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Desejo e autoficção em Dor e Glória, de Pedro Almodóvar

Olhar para si mesmo é a coisa mais desagradável que alguém pode fazer. Apesar disso, não é incomum que cada vez mais pessoas busquem o autoconhecimento. Esse movimento tem levado um número expressivo de indivíduos aos consultórios de psicólogos na expectativa de se tornarem “seres humanos melhores”, que estão em contato direto com as suas emoções e, portanto, conseguem compreender determinados processos. Entretanto, o que essa busca ignora é que será preciso olhar para o que existe de mais feio. Para aquilo que a mente encontra maneiras de manter soterrado em camadas de polimento.

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Mas este olhar acaba sendo irresistível. Porque estamos condenados a conviver com as nossas falhas mais graves, já que este é o único tipo de fuga impossível. Então, não é incomum que artistas recorram à autoficção para examiná-las e conseguir se resolver com demônios do passado enquanto preenchem espaços com imaginação, cores e inspirações poéticas. E é exatamente dessa matéria que Dor e Glória (2019) é feito.

Dor e Glória

Embora alguns críticos tenham definido o longa-metragem como uma autobiografia de Pedro Almodóvar, o próprio diretor rejeitou este rótulo. A autobiografia pressupõe um compromisso com a verdade, ainda que no plano individual. Assim, o pacto entre autor e público não pode romper com o princípio da veracidade. Embora a autoficção também seja uma “escrita do eu”, ela se afasta dessa necessidade. Como o nome sugere, a criação assume um espaço importante. Ela preenche lacunas e silêncios com o que poderia ter sido sem comprometer o pacto firmado com o público, que é paradoxal: espera-se que exista alguma verdade no que é contado dado o tom confessional, mas é um erro esperar que o factual seja um compromisso ou um ponto de foco.

Devido a isso, o próprio Almodóvar prefere definir Dor e Glória como autoficção e incluiu uma linha de diálogo a respeito disso no filme. Então, ao examinar a rotina opaca de Salvador Mallo (Antonio Banderas), o diretor entende que o movimento do seu filme é do texto para a vida e não o contrário. Pouco importa se aquelas coisas realmente aconteceram com Almodóvar. Ele não é o objeto. O objeto é Mallo, um homem que possui características em comum o suficiente com o diretor para que a inspiração seja inegável, mas que transcende essas questões à medida que é criação.

Ainda que os figurinos e os objetos de arte presentes no apartamento de Salvador tenham sido emprestados do acervo pessoal de Pedro Almodóvar, isso não faz com que ele seja uma representação fiel do diretor. Inclusive, Almodóvar se permitiu usar lembranças de terceiros para construir o seu longa, como a cena das lavadeiras no rio. Essa memória, na verdade, pertence a Augustín, o seu irmão, mas o cineasta considerou-a cinematográfica o bastante para compor a infância do protagonista. Outro exemplo de interseção não tão fiel entre cinema e vida está no ato de ler cartas para os analfabetos, algo que a mãe de Almodóvar fazia na região de La Mancha. Posteriormente, o diretor passou a escrevê-las por influência materna, mas em um primeiro momento as coisas não transcorreram como na ficção. Por fim, vale citar que Alberto (Asier Etxeandia), o ator com quem Salvador passou décadas sem conversar, foi inspirado em três desentendimentos que Pedro Almodóvar teve ao longo da sua carreira: Eusebio Poncelo, Carmen Maura e Antonio Banderas, todos por discordâncias a respeito dos rumos de personagens.

Diante disso, a cena final de Dor e Glória é excelente em esclarecer aspectos sobre a autoficção porque podemos ver a mão do realizador mais presente do que nunca no material apresentado. Nesta sequência assistimos Jacinta (Penélope Cruz) e a versão criança de Salvador (Asier Flores) dormindo em um banco de rodoviária enquanto aguardam a chegada do patriarca da família. Esta cena já havia aparecido em momentos anteriores do filme. Entretanto, no final, a câmera toma distância para deixar ver uma pessoa segurando microfones sobre os personagens. Além disso, é possível ouvir os ruídos de um set de filmagens e vê-se Jacinta/Penélope e Salvador/Asier conversando em um tom completamente diferente do exigido pela cena. Mostrar que um dos momentos mais emocionantes do filme foi uma criação é a forma de Pedro Almodóvar de destacar que não se deve confiar cegamente na veracidade de tudo o que foi mostrado. Ao mesmo tempo, quem além do diretor poderia dizer com certeza se ele e sua mãe realmente passaram uma noite nessas condições? Por que isso seria importante para a compreensão do que é apresentado na produção?

