Histórias (Im)Possíveis é uma minissérie que busca apresentar histórias protagonizadas por mulheres em datas-chave. O primeiro episódio, denominado “A Mancha”, foi exibido pela Rede Globo na semana do Dia Internacional da Mulher. Nele, Mayara (Luellem de Castro) é uma empregada doméstica que, após passar no vestibular, decide abandonar o trabalho para focar nos estudos. Embora sua empregadora, Laura (Isabel Teixeira), aparente ser moderna, ela demonstra resistência ao seu pedido de demissão. Esse é o mote da história roteirizada por Jaqueline Souza, Grace Passô, Renata Martins.
Atenção: este texto contém spoilers!
Logo no início do episódio, da janela, Mayara sonha, enquanto outras tantas empregadas domésticas limpam as janelas quase que dependuradas — um prenúncio. Ela rompe com o ciclo do trabalho doméstico em sua família, ao ingressar na universidade. “A casa-grande surta quando a senzala vira universitária”, uma de suas amigas diz. Mayara responde: “Senzala não, quilombo.”
Mayara acredita que Laura é uma empregadora “diferente”. Elas bebem café lado a lado, Laura pede para ser chamada pelo próprio nome, ao invés de “dona.” Todavia, Laura oferece resistência ao pedido de demissão de Mayara e sugere que ela permaneça como trabalhadora doméstica enquanto estuda. Ocorre que o curso dela é integral; nota-se, inclusive, que Mayara acumula as funções de cuidado com o lar e com a filha recém-nascida de Laura.
Mayara pede para sair mais cedo, Laura concede. Entretanto, a comemoração feita por Mayara em seu quarto de empregada, em razão da aprovação no vestibular, a incomoda. Dessa forma, ela pede que Mayara limpe as janelas da sala, apesar de ter dito anteriormente que não era necessário. No momento da comemoração, ela viu uma mancha. O olhar e o gestual de Laura comunicam a tensão, a agressividade contida, que tornam o racismo velado difícil de ser comprovado. Mayara nota, então, torna a chamá-la de “dona”.
Acontece que a mancha é do lado de fora da janela e Laura se compromete a segurar a escada enquanto Mayara limpa. Quando o bebê de Laura chora, no entanto, essa se vira para atendê-lo e Mayara despenca. Lamentavelmente, o enredo reflete a realidade, como é relatado no livro Eu, Empregada Doméstica: A Senzala Moderna é o Quartinho da Empregada. Nele, constam os depoimentos de trabalhadoras domésticas, coletados por Preta Rara na página “Eu, Empregada Doméstica”.
“Eu trabalhei num apartamento que era no oitavo andar, e ela exigia que eu limpava muito bem as janelas. Então eu ficava pendurada com a cintura pra fora da janela. Uma amiga dela viu aquilo e achou um absurdo. Ela chamou a atenção da minha patroa. Eu tinha 17 anos quando isso aconteceu.”
No episódio, Laura inicialmente parece buscar por socorro, mas desiste, e limpa qualquer vestígio que a incrimine. Numa metáfora, ela lava as mãos, sujas do excremento da fralda da filha, até que sangrem. Após, entra numa catarse, à la Jordan Peele, na qual as suas contradições, os seus preconceitos de raça e classe são expostos.
Não é possível definir se Mayara faleceu, conseguiu se reequilibrar, desistiu de limpar a janela ou se tudo foi uma criação da mente de Laura que, despeitada com a comemoração e ingresso de Mayara na universidade, imaginou a sua morte trágica. Ao final, Laura reconhece que não é diferente das suas antecessoras, mas acredita que sua filha será uma mulher diferente. Mayara, que reaparece, termina o episódio questionando: “o que eu sou para você? E não sou eu uma mulher?”
