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Circe: muito além de A Odisseia

Mitologia sempre foi um dos meus assuntos preferidos. Passeando pela Biblioteca Pública do Paraná, aos doze anos de idade, me deparei com a série Clássicos por Ruth Rocha e tive meu primeiro contato com A Odisseia e A Ilíada, versões da autora brasileira para os épicos escritos por Homero há mais de 2700 anos. Daquele momento em diante, tentei colocar minhas mãos em todos os livros disponíveis que falassem de mitologia, fossem da série Percy Jackson e os Olimpianos, de Rick Riordan, lançado anos mais tarde, ou Helena de Tróia, de Margaret George. Sendo assim, foi com muita curiosidade e empolgação que dei início à leitura de Circe, livro escrito por Madeline Miller e publicado no Brasil pela Editora Planeta Livros por meio do selo Minotauro.

A ideia de Madeline Miller ao escrever Circe não foi recontar A Odisseia, onde sua protagonista não é o foco, mas devolver à feiticeira a autonomia sobre sua própria história. Em A Odisseia, Circe nada mais é do que um capítulo na história de Odisseu, enquanto no livro de Madeline Miller conhecemos sua vida desde o nascimento, a infância na corte de Hélio, deus do Sol, e o conturbado relacionamento com a mãe, a ninfa Perseis, e os irmãos, os gêmeos Pasifae e Perses, e o caçula Aietes, sempre tão diferentes dela. A estranheza e a sensação de não pertencimento seguiram Circe da infância à vida adulta, visto que ela não parecia ter herdado algo do imenso poder do pai ou a beleza incomparável da mãe. Navegar por uma corte em que poder e beleza eram requisitos para o sucesso sem tê-los, de acordo com os padrões dos titãs, faz de Circe uma pária dentro da própria família.

“Noivas, as ninfas são chamadas, mas não era realmente assim que o mundo nos via. Éramos um banquete infinito disposto numa mesa, lindo e renovado. E péssimas em escapar.”

Sendo assim, quando Circe é banida por Zeus para uma ilha deserta é que tem início sua nova vida. Ainda que o banimento seja visto como um castigo, uma vez que Circe ameaçou o domínio dos olimpianos, é na ilha de Eana que ela descobre os poderes que carrega dentro de si desde o nascimento, mas que nunca aprendeu a dominar. Se, para seus parentes e membros da corte, Circe era apenas a filha menos talentosa e especial de Hélio e Perseis, para aqueles que aportam em Eana, ela se transforma em feiticeira, bruxa, deusa e mulher. A narrativa de Madeline Miller nos leva às profundezas do oceano, aos salões dourados de Hélio e à beleza selvagem de Eana enquanto nos faz percorrer os meandros do coração de Circe, suas tristezas e alegrias, suas frustrações e descobertas, seus maiores sonhos e pesadelos.

Em entrevista ao site Dead Darlings, Madeline Miller disse que desejava criar um novo mito, um novo épico para Circe, visto que as mulheres da mitologia nunca foram consideradas importantes o suficiente para terem suas histórias contadas dessa forma. Ainda que se baseie em alguns mitos para compor seu livro — Cila e Glauco, de Ovídio, Circe e Medeia, de Apolónio de Rodes, Circe e Telégono, um épico perdido, e no já citado A Odisseia, escrito por Homero — Miller recorreu à sua imaginação e inventividade para criar esse novo mito concentrado exclusivamente na figura de Circe. Poesia épica, de acordo com a autora, sempre envolveu histórias masculinas sobre guerra, herança e morte, mas, para Circe, Madeline Miller desejava outro tipo de trama, uma que, mesmo que não excluísse as guerras, as heranças e as mortes, fosse completamente centralizada na experiência de uma mulher vivendo cada um desses momentos. “I wanted the novel to be grounded in one woman’s experience. Gods and monster aside, this is a story of a woman coming of age, and into her power” [“Eu queria que o romance fosse centrado na experiência de uma mulher. Deuses e monstros de lado, essa é uma história de uma mulher se formando e entrando em contato com seu poder”].

“Eu não fiquei surpresa com o retrato que a canção pintava de mim: a bruxa orgulhosa desfeita diante da espada do herói, ajoelhando-se e pedindo misericórdia. Humilhar mulheres parece ser um dos passatempos preferidos dos poetas. Como se não pudesse haver uma história se não rastejarmos e choramingarmos.”

É dessa maneira que mergulhamos junto de Circe em uma jornada de autodescoberta e busca por independência enquanto a vemos aprender a dominar seus poderes, a conhecer o que Eana tem a oferecer e a lidar com a humanidade que vem bater à sua porta. Ainda que esteja banida do convívio com outros deuses, sejam eles olimpianos ou titãs, e proibida de deixar a ilha, não demora para que alguns navios surjam no horizonte de Eana e que deuses e humanos a visitem, estejam eles perdidos, em busca de ajuda ou ali apenas para entregar uma profecia. Durante a trama, aparecem outras figuras mitológicas na vida de Circe como, por exemplo, Dédalo, o famoso arquiteto e inventor nascido em Atena, seu filho Ícaro, a feiticeira Medeia, o já citado Odisseu, e alguns deuses como Hermes, Apolo e Atena. É interessante vê-los interagir e notar como Circe amadurece ao bater de frente com cada um deles, ficando cada vez mais certa de seu poder e do que significa ser uma bruxa em um mundo dominado por homens — sejam eles deuses ou humanos.

