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Reino das Bruxas: “o amor é a magia mais poderosa”

Emilia e sua irmã gêmea, Vittoria, são bruxas que vivem secretamente entre os humanos. Sob as orientações de sua avó, as meninas foram ensinadas a se manterem vigilantes sem nunca revelar a outras pessoas suas origens mágicas e, assim, as duas crescem envoltas em deliciosas receitas no renomado restaurante da família, em Palermo, capital da ilha italiana da Sicília, ouvindo os ensinamentos da avó entre um prato e outro, mas sem nunca saber exatamente a extensão de seus poderes e do legado da família. As irmãs estão envolvidas em uma obscura profecia que referencia Príncipes do Inferno e os sete pecados capitais, e sua falta de conhecimento a respeito de sua herança de sangue trará graves consequências para ambas.

Quando Vittoria não aparece para seu turno no restaurante, Emilia sente que algo está errado com sua gêmea e parte em sua procura apenas para encontrá-la morta de maneira horripilante. Seu corpo profanado foi aberto e o coração levado pelo assassino. Tomada pela tristeza pela morte brutal da irmã, Emilia jura vingança e parte em uma desabalada busca por magia, mesmo que isso signifique encontrar feitiços e encantamentos proibidos junto a um Príncipe do Inferno.

“Humanos tinham essa mania engraçada de culpar o diabo por coisas das quais não gostavam. Era estranho que fôssemos chamadas de perversas quando eles eram os que gostavam de nos ver queimando.”

É assim que tem início o primeiro volume da série Irmandade Mística, Reino das Bruxas, de Kerri Maniscalco. Essa é a segunda série da autora a ser publicada no Brasil pela DarkSide Books e conta com todos os elementos já característicos de sua escrita: uma protagonista resiliente e um anti-herói irônico e sarcástico na medida certa. Tanto por isso, Reino das Bruxas soa, em alguns momentos, como uma repetição de sua série Rastros de Sangue, onde acompanhamos Audrey Rose Wadsworth e Thomas Cresswell em suas investigações de assassinos brutais que vão desde Jack, o Estripador até H.H. Holmes. Isso, no entanto, não é um demérito do livro, mas causa sensações déjà vu em quem já acompanhou a série anterior.

Em Reino das Bruxas, no entanto, Emilia não é nenhuma Audrey Rose. Aqui, a protagonista toma muitas decisões sem lógica apenas pelo bem da narrativa que Kerri Maniscalco decidiu, por algum motivo, seguir. São tantos os momentos em que Emilia mete os pés pelas mãos em sua busca por vingança que se torna cansativo acompanhá-la como narradora do livro, o que me fez desejar, em muitos momentos, que houvesse outro personagem com ponto de vista apenas para alternar um pouco as coisas. Ira, o Príncipe do Inferno convocado por Emilia em um ritual, é um personagem muito mais interessante de acompanhar do que a trágica bruxa que não faz a menor ideia do que está fazendo. Claro que boa parte da confusão da personagem vem do fato de que a avó escondeu informações importantes das netas (e do dispositivo de roteiro), mas nada justifica a forma abobada com que Emilia conduz suas investigações.

Não parece que há muito acontecendo durante a narrativa que fundamente as idas e vindas de Emilia por Palermo, mas, mesmo assim, Reino das Bruxas é uma leitura divertida de acompanhar no sentido de que a narrativa de Kerri Maniscalco é boa e capaz de envolver o leitor mesmo que, no panorama geral, estejamos andando em círculos junto de seus personagens. Emilia acaba sendo muito imprudente em suas decisões, agindo sem pensar mais de uma vez e colocando a si mesma em riscos desnecessários em sua busca obcecada por justiça. Maniscalco tenta desvelar Emilia em uma luz favorável, mostrando como a personagem é inteligente e adora ler, mas a protagonista nunca é mostrada sendo, de fato, racional, o que torna pouco crível suas ações impensadas.

O que enobrece Emilia, no entanto, é seu amor pela irmã e a maneira como faz o possível e o impossível para desvendar seus assassinato e punir seus agressores. Ainda que Emilia e Vittoria não tenham muito tempos juntas em Reino das Bruxas, é possível ver que o amor entre as irmãs é genuíno, ainda que uma guarde segredos da outra em nome de sua segurança. As cenas em que Emilia sente seu luto pela morte da irmã são muito fortes e capazes de emocionar, justificando, em certo ponto, a necessidade que ela tem de deixar tudo de lado para focar em sua jornada. O pecado de Kerri Maniscalco na construção de Emilia enquanto protagonista, no entanto, reside no fato de tê-la deixado muito unidimensional, o que não a torna memorável entre tantas outras protagonistas de séries sobrenaturais que conhecemos.

