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The Marvelous Mrs. Maisel, segunda temporada

Ser mulher é assumir inúmeros papéis ao mesmo tempo. Não porque temos um ávido desejo de sermos várias em uma só, mas porque desde que nos conhecemos por gente somos condicionadas pela sociedade a trabalhar múltiplas facetas: temos de ser boas filhas, boas alunas, boas esposas, boas meninas; o que significa, em linhas gerais, que temos de prezar por nós mesmas e pelos outros com decoro e em nossa melhor aparência. E se ainda hoje encontramos muitas dificuldades em nos desvincular dessas responsabilidades que não pedimos, que dirá na década de 50. Há quase sete décadas, ter o pacote completo era o requisito mínimo de uma mulher, e se algo saísse do roteiro seria um verdadeiro escândalo. No entanto, apesar de ter executado seu papel perfeitamente dentro dos padrões daquela época, Miriam “Midge” Maisel (Rachel Brosnahan) não teve sorte. E depois? “When life falls apart, you stand up and get your act together” (“Quando a vida desaba, você levanta e sacode a poeira” ou, no caso de Midge, “faz um stand up e retoma seu ato”) — o slogan de The Marvelous Mrs. Maisel não poderia ser mais preciso.

Após sentir sua vida desabar com a notícia de que Joel (Michael Zegen) a estava traindo e queria terminar o casamento para ir atrás do sonho de se tornar um comediante de sucesso, Midge, por acaso, terminou “roubando” a oportunidade dos sonhos do agora ex-marido, deixando a família perdida diante da sua decisão de assumir uma vida mais independente. Midge descobriu que, ao contrário de Joel, ela era naturalmente talentosa em fazer ambas as coisas e seu único limite eram as condições impostas ao seu sexo. Ainda assim, ela conseguiu arrumar um emprego de meio período em uma loja de departamentos de luxo usando suas habilidades pessoais e, à noite, passou a experimentar a carreira de comediante stand-up sob a supervisão da durona Susie (Alex Borstein), sua agente e amiga.

Atenção: este texto contém spoilers!  

No início da segunda temporada, Midge está trabalhando na central de atendimentos da B. Altman, rebaixada do cargo de atendente do balcão da Revlon após o escândalo causado por Penny Pan (Holly Curran), ex-amante de Joel, no meio da loja, ao fim da temporada anterior. Estar escondida em uma salinha no subsolo, no entanto, não foi um empecilho para Midge mostrar sua popularidade também ali, auxiliando suas colegas que não conseguem dar conta das ligações, além de sua vida pessoal também ser capaz de encontrá-la em qualquer lugar. Como canta Barbra Streisand no número que abre a temporada: “I have always been a woman who arranges things”— o que, de certa forma, se aplica à própria Midge. Não é uma surpresa que o que coloca o primeiro episódio, “Simone”, em movimento seja justamente uma ligação de seu pai, Abe (Tony Shalhoub), desesperado por não saber o paradeiro da mulher, Rose (Marin Hinkle), e que caiba à filha resolver essa crise; sendo homem, essa incumbência não é sua e uma vez sem a mulher, ele não consegue se orientar. A recapitulação de uma conversa dos pais revela que Rose, farta da família não dar atenção às suas preocupações e aos seus esforços para que eles, em especial Midge, tenham uma vida segura, decidiu se mudar para Paris e reviver seus antigos dias de universitária, a última vez em que ela se sentiu verdadeiramente livre.

