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Perigo: mulheres na direção!

O título deste texto foi escolhido como referência a um outro pensamento recorrente na cultura patriarcal: mulher no volante, perigo constante. Ainda que atualmente as mulheres já estejam no comando de seus carros em um número muito maior, a ideia preconceituosa ainda é bastante repetida ou parafraseada. Aliás, ainda existe uma grande resistência às mulheres no comando não só no trânsito, mas em várias outras esferas. Entre todas as áreas em que as pessoas parecem temer a liderança feminina, vamos falar aqui sobre a direção — não de veículos, mas de filmes e, devo acrescentar, o papel global da figura da cineasta.

Antes de mais nada, talvez seja importante destacar o que chamamos de cineasta neste texto. Muitas vezes, a palavra cineasta é utilizada apenas como sinônimo de diretor. Não se deve desconsiderar esse significado, mas aqui focaremos em pessoas que dirigem e também escrevem os roteiros de seus filmes, por conta própria ou na companhia de co-roteiristas. Em alguns momentos, podemos diferenciar esses profissionais como diretores e roteiristas ou, ainda, algum outro sinônimo a fim de evitar repetições no texto. De todo modo, é necessário delimitar o que é o cineasta, pois abordaremos o conceito de autoria.

A autoria de um filme pode ser legada a produtores, diretores e roteiristas: aqueles que tomam as decisões mais importantes para que a produção se realize. Ainda que muita gente participe da criação de um filme, esses três cargos são responsáveis pelas escolhas finais que fazem com que o produto corresponda às expectativas comerciais e tenham coerência temática. A teoria do autor, explicada brevemente no vídeo de Thiago Ora, normalmente coloca diretores como entidades míticas que criam o filme, mas não é incomum encontrar conflitos entre diretores e produtores pelo o que deve ou não estar na obra, em especial no caso de diretores contratados por grandes produtores para realizarem um filme.

Mulheres na direção

Produtores e empresas produtoras são as pessoas que captam e desembolsam o dinheiro para realizar produções cinematográficas; logo, em um sistema capitalista, não é à toa que muitas vezes eles se sintam no direito de dar a palavra final sobre aquilo que financiam. O roteiro, por sua vez, pode não ser o primeiro passo para a criação de um filme, mas normalmente é considerado a estrutura óssea deste, sobre o qual todo o resto é estruturado. Muitas histórias são escritas sem a certeza de que serão produzidas e, quando passam pelas mãos de diretores e produtores, normalmente são editadas até chegarem à sua versão final. A autoria de um filme pode, ainda, ter várias assinaturas, e é por isso que o recorte deste artigo são os roteiristas-diretores: desta forma, falamos sobre produtos com autoria centralizada em um único indivíduo — ao menos, teoricamente.

Grandes nomes do cinema

Antes de debater as obras de mulheres cineastas em contraste com a de homens na mesma função, é preciso refletir sobre a própria indústria cinematográfica. Para começar, pensemos nos cineastas mais importantes da história do cinema. Quantos desses nomes são mulheres?

Quando discutimos o cinema, a grande maioria dos diretores e roteiristas mais famosos ainda são homens, sendo a maior parte deles brancos, cis e heterossexuais. Como o cinema mundial se centra na influência cultural dos Estados Unidos, muitos dos nomes dessa lista também são estadunidenses, enquanto uma parcela menor, mas expressiva, é composta por europeus. Para obter uma lista que fuja da norma é preciso explorar um cinema menos conhecido, que sai do controle das grandes empresas que financiam esse padrão. Ainda assim, é bastante provável que muitos nomes da lista sejam os tais homens brancos, cis e heterossexuais estadunidenses ou europeus.

Guerra cultural

Todo o mundo é bombardeado por produtos culturais estadunidenses. Não basta querer conquistar territórios e acumular capital às custas de trabalho mal-remunerado e exploração de outros lugares: o imperialismo também quer expandir o soft power das nações dominantes. É parte do jogo do neo-imperialismo vencer também uma guerra cultural.

