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Steven Spielberg não faz filmes como antigamente — ainda bem

Atravessando gerações e histórias, não há dúvidas de que Steven Spielberg é um diretor icônico, sendo uma das principais referências no que se entende por fazer cinema. Com mais de 50 anos de carreira e chegando aos mais de 70 de vida, Spielberg continua a trazer o público para as salas de cinema com suas histórias únicas e tendo o seu nome entre os votos para o prêmio de Melhor Diretor do Oscar. Em todos esses anos, não conseguimos apontar para mais de um filme e dizer que é igual a algum outro já feito pelo diretor.

Entre 2018 e 2019, estava em produção o seu primeiro — e único, como já afirmou — filme musical, Amor, Sublime Amor, com previsão de estreia para 2020. Devido a pandemia do Covid-19, a produção decidiu segurar o filme por alguns meses, até ficar claro que não estávamos vivendo algo que se resolveria em meses, levando o diretor a decidir por esperar o tempo que fosse necessário para que o filme fosse lançado nos cinemas, ao contrário de outras produções que decidiram seguir direto para os streamings.

Com isso, o filme estreou em dezembro de 2021, poucos meses após as retomadas de atividades presenciais nos Estados Unidos, levando o filme a ter um fracasso de bilheteria, faturando 76 milhões de dólares, enquanto era esperado um faturamento de 300 milhões de dólares. Esse valor muito abaixo do esperado pode ser compreendido a partir das seguintes variáveis: a própria pandemia, e a insegurança de estar em ambientes fechados, junto ao desapontamento coletivo em relação a filmes musicais nos últimos tempos, com lançamentos como Um Bairro em Nova York, A Festa de Formatura e Querido, Evan Hansen; o lançamento do musical coincidiu com o lançamento de Homem-Aranha: Sem Volta Pra Casa e a desproporção da presença dos filmes da Marvel nas salas de cinema.

Steven Spielberg

Apesar de todos os fatores, o filme foi um dos favoritos da crítica e do público. Se em um primeiro momento, o anúncio do remake de mais um clássico foi questionado, Spielberg foi aclamado por entregar um filme que conecta esse clássico a uma geração mais jovem, por reinventar uma história tão conhecida e querida, trazendo o seu tom único. O longa esteve presente nas principais categorias de toda a temporada de premiações de 2022, especialmente com a atuação de Ariana DeBose.

Durante a pandemia, enquanto o musical estava na gaveta esperando o seu momento, Spielberg e Tony Kushner, amigos e colegas de outros carnavais, passaram horas conversando sobre fazer um filme diferente, um filme de memórias, sobre a infância e adolescência do próprio diretor. Kushner, que insistia que essa era uma história a ser contada, passou a entrevistar o diretor e ouvir sobre sua mãe, seu pai, suas irmãs, as cidades em que viveu. Até o dia que Spielberg ligou e disse que eles iriam fazer, sim, o filme, começando naquele dia. Assim, enquanto o mundo esperava a vacinação, os dois passavam três a quatro horas por dia, por meio de reuniões no Zoom, escrevendo e reescrevendo o roteiro.

“Eu não seria capaz de co-escrever esse filme se não fosse com alguém que eu admirasse, adorasse e que me conhecesse tão bem. E essa pessoa era Tony Kushner. E não era só porque ele tem um Pulitzer Prize, um Tony Award e foi nomeado diversas vezes ao Academy Award, para mim, isso não passou nem perto de ser um critério, a única coisa que me importava era que eu poderia me abrir para alguém. Alguém com quem eu poderia reviver esses momentos da minha infância, sem que me sentisse envergonhado, e que pudesse ver qual seria a história que iríamos contar.” — Steven Spielberg para Universal Pictures (tradução da autora)

Steven Spielberg

Após a turnê de imprensa e temporada de premiações de Amor, Sublime Amor, era a vez de embarcar em uma nova produção, mergulhando em suas próprias memórias. Spielberg conta que a equipe de cenário e figurino ficou com uma caixa de fotos de família, filmes caseiros e que, quando chegou no primeiro dia de filmagem, entrou na sala de sua casa, viu Michelle Williams usando os mesmos brincos que sua mãe usava, enquanto Paul Dano estava a cópia da imagem que tinha do pai. Durante o processo de filmagens, também precisou recorrer às suas irmãs para conseguir reconstruir suas histórias.