Dor e Glória

Considerando essas questões, recorrer à autoficção foi uma forma interessante de reexaminar vida pessoal e carreira. Dor e Glória poderia ser um filme de despedida e ele daria a impressão de que Almodóvar fechou um ciclo discutindo temas que o inquietavam desde o começo da sua trajetória, como o desejo, que é o motor do filme.

Apesar de o desejo ser uma abordagem recorrente na obra de Pedro Almodóvar, nenhum dos seus longas consegue discuti-lo com a contundência de Dor e Glória. Para além das suas dores físicas, Salvador sofre com a depressão, uma doença que o impossibilita de continuar produzindo. Entretanto, ele não atribui a pausa na sua carreira a ela, mas sim ao seu corpo, quebrado demais para aguentar um set de filmagens. Porém, quando Sabor, uma produção realizada 30 anos antes, recebe uma homenagem, Salvador embarca em uma espécie de viagem de volta para si mesmo, que acontece através de várias reminiscências do desejo.

Para a psicanálise, o desejo é um elemento central da vida humana. De acordo com Freud, ele pode ser compreendido como um movimento na direção da marca psíquica deixada por uma primeira satisfação. Entretanto, essa satisfação é apenas ilusória, visto que fornece uma autonomia breve e, posteriormente, somos levados a voltar a buscar aquilo que nos deu essa impressão. Assim, cria-se uma nova necessidade a ser satisfeita, num ciclo que se repete durante toda a vida.  Este ciclo fica bastante claro após o primeiro contato de Salvador com a heroína, que silencia os seus demônios e aplaca as suas dores no corpo brevemente. Além disso, a heroína faz com que ele crie um vínculo com Alberto. Momentaneamente, esse laço supre a demanda de Mallo por conexões humanas e o coloca em contato com o seu segundo objeto de desejo do filme: Federico (Leonardo Sbaraglia), um amor do passado.

Na tentativa de prolongar o seu contato com Alberto, Salvador acaba lhe cedendo os direitos de O Vício, um texto que conta sobre os anos que passou ao lado de Federico lidando com o seu vício em cavalo, droga que foi a responsável por separa-los e por mantê-los afastados por anos, até que Federico se reconheceu no monólogo de Alberto e teve a certeza que o texto pertencia a Salvador Mallo, não creditado por vontade própria. Então, ele passou a desejar um reencontro, o que inicialmente deixou Salvador inseguro o bastante para que ele mentisse sobre estar indisponível para receber Federico na sua casa. Mas, aos poucos, Mallo se deixou guiar pelo desejo de rever o antigo companheiro e abaixou as suas defesas, esquecendo-se de todas as desculpas que inventou para não aceitar este contato.

Pedro Almodóvar

O reencontro com Federico parece colocar as coisas em perspectiva. A partir do seu contato com ele, as lembranças de Salvador parecem ganhar outro tom, talvez um pouco mais realista. Este também é um movimento comum na autoficção: em geral, existe um projeto estético que é marcado pela fragmentação, sugerindo que o seu funcionamento se assemelha ao da memória, às vezes embaralhada. Esse embaralhamento é justamente o que turva a visão e impede que as coisas sejam rememoradas pelo que foram, de modo que elas ganham uma carga de sentimento. Assim, as coisas são aquilo que nos lembramos e não mais como verdadeiramente aconteceram. Isso também dialoga com o motivo pelo qual a autoficção parece ter se tornado uma forma de arte constante na modernidade: se o mundo retira o sabor das coisas, cabe à arte devolvê-lo. Desse modo, a linguagem, seja ela literária ou cinematográfica, é a ferramenta para isso, revelando um desejo por novidades e por outras percepções.

No caso de Salvador, essas outras percepções inicialmente partem de Federico, que lhe desarma e retira do amargor da sua maneira de olhar para o passado. Durante a conversa com o antigo amor, Mallo se esforça para parecer uma versão melhorada de si mesmo, abrindo mão inclusive da heroína durante o encontro. De certa forma, o que este momento parece mostrar para o protagonista de Dor e Glória é que recuperar o controle está ao alcance das suas mãos. E o beijo nos momentos finais faz com que o seu corpo responda, lembrando-o do desejo e levando-o de volta ao seu primeiro contato com a sensação física provocada por ele.

Quando criança, Salvador Mallo viu um empregado da família tomando banho e sofreu um desmaio. Na época, ele era jovem demais para compreender porque recebeu essa imagem com tanta força. Passou a noite acamado e com febre, como se o desejo fosse tão intenso que seu corpo não pudesse suportar ou conter seus efeitos. Uma vez que essa memória se soma ao reencontro com Federico, Salvador recebe o impulso que precisa para cuidar de si mesmo. Então, ele visita um médico para falar abertamente sobre as dificuldades que vem enfrentando e para começar a reparar os danos que a negligência e a depressão causaram ao seu corpo.

