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Horror e amadurecimento em Sem Seu Sangue

Quem acompanha o Valkirias já deve ter esbarrado várias vezes com o termo coming of age e sua relevância dentro do cinema. Usado para designar filmes que tratam da adolescência e do amadurecimento, o gênero fez sucesso nos anos 80 com o diretor John Hughes (de O Clube dos Cinco e Gatinhas e Gatões) e pode ser lembrado mais recentemente com ótimos (e meus favoritos) Lady Bird: A Hora de Voar (2017), Fora de Série (2019) e Quase 18 (2016). Ser adolescente é constantemente retratado como complexo, uma fase transitória cheia de altos e baixos. Mas existem ocasiões onde a adolescência é mais do que um período difícil: é um verdadeiro terror. Filmes bem populares do gênero como Carrie, a Estranha (1976) e Grave (2016) podem ser interpretados como coming of age de horror.

O ponto que une ambos os coming of age de horror citados acima é o protagonismo feminino. A pesquisadora Beth Younger, em seu texto no site The Conversation, afirma que o horror contemporâneo é um terreno fértil para histórias protagonizadas por mulheres. Como exemplo de uma renascença do gênero, a autora cita A Bruxa (2015), que conta com a jovem Thomasin (Anya Taylor-Joy) no papel principal, sendo o filme uma amostra perfeita da congruência entre os dois grupos cinematográficos. E não é apenas de exemplares anglófonos que sobrevive o subgênero. Selecionado pela Quinzena dos realizadores do Festival de Cannes, Sem Seu Sangue, de Alice Furtado, é o coming of age de horror brasileiro que está disponível na Netflix.

Aviso: este texto contém spoilers!

“E ela começou uma dança, no ritmo do que se foi”

Em Sem Seu Sangue, acompanhamos Silvia (Luiza Kosovski), uma introvertida jovem no ensino médio. É na escola que ela conhece Artur (Juan Paiva) e os dois iniciam um relacionamento intenso, característico da idade. Nos breves momentos que o filme se dedica ao amor dos dois, testemunhamos que o garoto sofre de uma doença incurável, a hemofilia, e por isso deve tomar cuidado redobrado ao realizar qualquer atividade (o que não acontece). O romance é bruscamente interrompido por um acidente fatal que tira a vida dele, deixando Silvia desolada. Os pais de Silvia resolvem levá-la para tirar umas férias em uma casa no litoral, distante das circunstâncias que a levaram à depressão. Nesse período, ela continua vivenciando o luto, mas toma um rumo distinto: resolve que vai trazer o namorado de volta a vida.

Sem Seu Sangue

Sem Seu Sangue envolve a trama em uma atmosfera onírica, misturando a narrativa presente com flashbacks do casal e inserts para construir uma fragmentação ainda maior na história. As sequências claras e urbanas vão sendo substituídas por um tom sombrio que corresponde aos sentimentos de Silvia, além da estética de iluminação neon, recurso já repetitivo em obras do gênero. O som é preenchido pelo ambiente e pelos poucos diálogos que se desenvolvem, entrecortados por breves narrações da menina.

À medida que mais personagens são introduzidos ao novo cenário, um foco principal dos primeiros momentos se perde: a preocupação dos pais com Silvia. No início, a jovem parecia uma ameaça constante a si e ao mundo, o que desperta em seus pais a necessidade de mudanças. Contudo, os dois são deixados de lado enquanto Silvia explora a localidade. Com um desenvolvimento muito preenchido por essas sequências da menina apenas vagando e ouvindo histórias dos residentes locais, Sem Seu Sangue perde um pouco do potencial da personagem. Quando ela retoma seu crescimento, já está perto de uma conclusão.

Apesar de trazer a temática de volta dos mortos/filme de zumbi, Sem Seu Sangue é uma obra muito sutil na inserção do assunto e demora na sua realização. São breves as citações dos efeitos do ritual realizado pela menina, até chegar ao fim . Provavelmente seria um ganho maior se houvessem menos cenas soltas para preencher o meio e mais objetividade, sobrando assim mais tempo para as consequências de trazer Artur à vida.

