Perdidas entre as inúmeras caixas construídas socialmente para encaixar uma mulher estão as também incontáveis caixas construídas para encaixar um homem: “o provedor”, “o chefe da casa” e “aquele que não chora” são apenas alguns dos vários rótulos que acompanham o crescimento das figuras masculinas, e que, talvez por serem tão rígidos, ajudam a aprisionar ainda mais as figuras femininas. A ideia de que o homem é o responsável pelo trabalho, pelas contas e pela família ou a ideia de que entre o homem e o soldado as diferenças praticamente não existem, contribuem para a noção de que, enquanto parte do grupo masculino de uma sociedade, é necessário estar sempre pronto, alerta e bem disposto a encarar mais um dia, mais um problema, mais uma bomba. Fraquejar, pedir ajuda, explorar os territórios desconhecidos do campo emocional: essas são atitudes de homens que falham na sua função de prover, guiar e construir.
O resultado mais claro e imediato é uma sociedade formada por homens muito difíceis de acessar, seja porque eles têm medo de compartilhar seus sonhos, medos e esperanças e, daí, serem vistos como “menos homens”, seja porque se aproximar de uma figura feminina é considerado uma derrota, uma posição menor, um problema para a manutenção da vida como a conhecemos. A ideia do homem puramente racional, contudo, só ajuda a reforçar que emoções são um problema, não uma parte da natureza humana, e, assim, em vez de uma batalha pela liberdade do grupo masculino de acessar aquilo que lhes é negado — os sentimentos, de modo geral —, o que se observa na nossa sociedade é o movimento de cada vez mais pessoas, de gêneros diversos, buscarem uma maneira de provar que também sentem pouco, quase nada, o suficiente para não permitirem que o trabalho seja afetado por qualquer emoção. O único que lucra com essa postura, entretanto, é o capitalismo — que, no fim das contas, realmente não sente nada.
Brené Brown é uma pesquisadora reconhecida pelo seu extenso estudo sobre vulnerabilidade e vergonha e a relação entre esses sentimentos e a coragem, o bem-estar e a possibilidade de uma vida mais plena. Em sua TED Talk, que ficou mundialmente conhecida, e também na recente fala que fez em parceria com a Netflix (The Call to Courage, 2019), a tese que ela expõe e defende é a de que todos somos movidos pela conexão, e a conexão, por sua vez, só é possível a partir do momento que deixamos de lado a vergonha de não se adaptar, de não pertencer. A grande sacada é que, diante do medo de estar sempre excluído de um grupo, nós nos armamos: seja fingindo sermos quem não somos, seja ignorando alguns incômodos, seja guardando no fundo das nossas cabeças as coisas que gostaríamos que fossem diferentes. Entretanto, essa postura não nos ajuda; na verdade, é ela que nos atrapalha.
Um homem que tem medo de ser visto como “menos homem” e de ser excluído do grupo dos seus iguais tende a se esconder atrás dos estereótipos criados para si e, assim, deixa de entrar em contato com a sua individualidade, com as coisas que fazem com que ele seja uma pessoa única. Ao esconder a vontade de chorar, a empatia, o medo, a insegurança, etc., ele constrói uma imagem que não corresponde à realidade e que, eventualmente, passa a servir como uma gaiola: é preciso se manter dentro dela para continuar a fazer parte de um grupo que, na verdade, não o aceita por ser quem é.
A pesquisadora chama atenção para o fato de que, se temos a intenção de nos conectarmos, precisamos ser gentis com os outros e, para isso, é preciso que, antes, sejamos gentis com nós mesmos. E isso significa acessar tudo aquilo que escondemos por medo de não nos adaptarmos a um grupo, deixar à mostra, permitir que outras pessoas vejam e conheçam e decidam até onde elas se identificam com quem nós somos de fato, e não com quem fingimos ser. Brown admite que, ao encontrar essas pessoas (chamadas “plenas”) em sua pesquisa, o que as destacava era simplesmente o fato delas acreditarem que eram dignas de pertencerem aos grupos e de receberem amor e carinho:
“Eles abraçaram a vulnerabilidade por completo. Eles acreditavam que o que os fazia vulneráveis também os fazia especiais. Eles não falavam sobre a vulnerabilidade como algo confortável, mas também não falavam como algo absolutamente doloroso. (…) Eles falavam como algo necessário.”