Boa parte dos novos episódios de The Marvelous Mrs. Maisel é dedicada àqueles que orbitam a vida da personagem central, e “Simone”, assim como os dois episódios seguintes, “Mid-way to Mid-town” e “The Punishment Room”, são uma maneira de explorar as facetas do machismo arraigado da década de 1950 para além da protagonista, na figura de sua mãe. Rose é um exemplo daquilo que, uma década mais tarde, Betty Friedan chamaria de “o problema sem nome”: uma dona de casa infeliz mesmo com uma vida confortável, um casamento estável e filhos saudáveis. Mas enquanto seus filhos e marido se ocupam com suas próprias vidas e com suas carreiras, Rose tem dias completamente vazios que ela busca preencher com atividades que não lhe trazem prazer algum. E embora Abe a ame em sua própria maneira sempre um pouco mal-humorada, os dois primeiros episódios deixam claro o quanto ele é incapaz de entender por que a esposa estaria infeliz. The Marvelous Mrs. Maisel é uma série que se alicerça na comédia, e não no drama, e sua construção de mundo é sempre leve, mas ainda assim consegue fazer com Abe e Rose uma boa discussão sobre o papel da mulher dentro do casamento e do lar.

As semanas em Paris são reveladoras tanto para Rose, que se desprende das aparências do casamento tradicional que a estavam deixando infeliz, quanto para Abe, que descobre um inesperado prazer na rotina boêmia da cidade. A nova vida do casal, no entanto, se revela temporária pois, sendo tomado pela razão, Abe lembra a esposa que a vida deles estava no Upper West Side, em Nova York, e eles não poderiam simplesmente dar as costas para aquilo. Mas, em defesa de Abe, ele não arrancou Rose de sua doce ilusão sem oferecer algo em troca — tendo o ponto sido levantado, eles chegaram a um meio-termo em que ela reassumiria suas funções, mas não deixaria de lado o que fora buscar em Paris tampouco. Embora Rose passe longe de ser uma mulher questionadora ou revolucionária, a boa caracterização dada a ela na temporada culmina em seu excelente retorno ao ambiente universitário, onde ela sem querer proporciona uma ótima discussão a respeito da educação das jovens mulheres que, ao fim do dia era jogada fora quando elas casavam e passavam a se dedicar exclusivamente ao ambiente doméstico, retroalimentando o tal problema sem nome. É a essa lógica que Midge escapa quando Joel resolve abandonar o casamento — mas que também volta a atormentá-la quando ela enfim se sente pronta para pensar em ter um novo relacionamento.

The Marvelous Mrs. Maisel

Antes disso, no entanto, os dias em Paris representam uma oportunidade para Midge de reconhecer a mãe como uma mulher com aspirações e desejos, e não alguém que estava ali apenas para se preocupar com ela ou cuidar dos netos sempre que necessário. Quando se despedem pela primeira vez na cidade, Midge diz à Rose que sentira sua falta, ao que a mãe responde que também sentira falta de si mesma — um lembrete de que sempre fora tão humana quanto qualquer outra pessoa ao seu redor. Mais tarde, após um jantar fracassado em família em que apenas as mulheres ficam até o final, é a vez de Midge confrontá-la sobre o fato de ter partido, deixando para trás marido, filhos e netos, sem se dar conta de que, desde a separação, ela própria havia feito, se não as mesmas escolhas, ao menos escolhas muito parecidas. Se Midge e Rose são mulheres tão diferentes e de tantas formas, The Marvelous Mrs. Maisel chama a atenção para as muitas semelhanças que compartilham e que vão muito além do gosto por roupas ou a excessiva preocupação com a aparência.

A crise no casamento dos pais também abre espaço para que Midge reflita sobre seu relacionamento com o ex-marido. Enquanto Abe e Rose conseguem resolver suas diferenças e chegam a um acordo proveitoso para ambos, o mesmo não acontece com Midge e Joel, que continuam a viver separadamente — porque ele jamais conseguiria ser um personagem nas piadas dela, ao passo que ela não abandonaria a carreira nos palcos por ele; o que ele tampouco queria, e nem pediria, que ela fizesse. Mas isso não os impede de sentirem muito pelo fim do relacionamento. Em um flashback bastante significativo, a série retorna à noite da última apresentação de Midge no Gaslight e revela o que de fato aconteceu quando a comediante saiu do palco para descobrir que Joel estivera ali e vira o seu ato, e seu palpite de que aquela foi uma maneira terrível de ele descobrir seu segredo era certeiro. O desejo de ambos reatarem o casamento teve de ser abandonado, porque o preço seria muito alto para eles pagarem: para Joel, seria receber feridas no ego sabendo que a esposa estava construindo uma carreira com algo que tem como matéria-prima todos os defeitos dele; para Midge, seria largar uma paixão recém-descoberta e uma forma de conseguir construir algo dela, em prol de um relacionamento que já havia decepcionado-a uma vez. E nenhum dos dois queria isso.