Em um resumo simplista e grosseiro, o soft power é a influência cultural e moral de um país sobre outros. Às vezes, ele é adotado diretamente como uma política de estado. Às vezes, ele é deixado sem muita atenção — mas isso também é política, só não tem o domínio oficial do estado. Para exemplificar, também de forma simplista e grosseira, pode-se dizer que o soft power do Brasil se constrói principalmente através do futebol e talvez do samba — aquilo que nos representa onde quer que estejamos no globo, ainda que não exista uma política forte de estado para fortalecer essa influência. Apesar de, no caso brasileiro, o país nem sempre ter recebido incentivo do estado para que a cultura o representasse lá fora, há exemplos contrários de uma forte influência estatal.

No caso da Coreia do Sul, por exemplo, o incentivo à produção audiovisual e musical é tão grande por ser compreendida pelo estado como chamariz para o turismo, como influência cultural revertida em venda de produtos e, principalmente, como fonte de riqueza. Não é à toa que a onda de influência coreana chamada Hallyu deixou o k-pop, os k-dramas, a culinária, e, mais recentemente, o cinema sul-coreano em evidência cada vez maior. Dados de 2019 estimam que 12.3 bilhões de dólares a mais circularam na economia do país, vindos apenas da onda Hallyu, além de estimular o turismo e melhorar a imagem do país. É de interesse do próprio governo oferecer incentivos para a cultura e sua exportação também como uma forma de tomar a autoria das narrativas sobre a península, que — importante lembrar — está em trégua da guerra contra a Coreia do Norte, conflito que tem bastante influência dos EUA e da China em lados opostos. Soft power é, portanto, um poder importante não só por trazer retorno econômico — o conceito é explicado de maneira simples e eficiente no vídeo do programa Greg News sobre k-pop —, ele é importante principalmente porque é capaz de transformar ideias sobre um povo, um lugar ou um acontecimento.

No caso da Coreia do Sul, já é possível perceber como a narrativa política tem a ver com cinema, mas vamos falar em especial sobre o caso dos Estados Unidos. É preciso, contudo, um panorama histórico para compreender melhor o soft power nos EUA e sua relação com o cinema produzido por mulheres.

O soft power dos EUA

Após a quebra da bolsa de valores em 1929, que mergulhou os Estados Unidos em uma grande crise econômica, a recuperação final do país se deu com o lucro sobre venda de armas e munição para a Segunda Guerra. Paralelamente a isso, a ascensão da indústria do Tio Sam começou a exportar o american way of life, um estilo de vida puramente baseado no consumo de bens, para escoar a produção de um mercado reerguido a partir da intervenção do estado na economia. O american way of life começou a se infiltrar nos países onde a política dos EUA tentava se impor através da cultura, uma vez que foi naquele momento que o cinema e o audiovisual começaram a se desenvolver também.

O soft power estava começando a ser esquematizado para se tornar uma arma de escala global, mesmo que ainda não tivesse sido batizado assim. Por outro lado, o país saiu vitorioso de uma guerra onde também veio a intervir diretamente, depois de alguns anos apenas sendo fornecedor de material bélico. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o lucro foi duplo: além de dinheiro, mais poder e influência. O hard power — este poder mais duro e direto — se juntou ao poder mais suave, e a combinação acabou coroando os EUA como grande potência mundial pelas próximas décadas e até os dias de hoje.

É importante destacar que a dinâmica entre o soft e o hard power é de retroalimentação. Quanto mais influência sutil você tem, mais influência direta você tem. E vice-versa: se você tem mais poder (inclusive bélico) e dinheiro, você pode seguir financiando uma indústria de entretenimento mais forte e eficiente em espalhar a sua cultura e aprovação pelo mundo.

É por isto que este texto recorre à metáfora bélica para falar sobre a influência do país: estamos sendo bombardeados pela cultura dos EUA desde o começo do século passado porque vivemos em uma guerra também cultural.

