Categorias: CINEMA

Shirley Temple, Judy Garland, Mara Wilson e Jennette McCurdy: a repetição de padrões de abuso infantil em Hollywood

A série iCarly, exibida pela Nickelodeon entre 2007 e 2012, foi um grande sucesso entre o público jovem. Estrelada por Miranda Cosgrove, Jennette McCurdy e Nathan Kress, ela contava a história de adolescentes que desenvolvem o seu próprio programa para a web e teve uma repercussão positiva, sendo indicada a prêmios como o Kids Choice Awards e o Emmy Awards.  Assim, mesmo depois do cancelamento, os episódios continuaram a ser reprisados e mantiveram uma boa audiência, consolidando iCarly como uma das séries mais relevantes da história do canal. Logo, não foi uma surpresa que ela tenha sido resgatada pelo Paramount+ quase 10 anos depois do encerramento. Entretanto, o que acontecia nos bastidores era algo que o público desconhecia, e isso tornou a recusa de Jennette McCurdy ao convite para reprisar o seu papel como Sam Puckett algo surpreendente e capaz de gerar tanta conversa quando o próprio retorno da série.

O que está por trás dessa escolha foi revelado pela atriz no livro Estou Feliz Que a Minha Mãe Morreu, publicado no Brasil em novembro de 2022. Nele, Jennette relata que dizer “não” foi algo muito fácil para ela naquele momento da vida, mais focado na sua saúde mental e na busca pela felicidade. Em uma determinada passagem, ela comenta sobre ter recebido um telefonema de Miranda falando a respeito dos planos do Paramount+ e destaca que a sua resposta contrária ao retorno foi bastante enfática. À época, Jennette McCurdy já estava afastada das telas desde 2018, ano no qual disse aos seus agentes que gostaria de fazer uma pausa, algo que posteriormente se tornou uma aposentadoria.

Durante uma entrevista ao Washington Post para promover seu livro, McCurdy declarou ser grata pela estabilidade que a sua carreira lhe trouxe e pelos amigos que fez. Apesar desse sentimento, ela contou que não vê outro valor na fama. Muito disso está ligado às suas lembranças do que acontecia nos bastidores, especialmente à sua mãe, Debra, responsável pela maior parte dos abusos que Jennette sofreu ao longo da vida. Inclusive, em Estou Feliz Que a Minha Mãe Morreu ela chegou a expor que atuar nunca foi a sua vontade, mas ela acabou aceitando participar de testes durante a infância para satisfazer um desejo de Debra, que sonhava em ser atriz, mas foi impedida pelos pais.

Jennette McCurdy

A trajetória de Jennette começou aos seis anos de idade, quando ela participou das suas primeiras gravações como figurante. Foi a partir deste início que a sua mãe começou a assumir cada vez mais o controle da sua vida, ditando como ela deveria ser para agradar as pessoas com quem trabalhava; como deveria se vestir para ser vista como uma “garota boazinha”; o que deveria comer para manter o “corpo ideal”; e, claro, com quem deveria fazer amizade. Sempre usando a possibilidade de retorno do seu câncer para intimidar a filha, Debra conseguiu manter Jennette domesticada: ela não fazia reclamações sobre a rotina exaustiva de aulas de dança e teatro ou questionava coisas que faziam com que ela se sentisse invadida. Nesse sentido, o que mais choca é o fato de que Debra deu banho na filha até os 16 anos e fazia “exames” constantes nos seus seios e vagina para verificar o possível aparecimento de doenças.

Também durante a entrevista ao Washington Post, Jennette pontuou que a sua mãe fazia de tudo para que os detalhes do relacionamento das duas fossem mantidos na esfera privada. Isso favoreceu para que os transtornos alimentares da atriz não fossem devidamente cuidados, visto que Debra incentivava a manutenção de dietas extremamente restritivas. Embora essas questões tenham sido levadas a ela por pessoas preocupadas com a forma que Jennette lidava com a comida, a mãe da atriz ignorou os alertas porque eles se chocavam contra o seu interesse de fazer com que ela parecesse perfeita aos olhos de produtores, diretores e agentes.