A percepção de que eles jamais poderiam voltar a ser como eram antes vem em uma cena carregada de anticlímax no que diz respeito ao tom de comédia da série — Midge revela o desfecho do seu casamento ao público no meio de uma apresentação espontânea em Paris —, mas não é uma surpresa quando pensamos que os arcos dramáticos da personagem são o que a impulsionam. Além disso, o fato de eles terem a conversa definitiva em uma chamada de longa-distância é bastante significativa por si só, uma vez que Midge e Joel não estão mais na mesma página. É impossível tratar o sentimento construído nos últimos anos de forma igualmente pragmática, no entanto, e isso torna o último “eu te amo” dos dois doloroso de dizer e ouvir, como se nenhum deles quisesse realmente fazê-lo, mas, àquela altura, eles precisavam daquele encerramento. Não é por acaso que, após conversarem ao telefone, “Simone” finalize com uma cena em que Midge anda sozinha por um corredor de colunas, da mesma maneira solitária que fará outras vezes ao longo da temporada.

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O que não significa que eles não mantenham outro tipo de relação. O grande evento seguinte da temporada é a viagem para um resort nas montanhas Catskills, aparentemente uma tradição da comunidade judia, que reservava os três meses do verão para descansar e se entreter no local. Tendo início no quarto episódio, “We Are Going to The Catskills”, até o quinto, “Midnight at The Concord”, a série abre espaço para subtramas onde Midge e Joel têm a oportunidade de trabalhar a convivência com o outro, com suas famílias e com os amigos em comum após a separação — ainda que o peso seja maior do lado de Midge, pelo menos no âmbito social (emocionalmente, ambos ainda estão superando o relacionamento à própria maneira) —, estabelecendo uma dinâmica bastante agradável. Os episódios também conseguem trabalhar outras tramas familiares envolvendo personagens secundários, como acontece com Abe, que acaba de conseguir um almejado cargo em um projeto secreto da Universidade de Columbia e está aprendendo a lidar com os segredos dos filhos, no plural. Rose, por sua vez restabelecida em sua função familiar, aproveita a oportunidade para encontrar um novo pretendente para a filha, ao passo que Susie se infiltra no resort em seu incansável trabalho de conseguir novos gigs para Midge.

Tanto Rose quanto Susie são bem-sucedidas em suas missões, o que adiciona duas novas variáveis ao contexto da série. A primeira é o relacionamento de Midge com Benjamin (Zachary Levi), a quem conhece durante o período em Catskills e divide alguns momentos interessantes na série. O segundo é sua apresentação em um hotel chique no qual seu pai aparece justamente quando a filha está no palco. “Let’s Face the Music and Dance” explora a tensão entre pai e filha instaurada após o episódio, utilizando-o não apenas como uma maneira de analisar as consequências de ter seu segredo descoberto, mas questionar as possíveis implicações do fato. É a primeira vez que Midge tem de lidar com os efeitos de ser uma decepção para os pais, muito além do casamento fracassado, e reconhecer as muitas formas como isso afetaria a vida de todos. Para Abe, a descoberta sobre a carreira alternativa da filha o leva a enxergá-la como uma pessoa que eventualmente pode (e irá) decepcioná-lo, o que, não muito tempo depois, ele é obrigado a fazer também com o filho, Noah (Will Brill), com quem possui uma relação muito mais próxima — e se a decepção com a família é o que move Rose no início da temporada, o mesmo acontece com Abe ao final dela, quando a decepção interfere em sua vida profissional e o conduz por caminhos inesperados.

