“Somos as filhas de todas as bruxas que vocês não conseguiram queimar. Bem poderia ser verdade: a Inquisição nunca conseguiu queimar uma bruxa sequer, então a descendência das legítimas é extensa. Sei disso de fonte segura: sou uma delas, afinal.”
Ísis Rossetti é uma das tantas bruxas com ordens do Conselho de monitorar desobediências e crimes de cunho sobrenatural. Responsável pela cidade de São Paulo, ela precisa se desdobrar em várias para conseguir monitorar todas as ameaças à materialidade, além de, no entremeio de parar uma treta com uma deusa grega, por exemplo, arranjar tempo para lidar com os problemas dos comuns — como humanos sem poderes mágicos são chamados — como avisar sua amiga Dulce sobre a localização de moradores de rua ou dar uma mão para a delegada da Delegacia da Mulher, Helena, em encontrar mulheres desaparecidas.
Com a intuição como guia e poder mágico que vem diretamente da Terra, Ísis é ótima no que faz, no entanto, aos olhos do Conselho, sua ajuda aos humanos em assuntos que não envolvem o sobrenatural, é vista como rebeldia e quebra de regras, o que a faz ficar atenta às visitas periódicas do Corregedor, seu superior e fiscal das missões desempenhadas.
Mesmo que esteja passível de sofrer as consequências — mais uma vez — da sua desobediência, Ísis não se furta em ajudar quando sente que deve. O caso da vez é o de uma mulher desaparecida, em que o companheiro é suspeito. No caminho da investigação, o desaparecimento de Valentina, uma criança com pais ricos, também chama a sua atenção. Enquanto tenta desvendar a verdade por trás desses mistérios, em um vai e vem frenético por São Paulo, Ísis também recebe um pedido de ajuda de sua amiga Fernanda para a limpeza de um terreiro vandalizado a mando de um pastor de uma igreja evangélica. É mais um caso que se junta a lista da bruxa e, à medida que as investigações avançam, ela percebe que os três casos podem estar ligados. Assim, para evitar que algo terrível aconteça, como a quebra de um antigo selo, ela precisa correr contra o tempo para desvendar os meandros de cada um.
Lançado em 2019, Porém Bruxa ganhou uma nova casa em 2023, sendo republicado pela Editora Suma, com revisão e edição atualizadas, contendo uma carta inédita da autora aos leitores, além de dois contos, “Apesar de Telepata” e “Agora Diplomata”, sob o ponto de vista do Corregedor de Ísis, Victor Spencer. Escrito por Carol Chiovatto, o livro traz uma perspectiva contemporânea e cheia de frescor para as tradicionais histórias de bruxa, nos presenteando com a abordagem de temáticas atuais e com uma gama de personagens diversos construídos de forma natural e tridimensional.
Eloquente, irreverente e cativante, a escrita de Carol Chiovatto leva o leitor a devorar avidamente as páginas, incentivado pela personalidade obstinada e língua afiada de Ísis e o mistério que se desenrola na medida certa ao longo da trama. A construção da personagem principal é um dos pontos fortes de Porém Bruxa, com Ísis intrigando o leitor já no prólogo e crescendo ao longo do livro, com a atitude segura de si e leal aos seus princípios, ao mesmo tempo que nos presenteia com momentos de vulnerabilidade, de dor e chateação, de insegurança e medo de falar sobre seus traumas e dos abusos que sofreu, mesmo que ajude todos os dias mulheres a sobreviverem aos seus. Neste quesito, Ísis me lembrou muito Sidney Sage, da série Laços de Sangue, de Richelle Mead, alguém com um papel importante no mundo sobrenatural, mas que, apesar disso, é também humana, com dúvidas e inquietações que nos aproximam.
Os personagens secundários também são uma delícia de acompanhar e são a cola que sustenta toda a trama de Porém Bruxa. A rede de apoio que Carol criou para Ísis é de dar inveja, seja por toda amizade e companheirismo que prestam uns aos outros ou por, mesmo com poucas aparições, ser possível deixar uma impressão tão forte e bem trabalhada dos personagens.
“É que o poder dos deuses vem da fé de seus seguidores. Da fé íntima, legítima, não a proclamada em voz alta.”
Para que a história como um todo seja tão incrível, é o amontoado de detalhes que fazem a diferença, e a autora tem consciência disso. As reviravoltas, seja nas descobertas que cercam Ísis e Victor ou das investigações, as curtas cenas de assédio no meio da rua que Ísis sofre, tão rápidas e passageiras, mas que são tão marcantes e incômodas tanto para ela como para quem lê, os pequenos fragmentos da vida rotineira em São Paulo, que nos fazem vivenciar a delícia de ler uma história puramente brasileira, o modo sensível e rico em pesquisa com o qual a autora constrói a mitologia de seu universo, usando mão da riqueza religiosa cultural brasileira, do candomblé ao conhecimento secular dos indígenas; empreendendo um tom crítico e pungente ao tratar das diferenças religiosas e como os preconceitos e discursos de ódio servem de combustível para ataques a terreiros e afins, além de contribuir para uma sociedade permeada pelo fanatismo e opressão.
Já os dois contos extras desta edição provam ainda mais o talento da autora e as mil e uma possibilidades que o universo de Porém Bruxa reservam e como expandi-lo com uma continuação é uma decisão acertada. Ainda há muito que explorar, principalmente se a autora mantiver a decisão de mergulhar mais a fundo na Cidade dos Nobres e nas dinâmicas de poder e relações que o Conselho reserva. Anna, sobrinha de Victor, e Lilia, a mais nova Conselheira, são adições bem-vindas e que entram para o rol de personagens femininas que trazem um sorriso ao rosto.
Em suma, o que Carol Chiovatto faz em Porém Bruxa é, pura e simplesmente, mágica — do melhor tipo, a que encanta leitores.
O exemplar foi cedido de forma antecipada por meio de parceria com a Companhia das Letras.
Participamos do Programa de Associados da Amazon, um serviço de intermediação entre a Amazon e os clientes, que remunera a inclusão de links para o site da Amazon e os sites afiliados. Se interessou pelo livro? Clique aqui e compre direto pelo site da Amazon!