Durante boa parte da sua vida, McCurdy confundiu a negligência e os abusos maternos com cuidado. Em determinadas passagens das suas memórias, ela relata que sentia que a sua relação com a mãe era algo especial e que ela era a sua melhor amiga. Assim, Jennette aprendeu a depender da aprovação de Debra para os menores detalhes da sua vida, o que fez com que por muito tempo o seu círculo de amizades fosse bastante restrito e os seus relacionamentos afetivos não existissem. Tudo isso dificultava para que ela percebesse a verdade sobre a situação que vivia desde os seus primeiros anos.

Foi também a postura materna que abriu espaço para que Jennette sofresse abusos por parte de Dan Schneider, o produtor de iCarly. Em Estou Feliz Que Minha Mãe Morreu, a atriz sempre se refere a ele como o Criador, uma escolha que ressalta a ideia de que Schneider era visto como uma divindade nos bastidores da série e, portanto, não havia espaço para que discordassem da forma como ele conduzia as gravações. Descrito como controlador, cruel e assustador, Dan era alguém capaz de fazer com que homens e mulheres adultos chorassem devido aos seus insultos e demitia atores mirins com base em erros corriqueiros.

Jennette McCurdy - abuso infantil em Hollywood

Pela forma como foi ensinada a se comportar diante de figuras de autoridade, Jennette McCurdy sentia que precisava agradar Schneider independente da sua vontade. Portanto, ela não protestava quando ele massageava os seus ombros sem que ela pedisse ou quando a pressionava para beber café batizado com álcool em uma idade na qual ela não poderia fazer isso legalmente. Em partes, este comportamento estava ligado ao fato de que Schneider havia oferecido para Jennette um spin-off após o término de iCarly, o que chegou a se concretizar. Apenas um ano depois, ela se tornou a estrela de Sam & Cat, série que durou 35 episódios e acabou de forma abrupta.

Uma das passagens mais surpreendentes de Estou Feliz Que Minha Mãe Morreu acontece justamente após o término do derivado. McCurdy recebeu da Nickelodeon uma proposta que deixava claro que a emissora sabia a respeito da forma como Dan Schneider tratava as suas atrizes. Na ocasião, foram oferecidos 300 mil dólares para que ela nunca falasse a respeito do que viveu nos bastidores. Entretanto, Jennette se recusou a aceitar a oferta e durante a entrevista para o Washington Post afirmou que se sente feliz com essa escolha porque agora não precisa manter os abusos em segredo.

O caso de Jennette McCurdy é bastante chocante, mas infelizmente está longe de ser a primeira ocorrência do tipo em Hollywood. Ainda na década de 1930, é possível destacar Shirley Temple e Judy Garland como duas vítimas da indústria.

Assim como a estrela de iCarly, Shirley Temple começou a sua carreira ainda na infância. Com apenas quatro anos ela estrelava as produções da Educational Pictures e posteriormente acabou chamando a atenção de estúdios maiores devido ao seu carisma e visual angelical. Em 1935, com sete anos, ela era responsável por atrair multidões para os cinemas e foi recordista de bilheteria, um posto que manteve por três anos. Apesar disso, Shirley era extremamente mal remunerada e recebia cerca de 150 dólares por semana. A discrepância entre a sua rentabilidade e o seu salário foi algo que os seus pais somente foram perceber depois, mais precisamente quando a imagem da menina começou a estampar diversos comerciais sem que eles autorizassem. Foi também nesse contexto que produtos licenciados da atriz começaram a ser vendidos sem que a família recebesse nada por isso.