Esse diálogo é uma referência ao discurso proferido por Sojourner Truth, em 1851, na Women’s Rights Convention em Akron, nos Estados Unidos. Sojourner Truth (1797-1883) foi uma abolicionista e ativista, a única mulher negra a participar da convenção, na qual confrontou a tese de que as mulheres não poderiam votar por causa da sua suposta fragilidade. Para além disso, Sojourner Truth enfrentou a própria hostilidade de mulheres brancas à participação de mulheres negras na convenção e no movimento sufragista em geral. Pioneira, Sojourner expôs a opressão de classe e raça dentro do movimento de mulheres.
Nesse mesmo sentido, o episódio expõe a contraface do ingresso de mulheres brancas de classe média no mercado de trabalho e meio acadêmico, a sua substituição por mulheres racializadas no desempenho do trabalho doméstico, de modo precarizado. Não raro, essas trabalhadoras domésticas permanecem longe dos seus próprios filhos em prol do cuidado com o lar e os filhos de outrem. Além disso, em muitos casos esse é o meio de sustento de famílias geridas por tais mulheres.
Segundo o Dieese (2022), 65% das trabalhadoras domésticas são negras, a maioria tem mais de 40 anos e renda inferior a um salário-mínimo. Além disso, o Brasil é o país com o maior número de trabalhadores domésticos registrados — 7 milhões de pessoas, número maior do que a população da Dinamarca. O legado da escravidão fez com que, antes do advento das políticas de ações afirmativas, fosse comum ouvir relatos de trabalhadoras domésticas que eram tratadas quase como herança, as quais atravessavam gerações de uma mesma família e havia a expectativa de que suas filhas as substituíssem.
Outro ponto importante é que a mammy ou “mãe preta” foi uma imagem implantada no imaginário social, segundo a qual as trabalhadoras domésticas exercem o cuidado com o lar por amor e abnegação apenas. Essa imagem dissimula situações de violência e exploração vividas no contexto do trabalho doméstico. Foi o acesso às políticas de mitigação das desigualdades sociais e às ações afirmativas que mudou esse cenário e trouxe mais autonomia às mulheres negras, que puderam recusar trabalhos precarizados e exercer escolhas profissionais. Além disso, em 2013, a “PEC das domésticas” garantiu-lhes aos mesmos direitos já previstos para os demais trabalhadores. Tudo isso despertou o rancor de certos setores da sociedade, como a classe média e as elites.
Embora reputadas como “quase da família”, as trabalhadoras domésticas estão longe de sê-lo, tanto que não têm direito à herança. Esse dito tem servido para silenciar as demandas por direitos das trabalhadoras domésticas, as quais não almejam ser da família. Enquanto trabalhadoras, elas têm direito à proteção à vida e à saúde, bem como a estarem a salvo do assédio moral, de trabalho em condições análogas à escravidão e do trabalho infantil.
Referências:
BUENO, Winnie de Campos. Imagens de controle: uma ferramenta de análise para compreender a matriz de dominação. In: Processos de resistência e construção de subjetividades no pensamento feminista negro: Uma possibilidade de leitura da obra Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness, and the Politics of Empowerment (2009) a partir do conceito de imagens de controle. Dissertação (Mestrado em Direito) — Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Programa de Pós-Graduação em Direito, São Leopoldo, RS, 2019.
DAVIS, Angela. Angela Davis. A potência de Sojourner Truth. Boitempo, 26 nov. 2018. Acesso em: 21 abr. 2023.
LOPES, Juliana Araújo. Quem pariu Améfrica?: trabalho doméstico, constitucionalismo e memória em pretuguês. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 10, n. 2, p. 93-123, 2020.
LOPES, Juliana Araújo. Raça, esfera pública e o conceito de família. In: Constitucionalismo brasileiro em pretuguês: Trabalhadoras domésticas e lutas por direitos. Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado em Direito, Estado e Constituição), Universidade de Brasília, 2020.
VILELA, Pedro. Mulheres negras são 65% das trabalhadoras domésticas no país. Agência Brasil, 2022. Acesso em: 21 abr. 2023.
WENTZEL, Marina. O que faz o Brasil ter a maior população de domésticas do mundo. BBC, 26 fev. 2018. Acesso em: 21 abr. 2023.