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Reino das Bruxas: Natureza Sombria

O segundo volume de Reino das Bruxas: Irmandade Sombria, de Kerri Maniscalco, chegou ao Brasil pela Darkside Books com mais um impecável trabalho da editora. Com tradução de Flávia Souto Maior, em Reino das Bruxas: Natureza Sombria, continuamos a acompanhar a jornada de Emilia em busca de vingança pelo assassinato da irmã gêmea, mas as coisas não saem muito bem como o planejado pela protagonista da saga.

Após o embate final do primeiro livro, Emilia agora está no Inferno. E não é apenas uma metáfora. A bruxa, acompanhada do Príncipe Ira, desceu até às profundezas do submundo em busca de respostas para o assassinato de Vittoria, sua gêmea, mas tudo o que ela parece encontrar são mais becos sem saída e nenhuma solução para a dor que a atormenta. Ou, pelo menos, ela diz atormentar. A questão é que Emilia está muito mais preocupada em se perder em meio aos beijos de Ira do que, de fato, buscar pistas para elucidar o crime que marcou sua vida e a de sua família. Mas, realmente, quem pode culpá-la quando Ira é um demônio tão interessante?

“Você jamais vai se perguntar se o que está acontecendo é real ou não quando eu tocar em você.”

O fato é que boa parte de Natureza Sombria se passa entre as paredes do castelo de Ira, e Emilia, noiva prometida de um demônio, se dedica muito mais a imaginar o que o príncipe pode fazer com ela em matéria de beijos e amassos, do que procurar pistas sobre o crime envolvendo a irmã e todas as demais bruxas mortas em seu lar. Não há nada de errado em fantasiar e dar vazão a essas fantasias quando há consentimento de ambas as partes, mas todo o mistério que envolvia Irmandade Sombria dá espaço aos encontros cheios de luxúria entre Emilia e Ira. Ainda que as questões a respeito dos crimes se multipliquem, surgindo por meio de enigmas ditos por demônios e bruxas aparecendo em florestas de sangue, envolvendo visões que podem ser tanto presságios do futuro quanto reminiscências do passado, e que são capazes de deixar a protagonista ainda mais desorientada, o que mais ocupa as quase 400 páginas de Natureza Sombria são os encontros de Emilia e Ira.

E, sem problemas quanto a isso, visto que essas passagens são de fato o que sustentam a narrativa em si. Se não tivéssemos Ira em Natureza Sombria, o livro provavelmente seria um grande vazio, tão oco quanto a própria Emilia. Enquanto protagonista, Emilia deixa muito a desejar, principalmente quando, movida por rompantes de raiva, ela promete se vingar de todos que feriram sua irmã somente para, no momento seguinte, se lamentar e não fazer nada a respeito. Suas ameaças aos demônios da corte de Ira não passam de palavras vazias, o que nos faz questionar o que Ira, um demônio, vê de tão especial na personagem a ponto de tomar decisões que colocariam seu reino em perigo somente para protegê-la. Emilia passa a narrativa descrevendo os vestidos incrivelmente bonitos e sensuais que Ira prepara para ela, mas não treina ou pratica sua magia para realmente se transformar no pesadelo que gostaria de ser para os seus inimigos. Nada faz muito sentido em Natureza Sombria, mas pelo menos podemos nos divertir com o slow burn entre Ira e Emilia, suas trocas de farpas e línguas afiadas, e encontros em lagos mágicos, bibliotecas e salas repletas de armas.

“Amor e ódio estão arraigados na paixão (…) É estranho como essa linha fica indistinta com o tempo.”

Nesse sentido, a escrita de Kerri Maniscalco é muito boa. Ela consegue criar cenários perfeitos para colocar Ira e Emilia em embates que terminam com os dois se odiando e desejando quase em igual maneira, ainda que, a essa altura da trilogia, o leitor não tenha mais tanta certeza do motivo de um odiar o outro para além do fato de que ele é um demônio e ela, uma bruxa. A invocação feita por Emilia em Irmandade Sombria ainda paira sobre ambos, mas é um assunto há muito concluído e que não justificaria o ódio entre eles. A estrutura narrativa de Natureza Sombria não se sustenta por si só, e os mistérios ficam dando voltas e mais voltas até que Emilia os elucida com base nas vozes de sua cabeça — o que acontece, per se, somente nas últimas páginas do livro. Emilia passa todo o tempo correndo atrás das próprias saias, e de Ira, o que enervará um bocado o leitor que busca mais da mitologia do universo do Reino das Bruxas do que o romance em si. A protagonista recebe de mãos beijadas várias das hipóteses que começa a construir como motivação para o assassinato da irmã, mas só decide fazer algo com essas informações quando estamos perto da reta final do livro.