Shirley Temple - abuso infantil em Hollywood

Para além da questão óbvia de exploração, Shirley Temple ainda era constantemente alvo de rumores cruéis. Alguns deles foram iniciados por estúdios rivais com o objetivo de diminuir o potencial de arrecadação dos filmes estrelados por ela. O mais absurdo desses boatos questionava se Temple era mesmo uma criança devido à sua aparência física, que alguns consideravam de proporções muito avantajadas para a idade que tinha. Assim, a teoria mais aceita à época é que, na verdade, se tratava de uma anã de 30 anos. Um dos argumentos que os tabloides usavam para justificar essa versão era o fato de que Shirley nunca perdia os seus dentes de leite. Na verdade, o que acontecia é que a menina usava capas para disfarçar as falhas quando estava gravando e durante as suas aparições públicas encontrava maneiras de chamar a atenção e desviar o foco do seu sorriso.

Ao refletir sobre a sua carreira no livro Child Star: An Autobiography, Shirley chamou todos os seus trabalhos da infância de uma “exploração cínica da inocência”. Ela também ressaltou que muitas vezes os filmes eram repletos de racismo e machismo, algo que ela não tinha consciência na época e passou a se envergonhar depois de adulta. Inclusive, um episódio bastante vexatório aconteceu após o lançamento de Queridinha do Vovô, em 1937. Embora o filme tenha sido um sucesso pelo seu teor de entretenimento para a família, o crítico e escritor Graham Greene fez alguns apontamentos bastante sexistas sobre a figura da estrela mirim. De acordo com ele, a menina estava insinuante em seus kilts curtos e o seu público, supostamente composto por homens de meia idade, respondia muito mais à visão do seu corpo “bem formado” do que à “simpatia dúbia” gerada pela “infância superficial” retratada no longa. Por estes comentários, Greene foi processado pela atriz e pelo estúdio responsável por Queridinha do Vovô e perdeu, sendo obrigado a depositar a indenização em um banco inglês. A quantia permaneceu na instituição até que Shirley completasse 21 anos e posteriormente foi doada para a caridade.

Apesar dos diversos pontos convergentes entre a história de Temple e a de outras crianças exploradas pela indústria, existem alguns aspectos que andam na contramão e com certeza favoreceram para que ela tivesse um desfecho diferente. Também em Child Star, Shirley chegou a revelar que nunca se sentiu pressionada pelos pais para seguir a carreira de atriz. Desse modo, quando ela tinha 12 anos e os estúdios começaram a perder o interesse pela sua figura devido às mudanças no seu rosto e no seu corpo, ela seguiu a sua vida estudando e vivendo com a sua família de maneira tão anônima quanto possível. Embora tenha feito algumas tentativas de migrar para produções mais adultas, aos 21 anos acabou optando pela aposentadoria por perceber que Hollywood não tinha interesse em algo diferente da garotinha de cachinhos dourados do começo da sua trajetória.

Diferente de Shirley Temple, Judy Garland conseguiu fazer com sucesso a migração de estrela juvenil para uma carreira adulta igualmente bem-sucedida. Porém, os anos de abuso lhe deixaram sequelas emocionais das quais ela nunca foi capaz de se recuperar e colaboraram para que o seu vício em antidepressivos e ansiolíticos se mantivesse até o fim da vida. Isso, quando aliado ao alcoolismo e ao tabagismo, acabou fazendo com que saúde de Judy se deteriorasse cada vez mais rápido, levando-a quadros de cirrose hepática e insuficiência respiratória. A sua morte, porém, foi causada por uma overdose acidental de secobarbital quando ela tinha 47 anos e havia acabado de receber a notícia de que não tinha muito tempo de vida.

Para entender como as coisas chegaram a este ponto é preciso voltar à época em que Garland tinha apenas 11 anos e se apresentava com as irmãs em teatros vaudeville com o grupo chamado The Garland Sisters. Em meados de 1935, Louis B. Mayer, o chefão da MGM, enviou Bubsy Berkley para assistir a uma apresentação do trio e relatar as suas impressões. Ele ficou tão surpreso com a mais nova das irmãs que pouco tempo depois Judy Garland assinou um contrato com o estúdio. Entretanto, apesar do seu talento evidente, a MGM não soube como encaixá-la em um filme por algum tempo e eventualmente isso acabou se tornando um problema para os executivos.