O longa-metragem de Alice Furtado ganha pelas atuações acertadas, principalmente da protagonista, que emula bem a dor da perda e o sentimento de vazio. O luto a leva a atitudes inimagináveis e a uma busca com resultados perigosos. O filme é movido pelo desejo por amor a qualquer custo, a inconsequência adolescente e por várias tentativas de entender a si mesma no meio do processo da perda. Colocando a figura da jovem como alguém ameaçadora, a diretora entrega um bom coming of age de horror em sua estreia.

Diretoras de horror do cinema brasileiro por que assistir? 

Sem dúvidas, o nome mais proeminente do cinema brasileiro de horror ainda é um nome masculino: José Mojica Marins, conhecido como Zé do Caixão. O diretor faleceu em fevereiro de 2020 e deixou um legado que influenciou e influencia muitas obras. Isso não significa que não existem mulheres atrás das câmeras nos longas do gênero. No entanto, antes de entrar nos nomes de mulheres que nos assustam e arrepiam no cenário nacional, é válido ressaltar dois pontos: a direção feminina é quantitativamente menor que masculina e frente a comédias e dramas, a produção de filmes de horror é menor.

Em estudo promovido pelo GEMAA — Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) —, descobriu-se que apenas 2% dos filmes com mais de 500.000 espectadores entre 1970 e 2016 tinham mulheres no cargo da direção — e todas eram brancas — demonstrando não somente uma disparidade de gênero mas de raça também. A respeito da segunda afirmação, a pesquisadora Laura Cánepa, referência em estudos do gênero, aponta em sua tese Medo de quê?: Uma História do Horror nos Filmes Brasileiros que o primeiro filme de horror brasileiro só foi lançado em 1964, justamente por Mojica Marins, apesar da produção nacional ser bem anterior à data. Além disso, atualmente nenhum filme de horror figura entre as maiores bilheterias do país.

Entretanto, existem algumas diretoras fazendo cinema de horror que merecem destaque. Publicado na coletânea Mulheres Atrás das Câmeras: As Cineastas Brasileiras de 1930 a 2018, o artigo “Poesia, Morbidez e Insurgência: As Diretoras do Horror Nacional”, de Beatriz Saldanha, aponta a origem da direção feminina nos filmes do gênero e as realizadoras contemporâneas de destaque. A primeira delas é Juliana Rojas, responsável por Trabalhar Cansa (2011), ao lado do parceiro Marco Dutra. Rojas também dirigiu uma série de curtas que flertam com o horror, como O Duplo (2012). Outra diretora do gênero que vem marcando o nome no cinema nacional é Gabriela Amaral Almeida, de Estátua! (2014) e O Animal Cordial (2017). Anita Rocha da Silveira, de Mate-me, Por Favor (2015) também é recorrente em listas com a temática. Clarissa Appelt, Marina Meliande e Amanda Maya são outras diretoras citadas pelos trabalhos a frente da realização cinematográfica.

Assim como Sem Seu Sangue, muitas das obras dessas diretoras tematizam vivências a partir do ponto de vista de garotas, como é o caso de A Sombra do Pai (2019), segundo longa de Gabriela Amaral, protagonizado por uma menina de nove anos. A maternidade também é recorrente nos longas, como em As Boas Maneiras (2017), último longa de Juliana Rojas. É perceptível que a representatividade atrás das câmeras tem seu impacto no que vemos na frente das lentes. Diretoras estão interessadas em contar histórias de outras mulheres em diferentes etapas da vida. E nós queremos assistir cada vez mais.

Por mais mulheres assustadoras

É perceptível que o cinema de horror no Brasil ainda tem para onde crescer. Por ser um gênero mutável, que aposta no novo e no diferente para assustar, podemos acreditar que ainda existem muitas temáticas a serem exploradas. As diretoras citadas, assim como Alice Furtado, ainda vão surpreender os espectadores com novas histórias, que representarão as mulheres em suas mais diversas facetas. Os primeiros passos na representatividade da adolescência monstruosa já foram dados. Por mais que tenha suas inconsistências, Sem Seu Sangue é uma boa mistura entre o filme adolescente de amadurecimento e o horror que isso pode significar.

Sem Seu Sangue