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Lobisomem na Noite: uma homenagem da Marvel aos monstros da Universal Studios

O primeiro filme de horror da história, A Mansão do Diabo, foi dirigido por George Meliès ainda em 1896. Entretanto, o gênero demorou a consolidar as suas características e a se firmar como o conhecemos atualmente. Isso só foi acontecer duas décadas depois do curta em questão e em outro país europeu, a Alemanha. Devastada pela Primeira Guerra Mundial, a Alemanha procurava por maneiras de se reerguer e a arte produzida no país falava sobre o clima de incerteza e obscuridade que o rondava. Assim, um dos estilos mais prolíficos deste contexto foi o Expressionismo, que despontou primeiramente na pintura e na poesia, mas logo migrou para o cinema, se tornando um dos mais reconhecidos da atualidade.

Atenção: este texto contém spoilers!

No Expressionismo Alemão o mundo era retratado de maneira distorcida e subjetiva, o que espelhava as angústias sociais do contexto. Além disso, o conceito de helldunkel se fazia muito presente para destacar o jogo de luz e sombra das produções, que já existia na pintura desde o Renascimento, mas foi aprimorado pelo cinema. Devido a todas essas características, os filmes expressionistas se assemelhavam bastante a pesadelos e acabaram servindo de base para dois estilos de cinema estadunidense bastante populares durante as décadas de 1930 e 1940: os filmes de monstro e o filme noir.

Os filmes de monstro eram produzidos pela Universal Studios e atualmente são considerados clássicos. Vampiros, lobisomens e todo tipo de criaturas foram capturadas pelas lentes dos cineastas e representaram os primeiros passos do cinema de horror na América, de modo que a sua importância para o gênero é gigantesca. Logo, vê-los sendo resgatados em 2022 pelo especial Lobisomem na Noite (Werewolf by Night), da Marvel Studios, foi um verdadeiro presente para qualquer fã de horror.

Em Lobisomem na Noite, assistimos a uma reunião de caçadores após a morte de Ulysses Bloodstone (Richard Dixon), o detentor de uma pedra poderosa que será passada ao vencedor de uma caçada de monstros promovida na propriedade da sua família. A reunião conta com a presença de Jack Russell (Gael Garcia Bernal), que esconde um segredo surpreendente e responsável por mudar os rumos do evento. Na verdade, Jack está na disputa menos pela pedra e mais pela possibilidade de libertar Ted (Carey Jones), o monstro que está sendo caçado pelos demais participantes. O caçador possui um laço de empatia com a criatura uma vez que ele mesmo sofre com a licantropia.

Desse modo, o resgate dos monstros clássicos da Universal Studios acontece, primeiramente, do ponto de vista do enredo. A ideia de usá-los como metáfora e de tratar a sua condição como algo que precisa ser mantido em segredo não é uma novidade. James Whale, responsável por longas como Frankenstein e O Homem Invisível, inseria nos seus filmes subtexto queer em um período no qual os longas hollywoodianos eram marcados pela censura imposta pelo Código Hays. Whale era homossexual assumido e não deixava de falar, ainda que de forma velada, da exclusão que pessoas LGBTQIA+ enfrentavam neste período. Assim, ele as aproximava da figura do monstro, visto que ele sempre vivia em um lugar fisicamente isolado e era temido por não ter a sua verdadeira natureza conhecida. É interessante citar ainda que o monstro somente passou a conviver em sociedade nos anos finais da década de 1960, algo que pode ser visto em produções como O Bebê de Rosemary (Rosemary’s Baby, 1968) e A Noite dos Mortos-Vivos (Night Of the Living Dead, 1968).

Antes disso, eles sempre ocupavam espaços como castelos e florestas dos quais as “pessoas normais” eram orientadas a manter distância. Porém, Jack consegue se inserir socialmente. Ele conquista reconhecimento como caçador, de modo que os demais não enxergam a figura de um monstro imediatamente e não o tratam como pária, mas sim como um igual. Após a pedra revelar a sua verdadeira identidade, as coisas mudam porque a licantropia é descoberta e, agora, mata-lo passa a ser a obrigação dos demais presentes na caçada. Menos a de Elsa Bloodstone (Laura Donnelly), a filha rebelde de Ulysses, que deseja possuir a pedra para acabar com o legado da sua família. A partir da descoberta da identidade do protagonista, ele passa a ter em comum com Elsa a não aceitação dos demais, visto que ela é a única pessoa cuja participação é questionada, ainda que a sua mãe deixe bem claro que não está disposta a favorece-la. O laço entre Elsa e Jack também é algo bastante presente nos filmes clássicos de monstros, visto que “a criatura” sempre conta com alguém que entende a sua verdadeira natureza e sabe que, por vezes, o ataque é somente um mecanismo de defesa.