Cultura de guerra

Além do incentivo ao consumo de bens que muitas vezes deveriam ser investimentos, o american way of life foi se desenvolvendo também como um estilo de vida baseado na meritocracia, vindo de uma mistura de valores cristãos com (neo)liberalismo econômico. Se você lutar para possuir algo que deseja, recebe; assim como a vida de sacrifícios leva ao céu. Essa vida em constante batalha se desdobrou em outros sentidos a partir da adoção de uma política (neo)imperialista por parte dos EUA. Na intenção de ter domínio econômico na maioria dos territórios possíveis, há uma forte política de guerra e intervenção sobre outras guerras que sequer dizem respeito ao país norte-americano.

A cultura dos EUA carrega consigo, portanto, a filosofia da guerra. Se olharmos para os noticiários e as estatísticas, os números apontam com nitidez: há altíssimos investimentos públicos no setor militar. Com quase 40% do orçamento militar mundial, os Estados Unidos ultrapassam o que os próximos onze países juntos gastam nessa rubrica. O orçamento militar para 2022 foi de 778 bilhões de dólares, e para 2023 sobe para 813 bilhões.

Não é de interesse do país apenas vencer as próprias guerras ou aquelas nas quais intervém, mas também justificar a necessidade de estar naqueles conflitos. A cultura estadunidense cria imagens que se popularizam pelo mundo todo sobre determinados povos, por exemplo. Basta observar a nacionalidade da maioria dos vilões dos filmes — em especial os de super heróis e, claro, os de guerra. Pode-se notar também como os países que são palco das guerras desejadas pela indústria bélica dos EUA são recriados em tela de forma estereotipada e rasa, na maioria das vezes.

Se olharmos para as maiores bilheterias do cinema — desnecessário dizer que as produções serão dos EUA, porque só o país possui uma indústria com força para impulsionar seus filmes mundo afora —, vai encontrar blockbusters que são sobre guerras, militares ou super-heróis (que, vejam bem, não passam de combatentes com poderes sobre humanos seguindo os mesmos valores de exércitos, direta ou indiretamente). Não há muitas produções que batem recorde de bilheteria que não sejam sobre uma guerra. Avatar, filme de James Cameron que acaba de lançar uma continuação indicada ao Oscar de Melhor Filme em 2023, por exemplo, é sobre uma guerra em uma colônia. O líder de bilheteria não fala sobre um conflito colonizatório no planeta terra. Houve uma mudança no planeta onde a trama se passa e existe a impressão de que outros valores se mostram na ideologia da trama que seria a favor da preservação ecológica, mas a história é uma velha conhecida dos espectadores, porque o tema e até a forma como a trama se desenrola não muda.

A guerra é interessante para os Estados Unidos, que é uma fonte da própria sobrevivência econômica, como um tema central de suas narrativas. E, de fato, assim o é.

Heróis e suas jornadas

A base da maioria das histórias populares hollywoodianas é a jornada do herói: um esquema narrativo que apresenta o desenvolvimento de um personagem que vai descobrindo seus poderes (sobre humanos ou não) para usá-los em campo de batalha — literais e figurados, como a vida, por exemplo. A qualidade de uma produção não precisa ser julgada por suas bases ou temas. Existem formas boas e ruins de se alterar o mesmo script, mas existe uma monocultura ideológica quando o mesmo esquema narrativo se repete tantas vezes: a visão de que a vida é uma guerra parece ser a filosofia onipresente nos produtos culturais do país. Toda monocultura empobrece o solo, mas iremos falar um pouco mais sobre essas histórias únicas em breve. Por enquanto, vamos nos ater a comentar a estrutura padrão das narrativas.

A jornada do herói vem de uma das bases da civilização ocidental-cristã. Inspirado em narrativas épicas gregas e na própria história bíblica do herói ideal — o próprio Jesus Cristo —, a estrutura foi observada, registrada e sistematizada por Joseph Campbell. Ela pode ser base de produtos de diversas mídias: livros, filmes, peças de teatro, etc. Transformada com o tempo, a estrutura necessita de um conflito para ser construída e prioriza a vitória de um indivíduo que se define pelos valores morais de um povo, assim como os heróis das epopeias gregas clássicas incorporavam as características esperadas de um cidadão de sua nação em seu tempo (vale lembrar que o berço da democracia ocidental não considerava cidadãos gregos as mulheres, os estrangeiros e as pessoas escravizadas nas guerras).

