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Stranger Things: desconstruindo estereótipos desconstruídos de gênero

Stranger Things 2 entregou o mesmo tipo de entretenimento aquece-coração que a primeira temporada, tendo como um de seus maiores méritos o louvável desenvolvimento de personagens ao longo dos nove capítulos lançados no fim de outubro pela Netflix. Além da idade do elenco principal, que agora adentra a pré-adolescência, outra coisa que difere a segunda da primeira temporada foi a recepção que, dessa vez, veio acompanhada por certa polêmica.

A polêmica foi centrada na construção de Eleven (Millie Bobby Brown), a grande protagonista. Vivendo em isolamento com Jim Hopper (David Harbour), que a esconde até mesmo de seus amigos em uma tentativa de protegê-la dos remanescentes do Laboratório Hawkins, Eleven tem agora 13 anos e mostra-se crescentemente frustrada com suas condições de vida, limitada a um espaço inabitado, longe de seus amigos e, principalmente, de Mike (Finn Wolfhard), seu primeiro amor. Quando escapa da cabana na floresta em que vive com Hopper, a garota vai direto ao encontro daqueles de quem sente mais falta. Ela encontra Mike na quadra da escola em uma rara interação do garoto com Max (Sadie Sink), cujo contexto Eleven não compreende (e não se importa em compreender) no pequeno intervalo entre o surgimento das lágrimas e de sua fuga de volta para casa.

Pouco antes da cena, no entanto, Mike estava em uma das muitas demonstrações mal direcionadas (e típicas da idade) de insatisfação diante daquilo que ele interpretava como uma tentativa de substituir Eleven no grupo por outra garota — no caso, Max, que, ao seu ver, nunca poderia tomar o lugar da amiga que havia partido. O mesmo sentimento é espelhado por Eleven: ao ver Max se aproximar dos seu grupo de amigos — e mais próxima de Mike que dos outros meninos de acordo com o contexto que flagrou — ela reage com mágoa e raiva. Mesmo ao conhecê-la, o breve encontro é pontuado por frieza: Eleven ignora Max que tenta se introduzir e iniciar uma conversa com um elogio.

A normalidade das interações não foi suficiente para poupar Stranger Things das críticas a respeito da falta de sororidade demonstrada por Eleven para com Max, bem como a suposta falta de postura feminista e independente às suas demonstrações de ciúmes, que elevavam a importância daquele interesse amoroso em sua vida — alguns, inclusive, empregando o termo “macho” ao se referir a um garoto de 13 anos. Mike também foi criticado por liderar de maneira hostil com Max, excluindo-a do grupo de forma rude, por razões irracionais que nada tinham a ver com a garota.

A busca por tratos mais saudáveis em relacionamentos de homens e mulheres, e também por melhores representações de gênero, é um tarefa empreendida por um número crescente de pessoas, e com razão: ainda há um déficit de personagens femininas que se definam em relação a algo que vá além dos seus interesses amorosos, bem como uma escassez de personagens masculinos que sejam sentimentalmente inteligentes e responsáveis. Diante de tantas problematizações, no entanto, é válido questionar: o que ganhamos ao cobrar perfeição moral de personagens fictícios?

Feminista vs. sentimental

As críticas ao desenvolvimento de Eleven, apesar de mirarem na proteção da “essência” da personagem — que é colocada como poderosa e independente desde o início —, caem em uma armadilha muito familiar da análise feminista. Ao buscar distância do padrão passivo, doce e dependente que define o ethos feminino conservador, muitas vezes se esquece que a hipervalorização de uma racionalidade fria e sem sentimentos também representa um padrão machista. Parece básico, mas vale ressaltar: o patriarcado estabelece sua ordem não só pela exclusão sistemática de mulheres, como também pela desvalorização de tudo que é associado ao feminino, uma categoria arbitrária por si só. Mesmo que a sensibilidade venha a calhar em muitas situações — ou seja apenas uma resposta natural, ainda que inútil, mas que deve ser compreendida — sua associação à feminilidade e subsequente ridicularização é uma constante que deve ser questionada.

A demonstração não filtrada do ciúmes — com direito a frieza, mágoa e ataques de raiva — por parte de Eleven torna a personagem mais complexa, e não o inverso. Controvérsias a parte, o ciúme é um sentimento universal. O discurso está muito mais na forma com que a série decide trabalhá-lo do que na ação dos personagens em si. Apesar de Eleven expressar seus ciúmes por meio de frieza em relação à Max, a inimizade das duas nunca deixa o terreno da agressividade passiva para adentrar no da vingança, como acontece em grande parte das séries adolescentes, por exemplo. Elas não se tornaram amigas (ainda, porque acreditar numa inimizade duradoura por causa de um encontro é um pouco demais), tampouco inimigas reais. A antipatia de Eleven por Max não é legitimada pela narrativa, em um retrato que deixa clara a (esperada) imaturidade levemente cômica daquela situação. Se mesmo nós, millennials, não nascemos sabendo que o ciúme é uma resposta irracional que provém majoritariamente da insegurança, como uma garota de 13 anos, tão desajustada socialmente que é quase uma alienígena, poderia?

