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Você é uma mãe, mas também é um monstro: Ocean Vuong e a complexidade do amor materno

Uma carta aberta de um filho a uma mãe analfabeta. Essa é a premissa do livro  Sobre a Terra Somos Belos Por Um Instante, do escritor vietnamita-americano Ocean Vuong. De início, podemos nos perguntar se faz sentido escrever algo para alguém que nunca vai ler. Por outro lado, justamente por termos a certeza que aquilo nunca será lido, isso nos dá maior liberdade para expressarmos exatamente o que queremos.

E é em um tom melancólico, poético e, de certo modo, até visceral que Ocean Vuong, poeta, romancista e ensaísta, expõe toda a sua verdade à mãe, em um romance epistolar que, apesar de ficcional, é praticamente autobiográfico. O autor nasceu no Vietnã e, ainda criança, se mudou para Connecticut, nos Estados Unidos, com a mãe e a avó materna, por conta do período conturbado que vivia o seu país de origem no Pós-Guerra contra os Estados Unidos, em meados dos anos 1980.

Vuong é neto de uma vietnamita e de um soldado americano e isso transparece em sua obra. Entre as principais temáticas abordadas por ele em seus poemas e, mais especificamente no romance Sobre a Terra Somos Belos Por Um Instante, estão a questão da racialização do corpo amarelo, noções de masculinidade, a descoberta da sexualidade e como uma guerra e os processos de imigração podem afetar a infância e a vida de uma pessoa.

O escritor consegue ser extremamente consciente sobre si mesmo e sobre essas temáticas, transpondo isso de forma poética e sublime para os seus escritos, sem que se torne apenas um texto simplista ou pedante. Além dessas questões sócio-políticas e mais universais, a obra de Ocean Vuong se concentra em um assunto específico: a relação com a sua mãe. A mãe do autor, Rose, era uma imigrante do Vietnã — sobrevivente dos horrores da guerra contra os Estados Unidos — que trabalhou durante 25 anos como manicure, criando um filho sozinha, em um país onde ela mal conhecia a língua e, como mencionado no início, era analfabeta. Ela faleceu em decorrência de um câncer, em 2019.

Na obra, Vuong explicita o quanto a relação com a sua mãe era complexa. Ao mesmo tempo que havia amor, cuidado e sacrifícios por parte dela, o autor relata uma série de abusos, físicos e psicológicos, sobretudo durante sua infância. Em uma das frases mais marcantes do livro, Vuong diz que “Você é uma mãe, Mãe. Você também é um monstro. Mas eu também sou — e é por isso que eu não posso me afastar de você”, deixando claro o quanto a ligação mãe-filho era complicada.

Ao falar dos abusos que sofreu ainda criança, como tapas e agressões físicas da sua mãe, o autor não o faz em um tom completamente condenatório. Ele chega a mencionar que a sua mãe demonstrava sintomas da Síndrome do Estresse Pós-Traumático, por conta da guerra que viveu. E essas circunstâncias a transformaram no que ela se tornou. Sua mãe não era cruel porque não o amava, mas porque era a forma que ela havia aprendido a sobreviver no mundo. Nenhuma forma de violência é justificável, mas Vuong entende que a mãe só estava reproduzindo todos os abusos e traumas que ela mesma havia sofrido.

Outra questão abordada no livro é o fato de se tratarem de dois imigrantes não brancos no interior dos Estados Unidos. Sua mãe era analfabeta e conhecia pouco do inglês, não o suficiente para conseguir se comunicar com autonomia. Por conta disso, havia uma inversão de papéis. Ele, ainda criança, mas falante de inglês e letrado, era o responsável por tudo: desde pedir as carnes certas no mercado até lidar com burocracias. Nesses momentos, ficava claro que eles só tinham um ao outro. Do mesmo modo que ele era dependente dos cuidados da sua mãe, ela também acabava dependente do filho até para as tarefas mais básicas do cotidiano, por conta da barreira linguística e da hostilidade que era viver em um país como imigrantes.