Por séculos, essa ideia foi se desdobrando e se mantendo como base do entendimento de humanidade. Posteriormente, a imagem de um sujeito supostamente universal foi fundada com os debates do Iluminismo. Hobbes, Locke e Rosseau declaravam as mulheres como o contrário da sociedade chamada civilizada que estava se estabelecendo, e estas permaneciam excluídas da ideia de humanidade. Algum tempo depois, o pai da psicanálise afirmou, em O Mal-estar da Civilização, que as mulheres seriam contrárias à civilização e representariam a desordem e o retrocesso desta. Elas nunca foram vistas como a encarnação dos valores da sociedade, então não podiam ser as heroínas de suas próprias jornadas rumo à vitória civilizatória.

Ainda que existam obras que desconstruam tanto a jornada do herói quanto os valores para o protagonista, o ideal de indivíduo que temos hoje vem da mesma base filosófica: enquanto sociedade, ainda buscamos os valores dos cidadãos gregos e posteriormente, dos romanos. Homens, bélicos, intelectuais. Tudo que não é homem, não é conquistado através da guerra e vem do corpo ou das emoções, é diminuído. É a imagem deste indivíduo bastante particular que é incensada como divina e até o Deus cristão tem essas características: um homem — branco, na maioria das suas representações —, todo poderoso e onisciente, reinando sozinho sobre todo o mundo. É este o ideal construído através dos tempos e este o indivíduo considerado universal.

Em outras culturas, onde a valorização de outras formas de existência cria um contraste com este indivíduo ideal, existe espaço para outras narrativas. A estrutura narrativa japonesa mais comum, por exemplo, não se move pelo conflito e nem tem três atos, como as nossas. A característica herdada da tragédia e do drama gregos dá lugar a quatro atos e outros movimentos dos protagonistas e outras ferramentas de desenvolvimento da trama, como elaborado no artigo em inglês Kishotenketsu: Exploring the Four Act Story Structure”. Outro exemplo são as narrativas do povo Yanomami, muito mais ligado ao entendimento de coletividade, e que se voltam para a oralidade e uma construção compartilhada através do diálogo, como aponta a pesquisadora Hanna Limulja no livro O Desejo dos Outros: Uma Etnografia dos Sonhos Yanomami.

O perigo de uma história única

O perigo de uma única história, segundo a escritora Chimamanda Ngozi Adichie em seu livro e palestra de mesmo nome, é que se crie apenas um ponto de vista sobre um tema e se ignore todas as outras facetas, ainda mais quando a repetição deste mesmo ponto de vista é constante. O que nós entendemos por humanidade, hoje, é construído baseado em milênios de histórias criadas por homens para homens e, na maioria das vezes, sobre homens.

Historicamente, a criação de meninos e meninas diferencia quem não é considerado um indivíduo masculino desde o nascimento e, por milênios, essa distinção vem se construindo de formas diferentes nas tradições sociais ocidentais. A educação recebida, os estímulos e as possibilidades são diferentes desde que somos apenas meninos e meninas — algo evidenciado, por exemplo, na discussão proposta pelo filme Entre Mulheres, vencedor do Oscar de Melhor Roteiro Adaptado. Mulheres não são seres criados para serem bélicas e intelectuais. E, embora possam ser, a vivência é diferente e existe uma outra sensibilidade presente em quem se vê fora do espectro padrão baseado na masculinidade. Logo, desde a infância, meninos são preparados para um mundo feito para mantes os valores masculinos, bélicos e racionais — a narrativa tipicamente estadunidense, construída e reforçada nos anos recentes pela indústria cultural imperialista do país. Já as meninas não são preparadas para este mundo, aprendem outros valores e criam outra sensibilidade. Os temas que as cercam, as vivências, tudo é outro.

Obviamente, isso se manifesta na arte. E, no caso do cinema, é fácil perceber, a partir do resgate de temas e padrões narrativos de mulheres cineastas, que enquanto homens perpetuam a narrativa de guerreiros vencedores, as mulheres se debruçam sobre outras e lutam contra a história única que vem sendo repetida ao longo de tantos e tantos anos de formação da sociedade atual.