Com Midge mais segura do que nunca a respeito do stand-up ser aquilo que quer fazer, a situação com o pai não a leva a renunciar à carreira (tanto quanto o sentimento por Joel não o faz), mas adiciona mais nuances ao dilema de entregar-se completamente à sua vocação, seguindo-a aonde quer que ela a leve, ou viver a vida convencional que a sociedade sempre vai impor a ela — e à qual, pelo menos em alguns de seus traços, ela também almeja em alguma medida (vale lembrar que ela caiu de pára-quedas na comédia, impelida pelos fatos da vida, e que, antes disso, nunca havia questionado seu papel de mãe-esposa-dona-de-casa). Uma escolha acertada de Amy Sherman-Palladino é propor essa discussão não através da velha pergunta “será que as mulheres podem ter ‘tudo’?”, mas através de uma Midge que observa os homens à sua volta terem os mesmos questionamentos e as mesmas inquietações, em dois momentos particularmente pungentes da temporada: na ótima participação do britânico Rufus Sewell como Declan Howell, um artista genial, excêntrico e solitário, e na dramatização de “All Alone”, número semi-musical ao mesmo tempo cômico e doloroso apresentado na televisão por Lenny Bruce (Luke Kirby) em 1959. Em The Marvelous Mrs. Maisel os homens geniais existem para servir aos arcos dramáticos da protagonista.

The Marvelous Mrs. Maisel

Declan Howell, em especial, tem o papel bastante simples de servir como um avatar do lado mais sombrio, solitário e por vezes cruel de ser um artista. Ao visitá-lo em seu ateliê, Midge se dá conta de que o fato de ser brilhante não o impede de ser também trágico. Ela tem contato com a obra secreta do artista, o quadro que muitos não acreditavam que existisse e ao qual propositalmente não temos acesso. Mas como o texto da série evidencia, a perfeição cobra seu preço e não apenas às mulheres. A obra é a síntese dos sonhos deixados por Declan para que o extraordinário pudesse nascer — o que, ao contrário, não o impede de lamentar-se por tudo aquilo que não foi.

É claro que para Midge, uma mulher rica em uma posição bastante confortável e experiências limitadas pelo mundo que sempre habitou, a dúvida pode parecer menos significativa, principalmente porque ela pode contar com uma rede de apoio sempre pronta a socorrê-la quando as coisas dão errado — um privilégio, desnecessário dizer, reservado a poucos —, o que tira parte do peso de suas decisões. Sempre há alguém para cuidar dos seus filhos, ser a anfitriã do chá de bebê de sua melhor amiga ou brigar com o funcionário do bar que não quer pagar seu cachê. Mas é apenas ao estar fisicamente longe de todos que o impacto de suas escolhas é sentido de maneira mais profunda. “Someday…” é o episódio mais agridoce porque estabelece o momento em que Midge realmente precisa abrir mão de estar ao lado de seus amigos e de sua família para priorizar a carreira, que já não permite que ela se limite à cidade de Nova York. A turnê também marca uma mudança no relacionamento com os pais — como quando toda a bagunça do chá de bebê de Imogene (Bailey De Young), sua melhor amiga, é deixada intacta por Rose e Zelda (Matilda Szydagis) para que Midge a arrume sozinha — e em sua perspectiva como mãe, que após estar sempre tão ausente, começa a se questionar sobre a falta que faz aos filhos, se eles vão se lembrar dela quando voltar para casa.

The Marvelous Mrs. Maisel propositalmente deixa de questionar se Midge consegue assumir todas as tarefas que lhe são atribuídas para perguntar explicitamente a que custo isso é feito. E nesse contexto, o relacionamento com Benjamin também se torna uma questão. Benjamin surge na trama como um contraponto — e um alívio — descomplicado em relação a Joel. Bem humorado e com uma alma leve como a de Midge, ele não apenas se encanta com a personalidade vivaz dela, mas também respeita e apoia sua vida nos palcos. É uma atitude bem diferente da do ex-marido que, embora a apoie e não se incomode com o fato de ela ser muito melhor na comédia do que ele jamais seria, é inseguro demais para dividir a vida com uma mulher que faz stand-up, mesmo que se diga apaixonado por ela (seus olhares perenemente tristes levam a crer que ele não está mentindo). Benjamin é adorável e é fácil entender por que Midge se encanta por ele, mas o relacionamento é desenvolvido de forma tão apressada, num espaço tão curto de tempo, que é difícil se importar com ele.