Filha de um deus e uma ninfa, Circe cresceu em um ambiente hostil por não ter correspondido às expectativas de seus pais. Crescer erguendo uma carapaça em volta de si para se proteger das zombarias de outras ninfas e deuses, fez com que Circe olhasse para as outras mulheres ao seu redor de maneira ácida, muitas vezes as menosprezando por suas “futilidades”. Como em toda boa história de formação (em inglês, coming of age) — e Circe pode ser enquadrado facilmente no gênero caso seja necessário rotular a obra de alguma maneira —, não demora para que a protagonista entenda que as outras ninfas não são o real problema da corte de Hélio, mas o modo de vida patriarcal que acorrenta todas elas. Longe do pai e de seus salões, Circe consegue compreender, pela primeira vez, como a estrutura que a oprimia desde a infância também pesava sobre as outras ninfas, inclusive sua mãe, Perseis, e sua irmã, Pasifae, sempre vistas pela feiticeira como duas pessoas totalmente diferentes dela.

Quando Circe consegue vê-las a partir dessa nova perspectiva, Madeline Miller mostra que, sim, é possível não aprovar o comportamento de uma mulher, por qualquer que seja o motivo, e ainda ser capaz de entender e até mesmo empatizar com ela e suas ações. Isso fica claro na passagem do livro em que Circe e Pasifae conversam com honestidade pela primeira vez em suas vidas; a narrativa de Miller demonstra as poucas escolhas disponíveis para mulheres em sistemas patriarcais (de ontem e de hoje) e como, para essas mulheres, não há saída. Agir conforme manda o “manual” — algo que Circe tentava fazer durante a infância, sentando-se aos pés de seu pai e esperando ser notada por ele — não impede que mulheres sofram, da mesma forma que elas são punidas e vilanizadas por perseguir o poder usando as armas de que dispõem, como no caso de Perseis e Pasifae. Feitas de vítimas ou vilãs, não há opções e Madeline Miller demonstra isso em Circe com maestria. O único caminho para que Circe — e também Pasifae — possa ter agência e domínio sobre sua vida, escolhas e destino, é por meio dos feitiços que correm em suas veias; fazer com que os homens a temam parece muito melhor do que temê-los.

Circe é um livro repleto de temas atemporais, um épico que fala de amor, perda, dramas familiares, intrigas, sofrimento e aprendizado. Em sua protagonista, Madeline Miller construiu uma mulher cuja força vai muito além do que se tornou comum dizer sobre personagens femininas na cultura pop: Circe reúne resiliência e ferocidade necessária para sobreviver em um mundo que jamais foi gentil com ela, cativando o leitor com sua jornada em um tempo de homens, humanos ou deuses, que tentam subjugá-la sempre que possível. Madeline Miller compõe as nuances da personalidade de Circe com habilidade, criando uma protagonista que encanta e cativa na mesma medida em que inspira; é fácil gostar de Circe, e até mesmo se identificar com ela, seus dilemas e desejos. A maneira como a autora costura a clássica história de Homero à essa nova versão de Circe é encantadora, e é com facilidade que o leitor se verá refém de uma trama vívida — é possível imaginar com riqueza de detalhes os salões de Hélio, os animais e vegetações de Eana, os olhos cinzas e duros de Atena ou o tear construído por Dédalo e que Circe mantém em sua casa. A riqueza da narrativa de Madeline Miller transforma Circe no épico que uma das bruxas mais antigas do mundo merecia, um conto em que ela é a protagonista e dona da própria história.

“Eu escuto sua respiração, morna no ar noturno, e de alguma forma isso me consola. Ele não está dizendo que não dói. Ele não está dizendo que não sentimos medo. Só que estamos aqui. É isso que significa nadar na maré, caminhar na terra e senti-la tocar seus pés. É isso que significa estar vivo.”

Em A Odisseia, Circe é citada apenas como uma bruxa que transforma homens em porcos, mas no livro de Madeline Miller podemos vê-la em constante crescimento enquanto descobre a si mesma e seu potencial enquanto deusa, feiticeira e mulher. Sua jornada em busca de independência, autonomia e controle de seu próprio destino é capaz de ecoar em nossas próprias vidas, mesmo que, em nosso caso, não existam deuses cruzando os céus com suas bigas de raios de sol ou monstros marinhos com várias cabeças ameaçando os oceanos. Bacharel e Mestre em Estudos Clássicos pela Brown University, nos Estados Unidos, Circe é o segundo romance de Madeline Miller; antes a escritora publicou o aclamado A Canção de Aquiles, pelo qual recebeu o Orange Prize de Ficção. Circe, eleito a Melhor Fantasia de 2018 pelo Goodreads Awards, conta, por meio de uma narrativa contemporânea, a história de um mito de mais de dois mil anos, o que apenas demonstra que muitas estruturas permanecem as mesmas e cabe a nós continuar lutando para mudar esse cenário, um épico por vez.

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O exemplar foi cedido para resenha como cortesia pela Editora Planeta Livros.


** A arte do topo do texto é de autoria da nossa colaboradora Carol Nazatto. Para conhecer melhor seu trabalho, clique aqui!

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2 comentários

  1. A mulher tem que ser livre como o vento, que é soprado pelo o mar e elevado para os céus.

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