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Lupin e o poder da literatura enquanto herança familiar

Mais do que entregar todo o suspense, efeitos especiais, plot twists e o charme francês que o público espera, Lupin é um seriado original da Netflix que ainda oferece uma reflexão fundamental sobre literatura. Inspirado nos romances policiais clássicos de Maurice Leblanc, em especial os livros de Arsène Lupin, um ladrão de casaca francês, Lupin acompanha Assane Diop (Omar Sy) e é, sobretudo, uma narrativa a respeito de sua busca por vingança contra um aristocrata francês que falsamente acusa seu pai de roubo para obter o dinheiro do seguro sobre o item.

Após 25 anos, Assane decide vingar-se e para isso utiliza dos livros de Arsène Lupin e suas técnicas como ladrão de casaca na literatura francesa. Curiosamente, a série literária foi presenteada por seu pai durante a adolescência, mas os livros acabam se tornando um verdadeiro mapa para suas artimanhas contra a rica família Pellegrini na moderna Paris.

Sendo assim, entre as ruas famosas e belíssimas vielas secretas que mostram a França para além dos clichês de Emily em Paris, Assane Diop nos guia em uma jornada repleta de truques inteligentes que ficam no limite entre o real e o fictício. Mais ainda, nos provoca a pensar sobre questões urgentes ao abordar casos verossímeis que envolvem racismo, distribuição de poder, corrupção policial e tantos outros temas que apesar de serem tratados em um dos mais famosos países europeus poderia facilmente acontecer aqui, em território nacional. Até porque, no final do dia, está acontecendo enquanto conversamos sobre isso.

Apesar do enfoque girar ao redor da trajetória de Diop em busca de vingança e justiça pelo seu pai, punindo todos os envolvidos e descobrindo um sistema que apoiou o acontecido, Lupin nos apresenta a literatura como catalisador do enredo. Basicamente, não veríamos uma história tão boa se não houvessem livros de Arsène Lupin no plano de fundo de cada momento. Nesse sentido, o mais importante sobre a reflexão apresentada na série é como os livros são transmitidos entre gerações. Ou seja, primeiramente, o pai de Diop entrega os livros para inspirá-lo com uma saga que também foi transmitida para ele anteriormente. Logo em seguida, Assane Diop entrega os livros para que seu filho único tenha acesso a esse universo e aprenda sobre o herói favorito de sua família.

No geral, a narrativa nos apresenta Diop como fruto de uma família cuja ancestralidade é desconhecida, porque não há registros longevos suficientes para traçar uma árvore genealógica. Apesar dessa ser a história de tantos negros no mundo, a série vai além ao nos mostrar que por outro lado, Pellegrini e sua família portam a hereditariedade e as riquezas geracionais como brasões, utilizando o poder do sobrenome para justificar todo tipo de ação.

Portanto, a presença dos livros de Maurice Leblanc como fio conector entre o pai, Diop e seu filho transformam a literatura em um elemento comum entre diferentes gerações. Apesar de Diop não conhecer seu avô, assim como acontece com o próprio filho, há uma conexão desenvolvida por meio dos livros compartilhados entre eles, que contam a história de um mesmo personagem, mas os impactam de formas diversas.

Por um lado, o pai de Diop utiliza dos livros para aprender mais sobre a cultura francesa, tendo em vista que sua família é originária de países africanos que falam francês, mas são todos imigrantes em uma região desconhecida. Por outro lado, o protagonista os utiliza inicialmente como passatempo, até que apaixona-se pela história e eventualmente a transforma em instrumento para seus planos de vingança e retribuição. Finalmente, seu filho os lê com a intenção de se aproximar do pai ausente e aprender um pouco mais sobre o lado da família que pouco conhece, tendo em vista que é fruto de um relacionamento interracial em desequilíbrio.

A literatura torna-se uma herança familiar que os conecta apesar da diferença geracional e de realidade. Ainda que esteja engendrado em seu plano de vingança, Assane Diop encontra em Arsène Lupin uma forma de conectar-se com seu filho e manter a relação com o pai em mente, sempre citando-o nas conversas como uma referência importante apesar do fim trágico de sua vida. Ademais, por meio desses livros, Diop consegue fazer com que seu filho entenda a importância da loucura que está executando, aproveitando da ficção para posicionar-se não como herói, mas como alguém buscando justiça da maneira mais inteligente possível.

Como consequência, tem-se os livros, os personagens fictícios e o universo construído em uma das sagas mais clássicas da literatura francesa como pano de fundo para um desenvolvimento narrativo que percorre todos os personagens. Em outras palavras, seja o melhor amigo nerd da escola ou a filha do seu maior inimigo, todos são impactados pela existência de Arsène Lupin enquanto elemento cultural por meio das ações de Assane Diop.

A princípio, a inspiração do protagonista no personagem fictício parece de fato uma ação típica de produtos cinematográficos. Mas na medida em que as relações são traçadas e os livros tornam-se esse instrumento afetivo, de conexão entre pai e filho, e também de construção de sentido sobre o mundo, percebe-se que não é somente sobre um protagonista ou uma série literária. De certa forma, a utilização de Arsène Lupin como inspiração remonta o relacionamento do protagonista com seu pai, e a construção do relacionamento do protagonista com o próprio filho.

Por conta disso, a literatura transcende o espaço de passatempo ou elemento cultural para tornar-se protagonista na história juntamente aos outros personagens. Diante da relação dos personagens principais com a obra, descobre-se mais a respeito das engrenagens de cada relacionamento, da forma com que cada personagem compreende o mundo e os esforços de Diop em vingar-se no meio disso tudo. Mais do que um guia para os planos de Diop, os livros de Maurice Leblanc contam sua história enquanto pai, filho, amigo e esposo, utilizando da fantasia e da ficção para que os espectadores entendam suas motivações, falhas e a própria personalidade do protagonista.

Ao fazer dos livros que inspiraram a série uma peça fundamental no motor que desenvolve a narrativa, os produtores não somente uniram o universo literário com o cinema, mas também reforçaram a importância da literatura enquanto instrumento de transformação social. Seja como presente, material de estudo ou ferramenta de aprendizado, Lupin permite que os livros sigam além das páginas impressas ao mostrar o poder que a leitura tem ao longo da vida de um indivíduo, de uma comunidade ou família, afetando a formação da personalidade e do caráter, assim como pautando as escolhas em cada etapa do processo.

2 comentários

  1. Reflexão Incrível sobre essa série e a forma com que utilizam os livros como elemento de narrativa!
    Também gosto de como a literatura é usada como válvula de escape e para dar forças ao jovem
    Diop, quando ele perde o pai e se vê sozinho num país estrangeiro.

    Ótimo texto!

  2. Excelente reflexão, adorei! A série evidência msm como é importante uma cultura literária ancestral, e como a literatura nos transforma e nos completa…vida longa a Lupin!

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