Mesmo para Midge, o relacionamento não parece ser uma grande questão e eventualmente ela também percebe que um possível casamento com Benjamin tampouco é uma prioridade. Sua felicidade ao saber que ele está pedindo sua mão ao pai é compreensível (ainda que aconteça rápido demais, como aponta Abe durante a conversa), mas é evidente que o sentimento não pode ser comparado ao que Midge experiencia a cada conquista profissional. The Marvelous Mrs. Maisel é a história de Midge, o que significa que todos os personagens, para o bem ou para o mal, irão orbitar ao redor dela, e não o contrário. A maneira como o roteiro da série trabalha seu novo relacionamento, no entanto, sugere que o pouco tempo dedicado aos dois é uma escolha deliberada e não um mero erro de percurso. Se é difícil nos importarmos verdadeiramente com Benjamin, para Midge há também um óbvio impasse que ela só percebe quando aceita uma excelente oferta de trabalho que a manteria longe de Nova York por vários meses, justamente quando deveria estar planejando uma festa de casamento. A cena em que seu pai finalmente decide consentir sua mão é tão significativa porque uma única mudança em sua postura é suficiente para transmitir o alcance de uma consciência que ainda não lhe havia atingido até aquele momento, esclarecendo que, ao menos em um futuro próximo, não haveria casamento algum.

De certa forma, isso também ajuda a compreender por que Midge tem tanta dificuldade em desapegar de Joel, embora com frequência ele seja bastante desagradável e sua incapacidade de deixá-la seguir em frente e em paz seja profundamente incômoda. A série nos lembra a todo momento de que esse foi um relacionamento que durou anos, que eles são amigos há muito tempo, que um dia foram felizes juntos e que Joel nem sempre foi tão azedo com a vida, muito menos ao redor de Midge. É difícil julgá-la e é especialmente difícil fazê-lo quando ela o procura ao fim da temporada, após o já citado número no qual seu amigo e colega de profissão, Lenny Bruce, narra a história de um casal às voltas. O tom de piada em muito se perde à medida que a história é contada — em partes, porque Lenny a faz soar como mais um dos muitos reveses de uma carreira aparentemente fascinante e em inegável ascensão — e é nesse momento que Midge mais uma vez é confrontada pela projeção de um futuro com sucesso, dinheiro e reconhecimento, mas ainda terrivelmente solitário. Não é uma surpresa que Joel seja justamente a pessoa a quem ela recorre para dizer em voz alta que jamais voltaria a ser a dona de casa de outrora, que ela havia feito uma escolha, que ficaria sozinha para o resto da vida; e também o único a ter acesso a dor que existia por trás de cada uma de suas palavras. Durante oito episódios, a série reforça o quanto a solidão parece uma consequência inescapável ao futuro que Midge escolheu para si, mas é ao permitir que ela admita não querer estar sozinha que o roteiro finalmente abre espaço para se desdobrar em uma narrativa que não necessariamente confirme a tese — embora tampouco queira dizer que o futuro reserva um final feliz para os dois.

E, apesar de tudo, a cada cena de Midge no palco conduzindo a plateia e arrancando risadas temos mais certeza de que aquele é o seu lugar. Sua improvisação cativante e absolutamente sem falhas no ótimo “Vote for Kennedy, Vote for Kennedy”, naquela que é uma das melhores sequências da temporada inteira, lembra que Midge tem tudo para realizar seu sonho, e seu sonho é ser grande. No entanto, ao mesmo tempo em que enfatiza o quão boa Midge é na comédia, e que ela e Susie estão cem por cento juntas nessa empreitada, The Marvelous Mrs. Maisel também nos lembra do machismo absurdo que ambas enfrentam ao decidirem ocupar espaços tão tradicionalmente masculinos. “Só na comédia uma garota branca obediente do subúrbio conta como diversidade”, escreve Tina Fey em sua autobiografia, Bossypants (no Brasil, traduzido como A Poderosa Chefona), e não é preciso ir muito longe para perceber que a trajetória de Midge é, ao seu próprio modo, uma extensão desse raciocínio.