Cineastas e suas histórias

Mulheres na direção

Nossa breve análise se inicia apontando que foi apenas em 2010 que a primeira mulher recebeu um Oscar de Melhor Direção. Treze anos atrás, a premiação mais famosa do cinema estava em sua 82ª edição. Desde 1929, quando da primeira edição do Oscar, nenhuma diretora havia ganhado na categoria e, até o ano de 2023 — em que nenhuma concorreu ao prêmio —, apenas sete foram indicadas. Em 95 anos, apenas sete mulheres foram indicadas ao Oscar de Melhor Direção. A repetição da informação que você acaba de ler é intencional, um lembrete de que estamos falando sobre mais do que uma simples desigualdade ou equilíbrio: estamos falando sobre a exclusão sistemática de mulheres em cargos de decisão tanto quanto da sua falta de reconhecimento via premiações.

Kathryn Bigelow foi a primeira mulher a vencer o prêmio por Guerra ao Terror e, embora o Oscar seja um prêmio dos Estados Unidos, que não deveria ser validador da importância ou qualidade de uma obra, ele ainda é uma frente relevante na guerra cultural em que vivemos. Quando se tem o reconhecimento da maior premiação dos EUA — um epicentro de divulgação para o mundo — a visibilidade se torna global e, mesmo para aqueles que discordam do sistema, se torna uma forma de fazer com que suas ideias cheguem mais longe.

Desde a vitória de Kathryn Bigelow, somente duas mulheres venceram na categoria: Chloé Zhao, em 2021 — a primeira e única mulher não-branca a ter seu trabalho reconhecido pela premiação —, e Jane Campion, em 2022. Além disso, é interessante apontar que, antes delas, Bigelow passou pelo crivo de um público votante majoritariamente composto por homens brancos, cis e heterossexuais, com um filme que fala justamente sobre guerra (este, no entanto, não será analisado pelo texto, uma vez que não recebe a assinatura da diretora).

As vencedoras e as indicadas

Mulheres na direção

Chloé Zhao é a cineasta responsável por direção e roteiro de Nomadland. O filme que deu a ela o Oscar de Melhor Direção apresenta uma visão sensível sobre uma mulher que perda a casa em uma das grandes crises econômicas dos Estados Unidos. Vivendo em um trailer, a vida da protagonista não é fácil, mas o grande destaque é a maneira como o roteiro, baseado no livro de Jessica Cruder, não submete Fern (Francis McDormand) a nenhuma violência comum às mulheres. Na adaptação, o roteiro não deixa de fazer comentários sobre a vivência de gênero, mas poupa espectadoras da normalização e banalização da violência, e também deixa de ter como tema a discussão da vida considerada tipicamente feminina, oferecendo possibilidades que o cinema não reserva para as mulheres. Além disso, ao invés de olhar para a crise e explicá-la, a narrativa é explorada a partir das suas consequências cotidianas, para o pequeno, o doméstico, e não para o grandioso e global.

Também é com delicadeza e com sutileza que Chloé Zhao dirige Os Eternos, um dos muitos filmes do Universo Marvel. Recebido com pouco entusiasmo pelo público mais comum de super-heróis, o diferencial do longa é tratar com maior profundidade das relações humanas e sua complexidade ao invés de poderes sobre-humanos — o que chega a ser um milagre já que o filme precisa dar tempo de tela a tantos personagens ao mesmo tempo. Talvez, a baixa receptividade se deva justamente pelo fato de poderes e efeitos especiais ficarem em segundo plano, dando lugar aos dilemas da convivência, algo que não se vê com muita frequência ou profundidade no Universo Cinematográfico Marvel.