Sem vulnerabilidade, afirma ela, não é possível criar uma conexão real e, sem a conexão, não podemos construir uma vida saudável. Não podemos estabelecer relações positivas, independentemente dos seus campos — amorosas, amigáveis, de poder etc. O nosso modus operandi, entretanto, não é o de nos enxergarmos como pessoas válidas e dignas de um pertencimento verdadeiro. Em algum lugar no meio do caminho, passamos a acreditar que esses sentimentos ruins — o medo, a insegurança, a vergonha —, frutos da vulnerabilidade, precisam ser varridos para baixo do tapete, ignorados, adormecidos.
“Você não pode seletivamente anestesiar emoções. Você não pode dizer: aqui está a parte ruim; aqui está a vulnerabilidade, a dor, a vergonha, o medo, a decepção, e eu não quero sentir isso, então eu vou tomar algumas cervejas e comer um muffin de banana e nozes. Você não pode anestesiar esses sentimentos difíceis sem anestesiar também outros efeitos e emoções. Então anestesiamos a alegria, a gratidão, a felicidade. E ficamos infelizes, procurando por propósito e sentido, e então nos sentimos vulneráveis, daí tomamos algumas cervejas e comemos um muffin de banana e nozes. E isso se torna esse ciclo perigoso.”
Mais do que criar uma competição para descobrirmos quem sente menos e quem é mais capaz de lidar com cargos de poder, com situações tensas, com dinheiro e com a família, porque é supostamente mais capaz de empurrar tudo para debaixo do tapete, o que esse afastamento entre quem somos e quem aparentamos ser gera é a dificuldade de nos conhecermos. E o resultado disso é não conseguirmos reconhecer se a nossa tristeza, o nosso cansaço e o nosso medo de falhar são sentimentos normais ou indicadores de um problema maior.
No grupo masculino, a pressão para se manter distante das conversas pessoais é maior, e a consequência desse afastamento é um índice crescente de homens que não conseguem identificar vícios, comportamentos excessivamente agressivos ou coisas mais graves, como a depressão. Porque não existe um estímulo para trabalhar os sentimentos, os homens (em geral) tendem a ignorá-los, a classificá-los como passageiros ou a associá-los a outro fator que não eles próprios. Um cansaço excessivo pode ser só culpa do chefe ou da carga de trabalho; a raiva (único sentimento “aceitável” para um homem) é só uma forma de demonstrar descontentamento; a necessidade de beber alguma coisa todos os dias é só uma maneira de se distrair, esquecer o estresse; etc. Assim, criamos um conjunto de homens que morrem de medo de simplesmente existir como realmente gostariam, e que disfarçam esse medo com uma série de outros comportamentos, normalmente pouco saudáveis.
A indústria cultural e a cultura pop, de modo geral, são responsáveis por endossar esse tipo de masculinidade. Nas suas produções voltadas majoritariamente para o público masculino, o que temos em abundância são homens que não se relacionam abertamente com os seus pares, que não demonstram seus sentimentos, que resolvem os seus problemas com socos e tiros e que, enfim, se encaixam perfeitamente no ideal social para o homem-super-herói. As grandes qualidades exaltadas por esses roteiros são o poder de sedução, o dinheiro e a habilidade de manejar armas, e raras vezes encontramos um protagonista profundo o suficiente que não esteja atrelado a um passado de perdas, dor e sofrimento que foi, “como deve ser”, superado sem nenhum tipo de ajuda — especialmente ajuda profissional.
Contudo, a partir dos movimentos que crescentemente exigem mudanças na nossa estrutura social, a cultura pop passou a investir em um outro tipo de homem, um mais saudável e um melhor exemplo para os nossos meninos: o que não foge dos conflitos por ter medo de ser sentimental. Um grande exemplo dessa “nova leva” de protagonistas é o Keanu Reeves.
Ele é um dos atores mais bem sucedidos de Hollywood, protagonista de grandes produções, como Velocidade Máxima (Speed, 1994), Constantine (Constantine, 2005), e de franquias milionárias, como Matrix (Matrix, 1999) e o recente John Wick (John Wick, 2014). Admirado por sua história de vida, suas superações e, em especial, pela forma como demonstra simplicidade — seja andando de metrô, seja dividindo um bolo de aniversário com desconhecidos, seja vivendo com sem tetos por um tempo —, Reeves desperta respeito e compaixão, não apenas nas telas, mas fora delas.