Os Fabelmans é o coming-of-age de Sammy (Gabriel LaBelle) que, dentro das telas, é um jovem descobrindo sua relação com o cinema e entendendo suas relações familiares, enquanto fora das telas, é o Spielberg maduro olhando para si mesmo jovem e fazendo as pazes com momentos conturbados da adolescência, aprendendo que seu pai e sua mãe eram pessoas inteiras antes de se tornarem pai e mãe, pessoas com desejos e angústias.

O cinema existe, para Sammy, enquanto ferramenta de entender o mundo: seja na infância, no primeiro contato com a cena do trem destruindo o cenário, ao ponto do mini-Sammy sentir a necessidade de reproduzir a cena com o trem de brinquedo várias vezes, até entender como acontecia no filme; criar efeitos caseiros para sangue falso, tiroteios e fugas de bandidos, até entender que filmes transmitem emoções boas e ruins; captar imagens espontâneas de sua família para perceber o que realmente está acontecendo entre eles. E tudo para chegar ao ponto de Sammy compreender que sua forma de viver e entender o mundo é por meio do cinema.

Steven Spielberg

Mais uma vez, o filme teve uma bilheteria abaixo do esperado, arrecadando 36 milhões de dólares, o que, nos termos de mercado, o leva a ser considerado um fracasso. Assim como premiações, bilheterias são um dos termômetros para entender como produtos culturais estão sendo produzidos e distribuídos. Porém, é injusto usá-las como medida única, especialmente no contexto atual de distribuição audiovisual. Não é de hoje que há conflitos entre salas de cinema e streaming, sempre com alguém tentando apontar qual é melhor, qual trará mais retorno financeiro — que é o que faz a indústria continuar a rodar — e questionando se um irá superar o outro, ao ponto de termos a extinção das salas de cinema.

Críticos estadunidenses apontam esse valor baixo como uma consequência de Spielberg não fazer filmes como antigamente: filmes que atraem grandes massas para o cinema, gerando bilheterias grandiosas e merchandising estrondosos. Não há nada de errado com esses filmes. Sim, Spielberg fez vários desses no passado, aclamados e referenciados até hoje. Porém, precisamos entender que Spielberg não é mais o mesmo diretor, e a mesma pessoa, de 50 anos atrás — e que bom!

Então, ao ver bilheterias abaixo do ideal, é fácil apontar e dizer que o diretor errou, que não sabe mais fazer filmes que tragam a massa para o cinema, que os filmes não agradam o público. Ao mesmo tempo que questiona-se o valor baixo de bilheteria, é preciso se questionar: até que ponto um diretor — quem quer que seja — tem a obrigação de fazer algo que seja agradável a todos?

Como é possível olhar para a carreira de Spielberg, que nunca repetiu um estilo de filme, não repetiu formas de contar histórias, que navegou entre diversos gêneros cinematográficos, e dizer que ele não sabe mais fazer filmes como antes? Se em mais de 50 anos de carreira, ele estivesse fazendo o mesmo tipo de filme, seria mais aclamado?

“Para encontrar o ator de Sammy, busquei por alguém […] que tivesse uma curiosidade infindável, algo que eu sempre tive. E como pessoa, Gabe tem uma curiosidade infindável. Quando começamos a conversar por Zoom, observei quantas perguntas ele me fazia: ele me questionava tudo, e estava aberto a receber toda e qualquer resposta, porque ele é curioso. E isso era algo que eu sempre soube sobre mim mesmo, desde sempre na minha vida, eu sou curioso sobre tantas coisas, o que me fez dirigir tantos tipos diferentes de filmes, não apenas o mesmo filme de novo e de novo. Porque a minha curiosidade me fez ir para gêneros que eu nunca me vi trabalhando.” — Steven Spielberg para Universal Pictures (tradução da autora)

Durante as entrevistas de divulgação de Amor, Sublime Amor, o diretor contou que o sonho de fazer a sua versão do musical surgiu ainda na juventude. É possível vê-lo mencionar o fato em diversas entrevistas, que tinha o sonho de fazer a sua versão do clássico musical desde do dia que ouviu o cast album pela primeira vez. Menos de um ano depois, com Os Fabelmans, ele volta para as telas com suas memórias mais pessoais, reconhecendo o papel do cinema como o seu modo de ver o mundo. E seremos capazes de olhar somente para as bilheterias e dizer que ele não sabe mais contar uma história?

Espero que Spielberg continue a fazer filmes por mais 10, 15, 20 anos, contando as histórias que fazem sentido para o profissional e a pessoa que está em constante movimento, que emocione o público e que, do outro lado, sejamos capazes de aprender que sucesso e um bom trabalho não podem — e não conseguem — ser medidos apenas por números, sem considerar o trabalho de uma vida inteira.