Já Jane Campion, até 2022, possuía como maior destaque de sua filmografia o longa O Piano, de 1993. O filme já havia lhe dado o Oscar de Melhor Roteiro e sua primeira indicação à Melhor Direção. Mas foi com O Ataque dos Cães que a cineasta voltou a ser indicada em ambas as categorias. Ao contrário de Chloé Zhao, que traz mulheres como protagonistas ou em grande destaque em suas narrativas, Campion elege dois homens como personagens centrais e os coloca como pontos chave da discussão subliminar sobre a masculinidade e como as imposições desta afetam as expressões da sexualidade. É fascinante a maneira como a cineasta guia seus atores e roteiro (adaptado) para mostrar outras construções de masculinidade, mesmo em um ambiente machista como o velho oeste estadunidense. O erotismo sutil também é criado com tanta delicadeza que leva a um novo parâmetro, que torna possível enxergar a sensualidade vinda do male gaze — o olhar masculino sobre a mulher na arte — como pornográfica, invasiva e, na verdade, nada sensual.

Além das três vencedoras, apenas outras quatro mulheres foram indicadas na categoria: Lina Wertmüller, por Pasqualino Sete Belezas, em 1975; Sofia Coppola, por Encontros e Desencontros, em 2004; Greta Gerwig, por Lady Bird, em 2018; e Emerald Fennell, por Bela Vingança, em 2021. Em comum, os filmes indicados e outras obras dessas mulheres trazem, além do protagonismo feminino, discussões sobre temas negligenciados por homens, como o tédio — marca de Sofia Coppola —, a solidão e a relação com mulheres próximas, como mães, irmãs e amigas — algo sempre presente nas narrativas de Greta Gerwig — e a solução de conflitos de forma sutil, por meio do diálogo, tentativa, entendimento e construção conjunta, e não pelo embate e imposição de soluções pelo uso da força. Mesmo quando tratam de temas mais pesados, como abuso e estupro, existe a preocupação em não expor o espectador à violência explícita — e, consequentemente, atrizes, por tais situações. O ponto de vista adotado também retira a vítima de um papel passivo e permite que sua história seja contada sem que o trauma se torne o ponto mais marcante em sua trajetória.

As cineastas premiadas oferecem perspectivas mais emocionais, sutis e menos voltadas para as violências. Além disso, discutem as diferenças de gênero sob uma perspectiva mais ampla e muitas vezes permitem que as personagens na tela estejam livres das expectativas impostas para seus respectivos gêneros, o que trás ao imaginário dos espectadores outras possibilidades imaginativas. A construção da cultura ganha novas narrativas, diferentes dos homens: bélicas, racionais e pouco profundas no que diz respeito à emoção.

Outros destaques

Essas temáticas e padrões narrativos também tornam-se evidentes quando olhamos para a filmografia de outras cineastas menosprezadas pelo Oscar, mas que possuem obras cheias de camadas, profundidade e sensibilidade artística. A experiência do sutil, da entrelinha, do diálogo e do cuidado é outra e deve estar na tela; se ela não encontra seu espaço é, sobretudo, porque não perpetua a narrativa identitária masculina, algo que molda a indústria cinematográfica alinhada aos valores bélicos estadunidenses — país que, como dito anteriormente, domina a produção cultural atual.

Sarah Polley, por exemplo, consegue ampliar a visão sobre as vivências femininas com delicadeza e compreensão, mesmo em um contexto de violência — o principal tema de Entre Mulheres. Vencedora na categoria de Melhor Roteiro Adaptado, a diretora no entanto, não foi indicada à Melhor Direção — uma incoerência diante da indicação do filme à categoria de Melhor Filme. Afinal, como pode um roteiro render um bom filme sem uma boa direção? No caso de Polley, o caso faz ainda menos sentido pois seu trabalho é especialmente voltado para a condução de várias atrizes em cena, num casamento de sucesso com a direção de fotografia, que torna a montagem do filme mais bonita e poética. Novamente, o tema da masculinidade sensível aparece como uma forma esperançosa e transformadora de enxergar o mundo, algo que raramente se vê em narrativas sobre o que é ser homem e o que se pode vir a ser quando se é visto como um.

Outro exemplo é o da cineasta Rebecca Hall, que assina a adaptação do longa Identidade e conduz uma discussão cheia de camadas sobre as várias formas como o racismo afeta a vida de duas mulheres negras — uma que pode se “passar” por branca, por ter a pele mais clara, e outra que não pode, por ter a pele um pouco mais escura. As implicações sociais sobre a sexualidade das duas e cada aspecto de suas vidas se mostram com nuances que raramente seriam vistas sem um olhar atento aos detalhes, muito comum às direções femininas. Hall teve seu filme cotado para o Oscar depois de receber indicações em outras premiações, mas, por fim, foi esnobado pela Academia. Identidade, no entanto, permanece uma obra prima em cada detalhe, como a fotografia, em preto e branco, o que reforça a dualidade presente no filme.