Embora a falta de carisma de Emilia possa ser um grande empecilho em Natureza Sombria, o livro é capaz de evocar um certo saudosismo em quem, assim como eu, cresceu lendo fantasias sobrenaturais com protagonistas femininas como Academia de Vampiros, Os Instrumentos Mortais e Peças Infernais, só para citar alguns. Há uma mitologia interessante por trás de toda a narrativa que envolve os livros de Kerri Maniscalco, mas a autora nunca se aprofunda o suficiente para enriquecer sua trama. Maniscalco poderia ter aproveitado muito mais dos personagens secundários, como os irmãos de Ira, os demais Príncipes do Inferno, mas eles aparecem brevemente e somente como conveniência de roteiro. Fauna, uma lady da corte de Ira, se transforma em amiga de Emilia de uma hora para a outra somente para que a protagonista tenha com quem conversar sobre o demônio, e até Celestia, que parecia ter tanto a acrescentar, só surge quando conveniente.

“Todo vilão pensa que é herói. E vice-versa. Na verdade, existe um pouco de vilão e de herói em cada um de nós. Depende das circunstâncias.”

Se você não procura uma trama com mistérios muito amarrados, se divertirá com Natureza Sombria. Dado o histórico de Maniscalco de se perder na própria narrativa, vide a conclusão da série Rastro de Sangue, eu não esperava realmente uma grande reviravolta aqui. O que segura sua trama é o relacionamento entre Ira e Emilia, principalmente por conta do príncipe. Em Natureza Sombria, a trilogia de Kerri Maniscalco se transforma em uma espécie de romance adulto, ou new adult, com cenas de sexo que ainda não haviam aparecido em seus livros anteriores, o que funciona na questão do slow burn entre os personagens. Emilia e Ira se odeiam, se beijam, brigam como um casal que está junto há 30 anos, e depois saem batendo as portas. A autora consegue criar muito bem a tensão que rodeia o casal, e isso é um ponto positivo da leitura (embora não precisássemos da passagem descrita no capítulo dezessete, se alguém me perguntar). Mas outro ponto positivo que fica de todas as cenas envolvendo sexo, são os questionamentos da própria Emilia a respeito de até onde ela está disposta a ir para ceder aos seus desejos e como decide descobrir e explorar sua sexualidade com Ira, que, com exceção da passagem bem problemática do capítulo dezessete, sempre está atento ao que a parceira concorda ou não em fazer.

Natureza Sombria é caótico, mas ali também reside aquela qualidade das fantasias sobrenaturais que te fazem se divertir com a jornada, muito mais do que com o desfecho em si. Alguns mistérios só eram desconhecidos por Emilia, em seus devaneios de vingança, e não exigem muito do leitor para acompanhar a narrativa. A criação de mundo de Kerri Maniscalco poderia ser melhor explorada, dado que a mitologia em que ela se apoia para construir sua trilogia é muito rica, com os sete círculos do inferno e os pecados capitais, mas ela decidiu dar mais destaque ao slow burn entre Emilia e Ira do que à construção do universo em que habitam — o que, de novo, não é um problema se o que você procura é um enemies to lovers em detrimento de uma mitologia e investigação bem aprofundada. O que Emilia deve em carisma, Ira compensa com muitas tiradas inspiradas — e outras… coisas. É possível se divertir com a leitura de Natureza Sombria (eu sei que me diverti bastante) se você não esperar demais da narrativa. E tudo bem.

“E não tem nada mais perigoso que o amor, tem? As pessoas lutam por ele. Morrem por ele. Cometem atos de guerra e toda forma de pecado em nome dele.”

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a DarkSide Books.


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