Uma narrativa que permite a coexistência de um comportamento rebelde e combativo e de sentimentos confusos de afeto advindos da insegurança é um ganho feminista, e não uma perda. Mulheres não são perfeitas, quem dirá garotas pré-adolescentes. Humanos sentem, pré-adolescentes sentem tudo um pouco mais. Inserir essa dimensão à narrativa de Eleven poderia ser um problema caso a caracterização de todo o resto das personagens, femininas ou masculinas, não fosse tão determinada a retratá-las como seres sensíveis que não passam pelas situações do enredo sem se afetar.

Mais interessante que o retrato das mulheres em Stranger Things — que poderia ser melhor em alguns aspectos, apesar da questão citada não ser um deles — é o discurso da masculinidade construído pela série.

Você não fez mais que a sua obrigação: a masculinidade moderna de Stranger Things

Podemos traçar o perfil da masculinidade promovida — e rechaçada — por Stranger Things por meio de seis personagens, três para o lado positivo e três para o negativo. Para representar o perfil promovido pelo discurso da série, temos exemplos de todas as gerações: Bob (Sean Astin), no ramo adulto; Steve (Joe Keery), no adolescente; e todos os garotos da geração mais jovem, mas focaremos em Mike por ele ter um papel de maior peso e se relacionar diretamente com uma personagem feminina igualmente problematizada.

Bob é um típico nice guy [cara legal], legal de um jeito tão puro e comum que é fácil subestimá-lo no começo da temporada. Ele é doce, atencioso e respeita os desejos de Joyce (Winona Ryder) mesmo quando é incapaz de entendê-los, como no emblemático episódio do mapa secreto de Hawkins. Reconhece sua vida como mulher e como mãe, entendendo — e isso é dizer muito quando tratamos de homens e, principalmente, do padrão de masculinidade valorizado e saturado na televisão — que ela já existia antes de existir com ele e, portanto, não irá replanejar sua vida ao redor dele. Em outras séries, provavelmente veríamos embates entre o tempo que ela gasta com a família versus o tempo gasto com o namorado, mas em Stranger Things, isso sequer passa pela nossa cabeça.

Steve, por outro lado, que na primeira temporada não ia muito além do estereótipo do bad boy bonitinho e cobiçado, tem um dos desenvolvimentos mais ricos da temporada. Desde o início da segunda leva de episódios, Steve aparece como alguém que tem sentimentos e não tem medo de mostrá-los, como quando visivelmente se deixa atingir pelas insinuações embriagadas de Nancy (Natalia Dyer) acerca da verdadeira natureza de seus sentimentos por ele. Em meio às loucuras crescentes de Hawkins — que, aliás, acontecem em um minúsculo intervalo de tempo —, ele nota o movimento de Nancy em direção a Jonathan (Charlie Heaton) e, ao invés de embarcar na ideia empurrada por seus colegas de que isso representa uma falha em sua masculinidade — que deve ser equilibrada com assertividade sexual —, ele respeita a mudança e incentiva Nancy a ir atrás do que deseja. Ao invés de reverter sua mágoa em possessividade ou agressividade, Steve não só a deixa livre para seguir seu caminho como permanece ajudando os meninos — um dos quais é irmão de Nancy e outro, de Jonathan —, em uma atitude que demonstra tanto sua capacidade de separar as coisas como sua sensibilidade e talento para lidar com crianças, uma habilidade culturalmente considerada feminina.

Ao avistar Nancy no baile alguns meses depois, ele refreia seu impulso de reconquistá-la e respeita seu novo caminho. Assim, Stranger Things encoraja que tais ações sejam vistas como corretas sem exagerar seu valor — a série não convida a audiência a venerar Steve por agir de forma decente, mas o desenrolar harmônico do enredo decorrente de suas ações nos levam a acreditar que elas foram escolhas acertadas.

Ao mesmo tempo, Mike, tal qual Eleven, lida com uma carga emocional muito maior do que ele consegue compreender ou suportar aos 13 anos. A pré-adolescência é uma época na qual somos introduzidos a uma paleta expansiva de sensações e experiências que são vividas pela primeira vez e muitas vezes compreendidas apenas algum tempo depois que elas acontecem. Mike acredita ter perdido o seu primeiro amorzinho — e não para uma mudança ou para outra pessoa, mas para forças do mal sobrenaturais que ele sabe que ainda não estão sob controle; ele acaba de recuperar seu melhor amigo dessas mesmas forças. A fragilidade dele é óbvia e se manifesta em um dos comportamentos mais criticados em todo o elenco masculino da temporada: seu tratamento frio e rude para com Max, a nova garota.