Judy era vista como jovem demais para estrelar filmes adultos e “velha demais” para ser uma estrela infantil. Nesse contexto, os abusos já haviam começado e Garland foi colocada em vigilância 24 horas. Um acompanhante a seguia por toda parte, inclusive em momentos de intimidade, para garantir que ela não estaria com “as companhias erradas”, o que significava se relacionar com garotos. Tudo isso aconteceu a pedido do próprio Louis B. Mayer, que também começou a fazer imposições a respeito da aparência da atriz, especialmente sobre o seu peso. Aos 12 anos de idade, Judy foi obrigada a tomar pílulas de dieta e passou ter a sua alimentação regulada de forma extrema. Caso ela descumprisse as regras, isso seria considerado uma quebra de contrato com a MGM. Em Judy: Muito Além do Arco-Íris, cinebiografia lançada em 2019, existe uma cena que ilustra essas questões: no seu aniversário, Judy foi proibida de comer o bolo. Ainda que ela fosse uma criança magra e subalimentada, se aproximando bastante da anorexia, era constantemente chamada de gorda e lembrada do quanto a sua aparência era um problema.

Nessa época, a MGM dispunha de beldades como Ava Gardner e Lana Turner, portanto, Judy Garland era considerada comum quando comparada a essas atrizes. Esses fatores contribuíram para que, durante algum tempo, ela acabasse estrelando produções musicais menos expressivas do estúdio, ainda que o seu alcance vocal chamasse a atenção em todas as oportunidades que ela recebia de mostrá-lo. A sua primeira oportunidade de brilhar em um filme de destaque veio em 1938, quando O Mágico de Oz começou a ser produzido. Porém, com essa chance também vieram outras formas de abuso, como jornadas de trabalho que chegavam a durar 18 horas. Além disso, Dorothy deveria ser uma personagem mais jovem do que a sua intérprete, de modo que Judy era obrigada a usar uma faixa apertando os seus seios durante as gravações. O figurino também era excessivamente apertado na cintura, o que dificultava sua respiração.

Judy Garland - abuso infantil em Hollywood

De acordo com um dos ex-maridos de Garland, Sid Luft, ela também enfrentou problemas com os anões contratados para interpretar os munchkins na produção. No livro Judy and I: My Life With Judy Garland, Luft contou que, devido à aparência dos atores, eles acreditavam que poderiam fazer qualquer coisa sem ser punidos. Assim, constantemente colocavam as mãos debaixo do vestido da atriz durante as cenas que filmavam juntos. É interessante destacar que se tratava de homens de uma idade bem mais avançada. Segundo Luft, eles estavam na casa dos 40 anos. A própria Judy também chegou a afirmar em uma entrevista que os munchkins foram um problema para a produção de forma geral, visto que apareciam bêbados para trabalhar e, por vezes, precisavam ser contidos pela polícia devido à maneira como agiam.

Foi também durante as gravações de O Mágico de Oz que o vício da atriz em pílulas começou a tomar forma. A sua mãe optava por lhe dar os comprimidos para que ela conseguisse cumprir as horas de trabalho com disposição. De acordo com Sid Luft, que foi casado com Judy Garland de 1952 a 1963, quando eles se conheceram os comprimidos ainda eram um problema para a atriz e ela nunca conseguiu deixar de toma-los.

Desde a década de 1930, algumas mudanças aconteceram no que se refere às leis trabalhistas voltadas para atores mirins. Entretanto, quando se fala sobre os Estados Unidos, existem algumas brechas que favorecem para que casos de abuso continuem acontecendo. O primeiro deles está ligado ao fato de que o país não é signatário da Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 1989. Para os legisladores estadunidenses, em especial os do Partido Republicano, não existe um motivo para a adoção de tratados internacionais uma vez que a Constituição do país possui leis progressistas, consideradas por eles como superiores às propostas por documentos desse tipo. Ademais, existe um temor por parte dos EUA no que se refere à geração de obrigações internacionais.