O que faz com que ele seja reconhecido como um “brother”, e não como apenas mais um ator? A vulnerabilidade. Geralmente protagonista de filmes de ação, seus personagens subvertem um outro outro arquétipo do herói típico do gênero: o cara forte, orgulhoso, que salva a mocinha indefesa. Essa postura faz com que ele esteja, também, do lado oposto da chamada masculinidade tóxica — essa reprodução desenfreada de estereótipos que aprisiona a parcela masculina da nossa sociedade.
Em John Wick, sua franquia mais recente, com um filme lançado em maio deste ano, seu personagem tem como grande motor a morte de um cachorro deixado para ele por sua esposa falecida. Ao longo de toda franquia, movido apenas pela necessidade de vingar a perda de algo que ele efetivamente amava (e não hesita em admitir), John mergulha cada vez mais fundo em um passado obscuro, marcado por agressão, crueldade e pela punição por demonstrar sentimentos. O que a história nos ensina ao longo dos filmes é que ele passa o tempo inteiro tentando escapar dessa “prisão” que o mantém no ciclo de violência, e talvez por isso as cenas de luta, embora recorrentes e verdadeiramente brutais, não recebem a glamourização típica de Hollywood: elas são apenas pedaços da história, que precisam estar ali, mas que custam ao personagem, que não são momentos de sua glória pessoal; são só fases da sua vida, das quais ele gostaria de abdicar completamente, embora às vezes pareça impossível.
Outros astros têm tido posturas similares de alguns anos para cá. O ator Terry Crews — famoso pelo seu papel como Julius em Todo Mundo Odeia o Chris (Everybody Hates Chris, 2005-2009) e, mais recentemente, pelo seu papel como Terry em Brooklyn Nine-Nine — iniciou um grande trabalho de militância e conscientização sobre o problema do vício em pornografia, e sobre como uma questão que às vezes é vista como hábito ou como algo “natural para meninos” pode, na verdade, ser o indício de um problema muito grave e muito maior. Em um vídeo postado no Facebook, ele falou sobre como o seu vício em vídeos adultos o levou a encarar problemas muito graves — divórcio, depressão — e sobre como é essencial conversar com os nossos meninos, sobretudo os adolescentes, sobre essa questão.
Outro grande exemplo de conteúdo que busca derrubar as noções tóxicas de masculinidade é o reality show Queer Eye, que atualmente já está na sua quarta temporada. Os cinco apresentadores são responsáveis por reformular a aparência e a vida de homens (e, agora, também mulheres) e, no processo, mostram como é importante entrar em contato com tudo aquilo que escondemos ou que deixamos passar. Absolutamente emocionante, o show conta com episódios que tratam de inseguranças profundas, de autodescoberta e de medos comuns a todos nós, mas que, por algum motivo estranho, parecem proibidos para os homens.
E a lista tende a aumentar. Até os filmes de romance estão começando a representar homens menos presos em suas caixinhas, como acontece com as duas produções recentes da Netflix que possuem o ator Noah Centineo como protagonista: em Sierra Burguess é uma Loser (Sierra Burguess is a Loser, 2018) e Para Todos os Garotos que Já Amei (To All the Boys I’ve Loved Before, 2018) vemos um lado masculino mais frágil, dócil, mas também inseguro, nervoso, apaixonado; vemos, enfim, um adolescente em construção e passível de ser afetado por todos os padrões inalcançáveis que tão frequentemente vemos afetar as mulheres, porque eles não são, afinal, unilaterais.
Talvez sejam passos pequenos, mas é com essas pequenas amostragens de outro tipo de masculinidade que os rapazes, principalmente os jovens, podem passar a entender que existe outro caminho além da supressão absoluta dos seus sentimentos, além da frieza e da distância. Não é como se a cultura pop, sozinha, fosse ensiná-los a ter menos medo de ser quem são, ou que o medidor de masculinidade é uma mentira, ou que ser associado a uma figura feminina não é um problema porque afinal essas características não dependem de gêneros para existir. Entretanto, se a cultura pop é uma expressão da nossa sociedade, talvez ela seja um bom termômetro para entendermos que essas falsas noções que construíram tantas gerações de homens estão, finalmente, perdendo espaço e sendo substituídas pelo tipo de comportamento e visão que deixaria Brené Brown extremamente orgulhosa. E talvez assim tenhamos, no futuro, uma quantidade menor de homens depressivos em silêncio, ou um número expressivo de homens que aceitam ajuda profissional para entender o que eles sentem, como e por quê.
Texto escrito em parceria por Amanda Tracera e Kelly Ribeiro.
** A imagem em destaque é de autoria da editora Ana Vieira.