É importante deixar claro que as referências ao cânone do horror não se dão somente por meio do enredo. Elas estão nos aspectos formais de Lobisomem na Noite, seja no filtro que remete a filmes antigos ou na maneira como os diálogos são escritos, cheios de ambiguidades e deixando claro que existe algo não dito, mas que em breve será mostrado ao público. O texto da produção remete bastante ao filme noir, que era marcado por personagens moralmente questionáveis, mas que não faziam esforço para esconder a sua verdadeira natureza, de modo que as produções do estilo podiam até se encaminhar para rumos inusitados, mas eles nunca eram verdadeiramente surpreendentes porque algo pairava no ar e denunciava que aquelas pessoas seriam capazes de tomar as atitudes que tomaram.

Nesse ponto, é interessante pontuar que o que entrega bastante essa ideia de que existe algo que precisamos descobrir é a atuação de Gael García Bernal. O ator nunca dissimula a verdadeira natureza de Jack e é intrigante desde os seus primeiros momentos em cena. Antes da virada de enredo que nos deixa saber que o seu personagem é um lobisomem, Gael adota diversos trejeitos de um cachorro, da maneira de se coçar à forma como anda em círculos antes de se sentar. Inclusive, a sua maquiagem é apontada por um dos caçadores como uma escolha inusitada, mas ela também serve para fazer referência à forma que Jack assume nas noites de lua cheia. Ou seja, o “caráter” do personagem está posto em todos os detalhes, mas nós ainda precisamos da revelação para conseguir chegar a uma conclusão definitiva sobre ele.

Para além dessas questões, o jogo de luz e sombras remete diretamente ao Expressionismo Alemão. Produções como O Gabinete do Doutor Caligari usavam esse artifício para criar distorção e para transmitir a ideia de que os personagens estavam presos em um cenário sem luz, no qual o pesadelo se tornava cada vez mais próximo e palpável. Em Lobisomem na Noite isso pode ser visto especialmente na cena da transformação de Jack, cuja sombra é projetada acima de Elsa enquanto ela está acuada e sentada no chão. Como o próprio Jack já havia manifestado o medo de não se lembrar dela após a transformação, nós também passamos a temer pela vida da personagem, que representa a única esperança do protagonista de escapar com vida de um local repleto dos seus piores e mais letais adversários. A cena em questão também presta uma homenagem a O Lobisomem, produção de 1941 estrelada pelo icônico Lon Chaney.

Para além das questões referenciais, o que soa tão fresco e animador em Lobisomem na Noite é o risco que a Marvel aceitou correr com este especial. Embora Doutor Estranho e o Multiverso da Loucura possa ser percebido como a primeira aventura do estúdio no universo do horror, visto que Sam Raimi conseguiu imprimir a sua marca na produção fazendo referências ao clássico Uma Noite Alucinante e a vários outros filmes do gênero, Doutor Estranho ainda se encaixa na lógica de algoritmo. Ou seja, é um filme usado para introduzir novos personagens que vão ganhar destaque em produções futuras, criando assim a necessidade de que quem consome o conteúdo da Marvel esteja atento ao que vem sendo feito — algo que se torna cada vez mais impossível, especialmente considerando a expansão do MCU também para o âmbito das séries.

Ainda que uma conexão possa ser pensada posteriormente para Lobisomem na Noite — e já existam especulações sobre Elsa Bloodstone e essa ligação —, até o presente momento o especial de Halloween da Marvel Studios é uma história fechada, que tem um início, um desenvolvimento e um fim em si mesma, rompendo com a ideia de que tudo precisa fazer parte de um todo e de um plano maior para merecer ser visto.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!