“Uma mulher com um pouco de poder era aterrorizante para alguns.”

E é também por isso que é difícil entender os motivos que fazem Ira, um Príncipe do Inferno, se interessar tanto por Emilia — não apenas no sentido romântico da coisa, mas também na questão de desejar ajudá-la para além de seus próprios interesses. Ira é um personagem intrigante, com camadas que Emilia não possui mesmo enquanto protagonista, e nada do que ele faz por ela parece ser justificável dentro da trama apresentada em Reino das Bruxas. A sensação é que falta uma conexão maior e o que era para ser um enemies to lovers memorável não estala muitas faíscas, pelo menos não tanto quanto nos foi prometido em todo o desenrolar da narrativa.

Mesmo assim, gostei muito da construção do universo de Reino das Bruxas. O fato da trama se passar na Itália do século XIX é interessante, e as descrições das receitas do restaurante da família de Emilia são tão bem feitas que dão água na boca. O estilo de escrita, no entanto, não pretende acompanhar o século em que a trama se passa, o que não me incomoda muito, mas pode ser um empecilho para um leitor que queira, de fato, estar imerso no período descrito. As descrições de Kerri Maniscalco com relação à Palermo e toda a vida da cidade são ótimas, mostrando um cuidado particular da autora em criar vida ao redor de Emilia para além de sua busca.

“Pararam de fazer perguntas. A vida continuou. Era assim que o mundo funcionava, pelo menos de acordo com os homens.”

Kerri Maniscalco é talentosa, o que é inegável. Sua trama é envolvente mesmo quando não há algo mirabolante prendendo a atenção do leitor, e isso fala muito sobre sua qualidade enquanto contadora de histórias. Mesmo que o enredo seja previsível, o que não é de todo ruim, a jornada é interessante e divertida. O desenrolar dos fatos acontece de maneira conveniente para levar Emilia aonde ela precisa ir, e muitas informações são retidas pelos personagens sem uma justificativa plausível e apenas porque sim (Nonna, estou olhando pra você). É compreensível uma autora desejar criar mistérios para conduzir a trama, mas nessa questão, não foi crível e, muito pelo contrário, é capaz de deixar o leitor mais incomodado e frustrado do que curioso. Reino das Bruxas é um livro com ótimo potencial e uma trama que poderia se desdobrar em diferentes maneiras, principalmente com a autora explorando mais dos Príncipes do Inferno e como seus poderes afetam bruxas e humanos, mas não recebemos muito dos personagens nesse sentido. A personificação dos sete pecados capitais e o enredo sobrenatural são muito interessantes e um dos meus aspectos favoritos da narrativa, mas Kerri Maniscalco leva um tempo considerável com detalhes menos importantes, o que deixa o livro arrastado em alguns momentos.

Nas quase 400 páginas há alusão à caça às bruxas, ao assassinato de mulheres inocentes devido ao pânico e surto coletivo, assim como ao papel da Igreja em toda essa histeria, mas a autora nunca se aprofunda muito nesses temas, preferindo passar apenas na superfície dos pontos mais espinhosos da narrativa. Emilia ainda está se encontrando enquanto bruxa, e esse é apenas o início de sua história, então, espero, que seu potencial e sua personalidade sejam amplificadas na sequência de Irmandade das Bruxas, principalmente no que se refere ao uso de seus poderes e suas ações. Reino das Bruxas tem o final aberto, preparando o terreno para sua sequência, o que não é novidade nos livros do gênero, então também não há surpresa nesse sentido. O feminismo branco e liberal transborda das páginas em frases de efeito, o que também é algo característico da escrita de Maniscalco, mas, mesmo assim, vejo esse ponto como uma porta de acesso importante para meninas que estejam começando a navegar por esses assuntos, então não é algo que desabone a narrativa ou fale contra a autora. Há muito potencial de temas e tramas, e minha curiosidade não deixa mentir: ainda quero saber o que o futuro reserva para Emilia, sua sede de vingança e seu Príncipe do Inferno.

“O amor é a magia mais poderosa.”

 

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a DarkSide Books.


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