No seu artigo 32, a CDC propõe que os Estados-Parte devem proteger as crianças contra a exploração a realização de trabalhos que possam causar interferência na sua educação ou prejudicar o seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social. O documento ainda prevê que seja estipulada uma idade mínima para o ingresso no mercado de trabalho, uma regulamentação adequada de horários e condições e o estabelecimento de penalidades adequadas para aqueles que não cumprirem o estipulado pelo artigo.

Como o país não participa da CDC, o trabalho das estrelas mirins é regulado pelo Screen Actors Guild (SAG), sindicato responsável por assegurar condições de trabalho dignas para os seus mais de 120 mil membros; e pelas leis estaduais, que são variáveis e podem ser contornadas com uma simples realocação das gravações. No que se refere à lei federal, é possível citar que ela isenta as crianças e adolescentes que trabalham no ramo do entretenimento das disposições previstas na Lei do Trabalho Infantil.

Atualmente, boa parte das produções cinematográficas é filmada na Califórnia, estado que serviu de locação para a própria iCarly. Por um lado, isso se mostra benéfico uma vez que esse local possui leis mais severas para assegurar a proteção dos menores. Por exemplo, as crianças que têm entre 6 e 9 anos de idade podem permanecer nos sets por 8 horas, mas só podem trabalhar durante 4 horas. Além disso, uma parte da sua rotina no estúdio deve ser dedicada aos estudos e a produção tem a obrigação de garantir a presença de um professor. Para além de ensinar os conteúdos escolares, este profissional também precisa conhecer bem as legislações que protegem a criança e funcionar como uma espécie de conselheiro, garantindo que ela tenha voz junto aos produtores.

Existem outras especificidades das leis californianas que visam garantir a segurança dos menores, como evitar a exposição a conteúdos que sejam inadequados para a sua idade. Para ilustrar essa questão, é possível citar o exemplo de Danny Lloyd, ator que interpretou Danny em O Iluminado sem saber que estava participando de um filme de horror. Infelizmente, apesar de todas essas medidas, o próprio caso de Jennette McCurdy ilustra que essa proteção precisa ser intensificada por meio de uma fiscalização mais assertiva do SAG e dos próprios governos estaduais, visto que, por vezes, os responsáveis pelos atores mirins não cumprem o seu papel de garantir a sua segurança e expõe os menores voluntariamente a situações abusivas. Nesse sentido, cabe ressaltar que a própria orientação de Debra McCurdy para que a sua filha não tivesse um “comportamento difícil” e evitasse se mostrar mal-humorada ou chorar era uma forma de burlar a legislação, visto que a lei californiana prevê que as gravações sejam interrompidas em caso de desconforto por parte do menor.

Para além das questões envolvendo os estúdios, os atores e atrizes mirins ainda vivenciam abusos por parte da mídia que são igualmente danosos para a sua saúde mental. Em um artigo de opinião escrito para o New York Times em 2021, Mara Wilson, que se tornou famosa por filmes como Matilda, Milagre na Rua 34 e Uma Babá Quase Perfeita, contou a respeito de como se sentia sem controle da sua vida por ter crescido exposta. O ponto de partida do texto é o aniversário de 13 anos de Mara, o qual ela passou sozinha em um quarto de hotel na cidade de Toronto para dar entrevistas a respeito do filme Thomas e a Ferrovia Mágica, que tinha acabado de gravar.

Antes da sua primeira entrevista do dia, Wilson foi questionada por uma repórter sobre como estava se sentindo e acreditou que ela se importava com isso, de forma que acabou falando a verdade sobre não estar confortável para trabalhar em um país estrangeiro no dia do seu aniversário. No dia seguinte, os jornais canadenses estamparam a sua foto na capa dos cadernos de cultura e o texto a retratava como uma “pirralha mimada” por ter reclamado antes mesmo do começo da entrevista. Além disso, a reportagem falava sobre os caminhos sombrios seguidos por algumas estrelas mirins e fazia questão de apontar como todas elas acabavam encontrando algum tipo de destino trágico, o que fez com que a própria Mara Wilson comprasse temporariamente essa ideia.

