa de ser significativo, no entanto, que seja ela a agir de maneira racional diante das circunstâncias, quando sua presença vai, por vezes, tornar-se bastante importante.

É irrelevante dizer que Anne continua a ser uma coadjuvante em uma história que não é sobre ela. Suas nuances, no entanto, são o que a permitem se estabelecer como uma personagem dramaticamente relevante, cujas ações interferem diretamente nos desdobramentos da narrativa. Venom deixa aberta a possibilidade de que, em um futuro não tão distante, ela assuma-se novamente como She-Venom, algo que acontece muito brevemente nesse primeiro momento; não como um condicionante de valor, mas como forma de aprofundá-la dentro de novos contextos. Mesmo a expectativa de restabelecimento do romance é mantida em suspenso; Anne e Brock não terminam a história juntos, mas mantêm-se como duas pessoas que dividiram experiências importantes e podem, com o tempo, construir um novo tipo de vínculo. Muitas são as vezes que Venom afirma que eles vão reconquistá-la, mas o filme garante que essa não é uma via de mão única e que nada pode acontecer se Anne não estiver disposta a caminhar na mesma direção em primeiro lugar.

Durante as muitas entrevistas que antecederam o lançamento do longa, o diretor Ruben Fleischer salientou o quanto Venom era um projeto diferente de qualquer outro do gênero: não existe nenhum herói de verdade na história e quem salva o dia ainda é um híbrido sombrio, desbocado e ameaçador de humano e alienígena. Mas é justamente longe da sombra do Homem-Aranha que o personagem ganha espaço para desenvolver-se de maneira independente, em um contexto alternativo que lhe permite ser, ao seu próprio modo, tão jovial e espirituoso quanto seu colega mais famoso.

Venom não é um filme perfeito — seu roteiro, escrito à muitas mãos, é visivelmente falho, e muitas são as perguntas deixadas sem resposta, enquanto regras básicas da diegese são deixadas de lado tão logo deixam de ser convenientes — e ainda há uma lacuna a ser preenchida, aquela que acaba diluída sob a alcunha do anti-herói. Mas em um universo de heróis solares e moralmente literais, o filme pede justamente para que olhemos com mais carinho as possibilidades que reservam as almas vacilantes desse mundo — como talvez sejamos todos um pouco, afinal.