Há ainda outras diretoras e roteiristas talentosas em Hollywood e em toda a indústria cinematográfica mundial. Aqui também, listamos majoritariamente mulheres brancas e cis, mas precisamos também ampliar a visibilidade de histórias contadas por mulheres de outras raças e etnias e também trans e ainda de pessoas não-binárias. Existem muitas outras narrativas além das que já conhecemos e elas precisam ser contadas.

Ficam, então, duas últimas perguntas: considerando majoritariamente mulheres brancas, mas sabendo que a falta de visibilidade se estende a outros grupos, por que há tão poucas cineastas mulheres? E por que as que estão ativas são tão pouco reconhecidas?

O perigo de outras histórias

Mulheres na direção

Se o perigo de uma história única é que apenas um ponto de vista seja reconhecido como correto — o que prejudica aqueles que não estão no poder — existe, em contrapartida, o perigo de se ter múltiplas histórias. Quem teme a ameaça são aqueles que estão no poder: os homens, brancos, cis, heterossexuais do chamado norte global (basicamente, os Estados Unidos e a parte ocidental da Europa). Eles têm medo que outras possibilidades sejam vislumbradas por mais gente. Imagine um mundo em que os atritos sejam aliviados com diálogos e não guerra? Onde, ao invés de competir, as pessoas passem a se unir para superar as aflições em comum? Como é que as pessoas acreditariam que a guerra, nos moldes defendidos pelo imperialismo, é a solução para todos os conflitos se pudessem ver mais alternativas simbólicas nos filmes? E se elas começassem a tentar entender o outro ao invés de atacá-lo, quem apoiaria esses ataques? E se cada população entendesse as particularidades das outras sem tentar impor através de interferências bélicas os próprios valores? Quem é que restaria guerreando, dando à indústria armamentista tanto poder se a cultura fosse outra?

Não existe muito incentivo para que mulheres estejam presentes nos cargos mais altos em quase nenhum meio de trabalho, e no cinema essa tendência persiste. Os salários também são menores e as ofertas tendem a se dirigir para áreas sem poder de decisão criativa final. Tanto direta quanto indiretamente os desestímulos são grandes. Se somos menor número na escrita, direção e produção de filmes, existem menos de nossas histórias sendo contadas. Essa ausência narrativa faz parecer que é desimportante aquilo que acontece nas cozinhas e entre os serviços domésticos ou fora deles para as que podem se aventurar no mundo. Não é desimportante, mas contradiz o que se espera de mulheres: pensar, agir por conta própria, ser feliz e livre.

É perigoso ter mulheres na direção porque aquelas com senso crítico criam arte que incomoda os poderosos e empodera os desamparados. É uma ameaça ao patriarcado ter histórias desvalorizadas reconhecidas, e por isso eles temem a delicadeza, a sutileza e a própria denúncia que vem das mãos de mulheres quando elas estão no comando de suas próprias narrativas. E esse incômodo, que pode ser nomeado por eles como ousadia, pode ser batizado por nós como esperança: aquilo que nos move a mudar o mundo ao invés de simplesmente acatá-lo. Aquilo que nos faz atacar o sistema ao invés de aceitá-lo como está. Mas, ao contrário da guerra dos homens, a esperança de mobilização que vem quando outras narrativas surgem é de ataques sutis, de batalhas resolvidas de outras formas.

As possibilidades que vislumbramos no cinema produzido por cineastas mulheres são um raiozinho de luz para continuar nos incentivando a destruir o soft e o hard power que atualmente vencem a guerra cultural, mesmo que seja projeção a projeção nas telas dos cinemas. Não é a toa que sempre tentam apagar essa luz. Eles sabem como ela é perigosa. É perigosíssimo para o patriarcado ter mulheres criando arte.