É interessante, portanto, perceber como a comédia feita pela personagem incorpora de modo muito natural o sexismo que enfrenta. Midge não é militante de movimento algum, sua comédia não é feita com intenção de fazer uma denúncia, mas em parte é isso também que ela faz, porque o stand-up de Mrs. Maisel é baseado no riso a respeito da própria vida, e sua vida é permeada de machismo o tempo inteiro. Quando fala sobre gravidez em um de seus shows, Midge é imediatamente arrancada do palco, apesar das muitas risadas que arranca do público, apenas porque esse não é considerado um tema adequado pelo dono do local; quando o gerente do hotel no qual se apresentaria descobre que ela não apenas é uma mulher bastante atraente, mas uma mulher que se apresenta sem uma fantasia que a tornasse verdadeiramente engraçada, ele duvida do seu potencial e ameaça cancelar a apresentação. Nada minimamente parecido ocorre com os homens que eventualmente cruzam seu caminho. Ainda que seja evidente a todo momento o enorme privilégio sobre o qual cada passo e cada escolha de Midge repousam, o roteiro reforça de novo e de novo que sua existência enquanto mulher é sempre marcada pelo gênero, e ela só pode seguir tentando contornar as restrições que ser mulher impõe à sua trajetória, o que nem sempre funciona e por vezes demanda uma ligação a alguma figura masculina que possa ajudá-la — uma experiência bastante frustrante para ela e para o espectador, mas infelizmente muito real.

Com o sucesso enorme que a primeira temporada da série conquistou nas premiações da televisão em 2018, Amy Palladino tinha diante de si o desafio de corresponder ao hype que esse tipo de recepção inevitavelmente gera. Apesar de ter acabado desbancada pela excelente Phoebe Waller-Bridge com sua Fleabag na última edição do Emmy, o que Palladino conseguiu criar com a segunda temporada foi uma sequência de episódios que é, na verdade, melhor do que a anterior, principalmente porque temos agora uma Midge que enfim se vê obrigada a compartilhar com a família seu dom para a comédia e seus sonhos de fazer dela uma carreira. Se as performances individuais do elenco são ótimas, o que talvez funcione ainda melhor neste segundo ano é a química existente entre eles. A dinâmica conflituosa da família Weissman culmina no ótimo “Look, She Made a Hat”, episódio que retrata a celebração do Yom Kipur e reúne os Weissman e os Maisel, com sua antipatia mútua deixada sempre em banho-maria. São momentos que, apesar do alto nível de absurdo presente em sua comicidade, lembram muito a natureza de uma verdadeira reunião familiar e das relações que estabelecemos com todas as pessoas que não escolhemos para povoar nossas vidas, mas que são e continuarão sendo uma presença constante — para o bem e para o mal.

Às vésperas da estreia de sua terceira temporada, The Marvelous Mrs. Maisel tem pela frente o próximo passo na carreira de Midge: uma grande turnê americana — e, com ela, mais tempo longe dos pais, dos filhos, de Joel, de tudo aquilo que uma boa dama deveria ser e representar nos anos 50, o que continuará impactando não só a própria Midge, mas toda sua rede proteção e afeto. Apesar de todas as cores vibrantes que tornam a série uma experiência sensorial tão agradável, a vida de Midge certamente continuará levantando novas (e renovadas) dúvidas e angústias profundas sobre que tipo de futuro a espera. Porque enquanto estiver viva, Midge sempre estará se perguntando que tipo de futuro a espera depois do próximo passo, e a cada escolha que a distancie ainda mais do script tão rigidamente pré-determinado para as mulheres de sua época, mais incerta — e mais fascinante — a ideia de um futuro se tornará. Para ela e para todas nós.

Texto escrito em parceria por Ana Luíza, Fernanda e Yuu.