Mara Wilson - abuso infantil em Hollywood

Também no artigo para o New York Times, a atriz revelou que já estava familiarizada com essa narrativa por ter começado a atuar com cinco anos e ter sido orientada a parecer o mais normal possível. Isso fez com que ela adotasse um comportamento que dissesse para o público que ela não era “como as outras garotas”, especialmente aquelas que obtinham destaque midiático por questões particulares, como a cantora Britney Spears. Assim, quando a sua opinião sobre essas estrelas era solicitada, Mara respondia que não gostava delas por estar imersa nessa versão dos fatos de que estaria condenada caso seguisse um caminho similar. Ela também pontua no texto que sentia medo da figura de Britney porque a forma como as pessoas falavam sobre ela era assustadora.

Uma vez adulta e afastada da indústria cinematográfica, Mara Wilson acabou percebendo uma verdade bastante trágica: a cultura pop constrói imagens como a de Britney Spears somente para poder destruir essas garotas futuramente. Diante disso, ela chegou a comentar que essa postura era destinada àquelas que abraçavam a sua sexualidade como um rito de passagem, fosse fazendo vídeos mais provocativos para as suas músicas ou estampando as suas novas figuras em capas de revista. O medo de passar por esse processo de escrutínio fez com que Wilson decidisse que ela nunca seria assim, ainda que já tivesse sido sexualizada em momentos anteriores.

Apesar de ter atuado exclusivamente em filmes para a família, Mara ouvia questionamentos sobre a sua vida amorosa desde os seis anos de idade. Ela também teve a sua opinião solicitada em casos como o envolvimento de Hugh Grant com prostitutas e recebia cartas de homens de meia-idade afirmando que estavam apaixonados. Entretanto, nada fez com que ela se sentisse mais envergonhada do que quando algumas imagens dos seus pés foram replicadas em sites fetichistas quando ela tinha 12 anos.

Diante disso, é possível afirmar que o abuso sofrido por Mara Wilson não aconteceu nos sets, espaços nos quais ela afirma ter se divertido. Ele está ligado à sua representação na mídia e à forma como o público recebia o conteúdo veiculado pelos jornais no começo dos anos 2000 e como ele comprava essas histórias enquanto verdades absolutas.

O motivo para que as narrativas de declínio de estrelas infantis funcionem está ligado uma noção de que elas merecem o sofrimento, de que pediram para passar por isso por terem se tornado famosas e acreditado que podiam fazer qualquer coisa. Essa crença, para a mídia, está no centro do que justifica o seu “direito” de ataque. Além disso, repórteres, paparazzi e outros profissionais da área asseguram que as jovens estrelas não tenham tempo para processar as suas emoções e as mudanças nas suas vidas de forma privada. Nesse sentido, o caso de Jennette McCurdy fornece uma ilustração bastante eficiente: já mais próxima da vida adulta do que da infância, ela decidiu fazer uma viagem com o seu primeiro namorado. Entretanto, a sua mãe não sabia a respeito disso porque não gostava que ela tivesse relacionamentos afetivos e acabou descobrindo o namoro através de fotos de paparazzi publicadas em tabloides. Ao expor a intimidade da atriz, a mídia retirou o seu direito de lidar com essa questão de forma privada e acabou por tornar o seu relacionamento com Debra ainda mais complicado e marcado por abusos.

Esse cenário, porém, é bastante diferente do que Mara Wilson destaca como parte da sua vida. Além de nunca ter chegado a ser famosa no nível de despertar o interesse de tabloides, ela relatou durante o seu artigo do New York Times que sempre teve apoio da sua família. Logo, quando as coisas ficavam difíceis, ela podia recorrer aos seus pais para suporte, algo que aconteceu depois da publicação da reportagem canadense tratando-a como uma garota mimada. Outro ponto destacado é que a sua família guardava todo o dinheiro que ela ganhava em uma conta bancária que somente poderia ser acessada quando ela completasse 18 anos, o que lhe garantiu uma vida confortável quando tomou a decisão de abandonar a carreira de atriz para ir para a faculdade e, posteriormente, se tornar escritora.