Aliás, o fato da carta à sua mãe ser escrita em inglês, com poucas passagens em vietnamita, deixam-na ainda mais inalcançável ao seu destinatário. E o autor reconhece isso, abrindo o livro com a seguinte frase: “Querida Mãe, estou escrevendo para chegar até você — mesmo que a cada palavra que eu escreva é uma palavra mais longe de onde você está”. 

Em um momento do livro, o autor menciona que na cultura vietnamita e nas tradições asiáticas em geral, o amor é raramente expresso através das palavras. O amor e o cuidado são geralmente demonstrados por meio das ações, como cozinhar para alguém ou, no caso das experiências vividas pelo autor com a sua mãe, ir em um brinquedo radical para acompanhá-lo, mesmo com enjoos, ou quando ele e a sua avó tentavam aliviar as dores físicas da sua mãe com massagens, após um dia cansativo no trabalho.

Em entrevista ao programa Amanpour and Company, Ocean Vuong menciona que a sua mãe sempre dizia a ele “Não chame atenção para você mesmo. Você já é vietnamita”. Ele entende que ela estava tentando protegê-lo de como o mundo poderia tratá-lo e, nesse momento, ele destaca a diferença entre as primeiras e segundas gerações de imigrantes. Enquanto os pais querem proteger seus filhos a todo custo, mesmo que isso signifique abdicar da própria identidade para se encaixar na sociedade, a segunda geração deseja justamente o contrário: mostrar que existem e têm o direito de existir, exatamente como são.

Nos agradecimentos de Sobre a Terra Somos Belos Por Um Instante, Ocean Vuong agradece todos os artistas asiáticos americanos que vieram antes dele, além de mencionar alguns cantores que o inspiraram enquanto ele escrevia seus poemas e o romance. Entre os artistas citados, está Mitski, cantora nipo-americana que também aborda diversas temáticas semelhantes a Vuong em suas músicas. Especificamente na canção “Your Best American Girl”, Mitski canta que “sua mãe não aprovaria o jeito que a minha mãe me criou, mas eu entendo. Eu finalmente entendo”.

“Your mother wouldn’t approve of how my mother raised me but I do. I finally do.” 

O trecho ilustra bem como o vínculo maternal é complexo, ainda mais quando se tratam de pessoas não-brancas, que demonstram o amor de uma forma particular, diferente dos ideais e parâmetros brancos ocidentais. É como se, tanto Vuong, como Mitski, após uma jornada de autoconhecimento, finalmente entendessem que, apesar dos momentos complicados — onde era difícil compreender porque as suas mães os tratavam daquela maneira — era possível perdoá-las e compreendê-las.

Enquanto o amor maternal é retratado como incondicional em diversas obras, Ocean Vuong escreve sobre a face real do relacionamento mãe e filho(a). Além disso, de certa forma, o autor faz o processo inverso, expondo como o amor de um filho para uma mãe também pode ser incondicional. Apesar de todas as situações complicadas e dificuldades na comunicação, ainda há perdão, beleza, cuidado e muitas memórias lembradas com compaixão.

Em uma citação do livro, Vuong menciona que “Todo esse tempo eu disse a mim mesmo que nascemos da guerra — mas eu estava errado, mãe. Nós nascemos da beleza”, reforçando a ideia de que o amor pode ser encontrado, apesar de todas as adversidades. Em entrevistas posteriores ao lançamento do romance, o autor conta que a relação com a sua mãe havia melhorado e eles se davam bem. Mesmo que ela não tenha lido as suas cartas, de fato, para o autor foi como um processo de libertação, onde ele pode finalmente colocar para fora tudo o que estava guardado.

No lugar de ressentimento, o livro de Vuong é quase uma coletânea de cartas de amor às mulheres que o criaram, mesmo em um contexto tão conturbado. Apesar de falar da violência, o autor também encontra espaço para descobertas e para a ternura.  No seu mais recente trabalho Time is a Mother, lançado em 2022, Ocean Vuong usa da poesia para lidar com o luto após a morte da sua mãe, em 2019. Enquanto Sobre a Terra Somos Belos por um Instante é uma espécie de confissão que era mantida em segredo, Time is a Mother é uma reflexão sobre a perda, mas também uma celebração de quem foi a sua mãe. Apesar do título do livro sugerir um instante, a obra de Vuong ficará comigo por um bom tempo.


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