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Caroline Kennard: a mulher que questionou Charles Darwin

Em dezembro de 1881, Caroline Kennard escreveu uma carta para Charles Darwin. Com uma caligrafia impecável, Caroline pedia que o autor de A Origem das Espécies refutasse a ideia, exposta a ela em um dos muitos embates pelos quais passava como participante de destaque do movimento feminino de Massachusetts, de que “a inferioridade da mulher era baseada em princípios científicos”. Com grande surpresa, Darwin respondeu a carta de Caroline, mas as palavras escritas pelo naturalista britânico só serviram para deixá-la completamente decepcionada.

Nascida no estado norte-americano de New Hampshire, em 1827, Caroline fazia parte da elite bem educada de Boston no final do século XIX e se casou com Martin Perry Kennard, construindo uma família com cinco filhos e vivendo confortavelmente com todos eles em Brookline, cidadezinha próxima à Boston. Seu círculo era de privilégios, mas ela queria ir além: junto de outras mulheres proeminentes da época, Caroline participava de um grupo que tinha como foco a reforma da educação e a ampliação da atuação da mulher na sociedade. Juntas elas fundaram o New England Woman’s Club, o primeiro do tipo nos Estados Unidos.

O interesse de Caroline por ciência e biologia — e sua posterior correspondência com Darwin —, veio dos compromissos assumidos por ela junto ao movimento de mulheres de Boston. Ela entendeu que o estudo da ciência e da natureza serviria como uma útil e poderosa ferramenta não somente para a reforma educacional que ela e suas companheiras de ativismo desejavam, mas que também poderia desmontar alguns dos sexismos perpetrados pela sociedade daquela época. Dessa maneira, quando outra mulher usou a teoria da evolução de Darwin para afirmar que a mulher é inferior ao homem, Caroline Kennard não pensou duas vezes e decidiu escrever diretamente ao autor da teoria para tirar aquela questão a limpo, pedindo a ele que “se houve um equívoco, o grande peso de sua opinião e autoridade deveria ser reparado”. Ela não podia acreditar que um gênio como Darwin faria tal afirmação, aceitando que, por natureza, mulheres seriam, de fato, inferiores aos homens.

Charles Darwin respondeu à carta, mas apenas reafirmou o conteúdo de sua pesquisa. “Certamente acredito que as mulheres, conquanto, em geral, superiores aos homens [em] qualidades morais, são inferiores em termos intelectuais e parece-me ser muito difícil, a partir das leis da hereditariedade (se eu as compreendo da forma correta), que elas se tornem intelectualmente iguais aos homens”. Como se isso não fosse suficiente, Darwin ainda conclui que não era uma boa ideia a mulher se tornar provedora, como os homens, para buscar equiparar a evolução, pois isso prejudicaria a criação das crianças e a felicidade dos lares. O que Darwin aconselhava à Caroline ia de encontro a tudo aquilo pelo qual ela e as outras mulheres do New England Woman’s Club lutavam: a independência e emancipação feminina.

Há de se levar em consideração que ainda que tenha sido um cientista e pesquisador de renome, responsável pela teoria evolucionária que mudaria a maneira como encaramos a ciência e a evolução das espécies, Charles Darwin era, ainda assim, um produto de seu tempo. Os estereótipos de gênero que ele usou para escrever sua resposta ao questionamento de Caroline eram normalizados na Inglaterra vitoriana, e tais pressupostos estavam presentes não apenas na pesquisa de Darwin, mas na de todos os cientistas contemporâneos a ele. A resposta de Darwin à Caroline a deixou profundamente ultrajada, e em janeiro de 1882, ela escreveu outra correspondência ao naturalista:

“Deixe que o ‘ambiente’ das mulheres seja semelhante ao dos homens, e com as mesmas oportunidades, antes que elas sejam julgadas — de maneira honesta — e consideradas intelectualmente inferiores à eles, por favor”.

Caroline lembrou a Darwin que o privilégio de permanecer em casa cuidando dos filhos e do lar era parte da vida de pouquíssimas mulheres e somente daquelas que estavam inseridas nos círculos mais abastados da sociedade. Mesmo essas mulheres, vale frisar, aceitavam a posição que lhes era ensinada a vida toda por mera construção social, visto que não conheciam nada além disso. As mulheres que não faziam parte das camadas mais ricas da sociedade, no entanto, contribuíam para o funcionamento das engrenagens de suas famílias tanto quanto os homens. Para muitas famílias vitorianas, a renda que as mulheres levavam para casa era essencial para que não passassem dificuldades e não faltasse comida na mesa. Enquanto aos homens era permitido exercer a profissão que quisessem, as mulheres, por outro lado, eram relegadas aos postos de trabalho com remunerações menores e que não exigiam capacitação técnica visto que ao final do século XIX, mulheres eram impedidas de exercer a maioria das profissões e eram excluídas da política e educação superior. Dessa forma, por necessidade, eram elas que se submetiam aos trabalhos mal remunerados e geralmente relacionados ao serviço doméstico e de cuidado, além de postos de base na indústria têxtil em crescimento.

A diferença entre homens e mulheres e sua força de trabalho não está relacionada à capacidade intrínseca a cada um dos gêneros, mas ao tipo de trabalho que lhes é permitido executar. Não há registros de uma segunda resposta de Darwin para Caroline Kennard e a manifestação de sua indignação estava coberta de razão, mas sua contribuição para ciência não ficaria restrita a sua famosa troca de cartas com o naturalista. Como cientista amadora, Caroline doou mudas de sua própria Ricus elastica — a seringueira — para a Boston Society of Natural History e, reafirmando seu compromisso com a ciência, foi homenageada pela irmã ao ter uma bolsa de estudos batizada com seu nome, a bolsa Caroline A. Kennard para ciência, concedida a uma estudante do Radcliffe College que tivesse interesse em seguir seus estudos na ciência. O Radcliffe College era, à época, uma das poucas instituições de ensino superior para mulheres — que, junto de outras seis instituições exclusivamente femininas nos Estados Unidos, formavam as Seven Sisters — e vinculado à Universidade de Harvard.

No final do século XIX, Caroline Kennard ousou questionar o pai da teoria da evolução, e tal questionamento reverberaria e criaria raízes em nossa ciência contemporânea. A ciência foi, por muito tempo, sexista: enquanto vista como um passatempo, algo recreativo, mulheres tinham acesso a ela, mas a partir do momento em que se transformou em algo “sério”, as mulheres foram deixadas às margens, sem poder contribuir ou ter acesso a laboratórios e pesquisas. É a partir daí que Angela Saini embasa a pesquisa de seu livro, Inferior é o Car*lhø, ainda a ser lançado no Brasil pela DarkSide Books — se a nossa biologia não determina nossa maneira de viver, o que mais a ciência tem omitido com relação às mulheres? Caroline Kennard plantou a semente dessa dúvida quando bateu de frente com Charles Darwin e, desde então, muitas mulheres têm dedicado suas vidas a desmontar essa falácia. Além de precisar lidar com discriminação, assédios e diversos tipos de abuso por parte dos homens, mulheres cientistas também precisam se provar para não serem retratadas como intelectualmente inferiores aos homens. Essas duas formas de sexismo perpetuam a ideia de que mulheres não conseguem prosperar na ciência por serem inferiores intelectualmente, mas nos dê o mesmo espaço e oportunidades que provamos o contrário — da mesma forma que Caroline Kennard fez.


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