É interessante refletir também sobre os pontos levantados por Wilson em outro artigo de opinião, 7 Reasons Why Child Stars Go Crazy: An Insider’s Perspective, veiculado pelo site Cracked. O item 5 destaca que um dos motivos para que as estrelas mirins “enlouqueçam” é o fato de que elas recebem amor e, de repente, isso é tirado de forma abrupta depois do crescimento. Para Wilson, adultos sabem que esse sentimento é passageiro, mas as crianças não têm o mesmo conhecimento porque as suas vidas parecem “uma eternidade” e elas tendem a pensar que qualquer coisa que aconteça no presente vai se estender para sempre. Então, quando elas finalmente se acostumam a ser cercadas de afeto, chegam à pré-adolescência, um período particularmente complicado para qualquer um que se torne muito famoso durante a infância. Para Mara, isso acontece porque o verdadeiro trabalho de estrelas mirins é parecer bonitinhas e fofas na frente das câmeras, o que pode começar a mudar nesse período da vida. Logo, uma atriz infantil que não tem mais essas características não é mais rentável e pode ser descartada sem maiores explicações — algo que aconteceu com ela e também com Shirley Temple.

Posteriormente, com a chegada da adolescência, é iniciada uma fase de maior rebeldia, mas quem cresce aos olhos do público simplesmente não pode se dar a esse luxo. Enquanto jovens comuns precisam responder a poucas figuras de autoridade, as estrelas infantis devem prestar contas a um número muito maior de pessoas, como os fãs, que oferecem recompensas mediante ao atendimento das suas expectativas, mas são rápidos em punir, julgar e condenar. Esse nível de cobrança em uma fase tão crítica da vida foi apontado por Mara Wilson como um dos motivos pelos quais muitos acabam “surtando”.

No artigo do Cracked, a atriz ainda ressalta que muitas pessoas não conseguem escapar da indústria porque essa é a única realidade que conhecem desde muito jovens. Portanto, é difícil abandonar a carreira e cogitar fazer outra coisa. Como alguém que conseguiu seguir adiante — ainda que ela reconheça que teve muitas vantagens em relação à maioria dos casos —, Mara afirma que o único conselho possível é se certificar de que atuar é uma decisão da própria criança antes que ela comece e garantir que ela abandone Hollywood a partir do momento que estar diante das câmeras deixar de ser divertido. Para que isso possa ser enxergado como uma via, Wilson destaca a importância de que as estrelas mirins conheçam desde os seus primeiros anos a importância de uma educação formal e estejam cientes de que elas podem perfeitamente viver uma vida anônima que seja satisfatória.

Esse pensamento, porém, soa um pouco utópico quando consideramos casos como o de Jennette McCurdy, que não receberia esse tipo de orientação em hipótese alguma mesmo sabendo que não queria atuar antes de se tornar famosa. Na verdade, a mudança precisa partir da indústria e não pode ser dissociada de uma compreensão abrangente da infância e da adolescência como fases formadoras que precisam ser protegidas. Isso deve estar associado à ideia de que as estrelas mirins são seres sociais em desenvolvimento e não miniadultos prontos para serem expostos a qualquer tipo de situação que interfere na construção saudável da sua subjetividade. E, claro, os casos devem continuar a ser denunciados pelas vítimas porque, enquanto o silêncio imperar, infelizmente, os responsáveis por favorecer tais ocorrências vão continuar se sentindo livres para praticar todas as formas de abuso amparados pela certeza da impunidade. Ainda que eles sofram as consequências pelo medo que os estúdios têm das perdas financeiras, como foi o caso do afastamento de Dan Schneider do revival de iCarly, pelo menos isso garante alguma segurança às estrelas mirins e torna o ambiente de trabalho menos hostil e danoso para a sua saúde física e mental.

1 comentário

  1. Muito importante textos como esse, que debatem o abuso de crianças, e por que não dizer exploração infantil? Lendo agora no 1o dia de maio, mês que o Brasil realiza, através de órgãos municipais, estaduais e federais, ações e a Campanha mais incisiva no combate desses CRIMES.

Fechado para novos comentários.