Logo, essas duas recordações do desejo provocam uma espécie de renascimento. Salvador se lembra de como é querer alguma coisa e, portanto, passa a querer outras. Ele entende que mesmo com os baques, os desencontros, as perdas e a dor que ele carrega, ele pode se permitir desejar. E enquanto ele puder fazer isso, vai sempre conseguir encontrar o caminho de volta para si mesmo. Ainda que para a psicanálise o desejo esteja ligado à incompletude e à falta, ele também se relaciona diretamente com o movimento. Por desejar alguma coisa, nos movimentamos na sua direção e ainda que essa demanda nunca seja efetivamente suprida, a busca é o que importa porque ela mantém a fluidez da vida. Então, o que Dor e Glória parece querer comunicar é que onde existe desejo, existe vida. O desejo é aquilo que salva o protagonista. Não por acaso o seu nome é Salvador, sugerindo que somente ele estaria em posição de conseguir se retirar da beira do abismo.

Pedro Almodóvar

Devido às interseções entre arte e vida, é seguro afirmar que o processo de desnudar Salvador Mallo não pode ter sido agradável para Pedro Almodóvar. O cineasta fictício espelha algumas características pouco gostáveis. Entretanto, foi um movimento extremamente corajoso usar a autoficção para olhar para si mesmo, examinando o bom, o feio e o ruim sem qualquer traço de autopiedade ou condescendência. Essa coragem rendeu uma obra que sintetiza a trajetória de Almodóvar até 2019 e parece o somatório natural de tudo o que o diretor fez antes, dando a entender que ele precisava percorrer todo este caminho para conseguir realizar um trabalho tão íntimo e sem subterfúgios.

À luz dessas questões, é válido pontuar que não é por acaso que algumas pessoas definem o longa-metragem como a conclusão da “trilogia do desejo”, cujos capítulos anteriores seriam A Lei do Desejo (1990) e Má Educação (2004).

Em ambos os casos, as conexões entre realidade e cinema são óbvias: em A Lei do Desejo tem-se um diretor às voltas com a sua vida artística e pessoal. Em Má Educação, a autoficção assume um papel importante quando se pensa na inspiração que Almodóvar extraiu da sua própria vida e na que os personagens extraíram do seu cotidiano, o que cria uma trama com tantas camadas que seria impossível determinar — ou se importar — com o que é verdade. A história poderia ter seguido qualquer um daqueles caminhos, dadas as variáveis envolvidas, e chegar ao mesmo resultado trágico. Entretanto, é desnecessário dizer que o traço que unifica a “trilogia” é o desejo nas suas formas mais variadas.

Em A Lei do Desejo, Pablo (Eusebio Poncela) se torna o objeto de afeição de Antonio (Antonio Banderas), um jovem problemático que acredita que a correspondência é uma obrigatoriedade em qualquer vínculo afetivo-sexual. Ao perceber que Pablo é apaixonado por Juan (Miguel Molina), Antonio acaba matando o seu rival. Devido às guinadas que a sua vida amorosa dá, Pablo se sente sem inspiração para prosseguir com a criação dos seus roteiros e chega a acreditar que arte é uma maldição, assim como o desejo.

No caso de Má Educação, o desejo não se manifesta de maneira tão óbvia. Ele está mais ligado a anseios e expectativas. Zahara (Gael García Bernal) deseja um corpo novo, que seja condizente com a sua visão de si mesma, e para isso chantageia o Padre Manolo (Daniel Gimenéz Cacho). Juan (Bernal) quer ser uma estrela de cinema e usa o passado do seu irmão, bem como o seu talento, para conseguir a sua primeira oportunidade em um filme de Enrique Goded (Fele Martínez). Portanto, em Má Educação todo mundo quer alguma coisa e essa ambição movimenta a trama pelos rumos inesperados do terceiro ato.

Assim, para a autoficção — e para as tramas de Almodóvar — o que poderia ter sido importa tanto quanto aquilo que verdadeiramente ocorreu. Tal como Enrique recortando notícias de jornal para compor os seus novos roteiros, o diretor retira da realidade a sua matéria prima, mas “falseia” os acontecimentos com doses de melodrama e de poesia, embalando-os em um pacote que acrescenta beleza a fatos desimportantes e cotidianos, que sem a mão de um autor de talento poderiam ser coisas banais, que acontecem diariamente em qualquer povoado pobre da Espanha ou nas ruas de um centro urbano movimentado.