Ao buscar exemplos mais saudáveis de masculinidade no entretenimento, é fácil criticar as atitudes de Mike como mais um exemplo do raciocínio tóxico machista de culpar mulheres por tudo, a todo custo. Tal busca por perfeição discursiva acaba, em certas circunstâncias, nos afastando da verossimilhança necessária a qualquer trabalho de ficção. Pensando em como as coisas de fato acontecem, estranho seria se um garoto de 13 anos recém magoado não se sentisse ameaçado por algo que ele percebe como uma substituição da sua crush em seu grupo de amigos — grupo que, acima de tudo, parece não ligar para essa ausência tanto quanto ele. A forma como ele trata Max é condenável e irritante, mas é honesta (e comedida, visto que ele nunca faz algo além de dar alfinetadas e se recusar a acolhê-la no grupo; não há agressão verbal, física ou psicológica) da mesma forma que a rebeldia se manifesta em Harry Potter n’A Ordem da Fênix. Quando se trata de Eleven, Mike toma seu lado (ao agredir o chefe policial de Hawkins, por exemplo) e a trata com delicadeza e respeito; reconhecendo e admirando sua força e seus poderes.

Por outro lado, Billy (Dacre Montgomery), seu pai e até mesmo o pai de Nancy e Mike contrastam com as personagens citadas acima. Billy é violento, desrespeitoso, agressivo, impaciente e egocêntrico; todas as suas ações o levam ao destino de ser punido por Max, sua irmã. Seu pai o trata de forma violenta e autoritária, o que prova o quão ineficiente é uma educação com base em punições físicas e autoritarismo (tradicionalmente associados ao gênero masculino) como forma de disciplinar atitudes e promover comportamentos afetuosos. Já o pai de Nancy e Mike representa a negligência passiva caracteristicamente masculina, não tendo ideia da localização de seus filhos e não se importando com ninguém ao seu redor. Ainda que a série não o repreenda da mesma forma que Billy, somos convidados a encará-lo com, no mínimo, indiferença.

Um desequilíbrio inevitável

Ainda que eu discorde as críticas feitas ao retrato de Eleven na segunda temporada, é fato que Stranger Things tem poucas personagens femininas de destaque, e todas as que existem orbitam o grupo central de garotos protagonistas. Muitas críticas à série escolheram aderir a esse caminho ao invés de criticar Eleven em específico, aludindo com frequência ao Teste de Bechdel, que analisa não apenas a existência de mulheres em obras de entretenimento, como o teor dos diálogos travados entre elas.

Na conversa entre críticos sobre o retrato das mulheres na segunda temporada publicada no portal americano Vox, uma das participantes diz ter a impressão de que a série reserva apenas uma “vaga” para personagens femininas bem trabalhadas em cada faixa etária representada na série. Isso teria impedido uma caracterização mais profunda de Barb (Shannon Purser), na primeira temporada, uma vez que Nancy já ocupava o lugar de Personagem Feminina Complexa Adolescente; e teria feito o mesmo na segunda temporada com Max, já que só havia empenho, por parte dos roteiristas, em humanizar Eleven. No caso de Max, haveria outro agravante: a hostilidade à sua presença só fica mais branda depois da narrativa inseri-la em um triângulo amoroso.

A conversa também coloca a relação de Eleven com sua irmã perdida, Kali (Linnea Berthelsen), como uma oportunidade perdida de fazer a personagem feminina mais importante da série formar um laço significativo com alguém do mesmo gênero. Constance Grady, uma das críticas da conversa, diz que “Stranger Things existe em um mundo em que nada importa mais do que garotos de doze anos”, e ela não está errada. No entanto, também podemos questionar a abertura que uma série com um total de cinco crianças em seu núcleo central teria para explorar outras personagens a fundo de forma satisfatória. Talvez a proposta da série, por si só, inviabilize um retrato feminino muito melhor do que aquele que já é feito.

Podemos celebrar Stranger Things por retratar relações verossímeis entre suas personagens e respeitar sua existência multifacetada — ainda que essa existência sempre se dê em uma narrativa que prioriza as vidas de quatro meninos de 13 anos. Mesmo nesse contexto, a feminilidade enaltecida não é aquela que se “acomoda” às vontades masculinas — infantis, adolescentes ou adultas —, assim como o comportamento masculino recompensado pela narrativa é aquele que desvia da masculinidade tóxica. Ainda é mais do que podemos dizer da maior parte do entretenimento produzido hoje, especialmente daquele produzido por homens.

Bárbara Reis é estudante de jornalismo paulista de 20 anos, fala rápido demais, ainda não aprendeu a não colocar sua vida nas mãos de bandas de rock e tem o péssimo hábito de acumular livros para ler e séries para assistir.