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Past Lives: de quantas vidas não vividas é feita uma vida?

O romance arrebatador de estreia da dramaturga e cineasta coreana-canadense Celine Song, Past Lives (2023), abrange décadas e atravessa continentes enquanto retrata uma mulher se reconectando com seu amor de infância, mas implanta um ritmo delicado de ausência, distância e silêncio. Combinando o desejo doloroso de In The Mood for Love (Amor à Flor da Pele, 2000), de Wong Kar Wai, com a intimidade casual da trilogia Before (1995-2013), de Richard Linklater, o filme pinta um quadro de afeto não resolvido, tão delicado quanto profundo, entrelaçando temas atemporais do destino e da providência com temas mais lúdicos e reflexões sobre o acaso e identidade.

Esta é uma história de amor perdido e paixão infantil, o acesso doloroso e perigoso ao passado proporcionado pela mídia digital; as estradas não percorridas, as vidas não vividas, o luxo frívolo do arrependimento. E é também um filme que fala sobre a experiência da imigração e da forma como esta cria na mente realidades alternativas para toda a vida: o eu que poderia ter ficado para trás no antigo país versus aquele que foi para o estrangeiro em busca de um novo futuro. Nesse aspecto, o filme se assemelha à frenética comédia multiverso vencedora do Oscar, Everything Everywhere All at Once (Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, 2022), dos diretores Daniel Kwan e Daniel Scheinert.

Past Lives

Past Lives abre em um bar, onde Nora (Greta Lee), Hae Sung (Teo Yoo) e Arthur (John Magaro) se reuniram para tomar uma bebida. O público não ouve a conversa; em vez disso, eles ouvem espectadores que observam o trio. Esses comentaristas invisíveis se perguntam, como os dois homens estão relacionados com a mulher sentada no meio. Um sugere que Nora e Hae Sung são turistas e Arthur “seu amigo americano.” Outro adivinha que são colegas. À medida que a cena avança, eles apontam o quão próximos os três parecem e como respondem um ao outro — tudo isso enquanto a câmera de Song aproxima lentamente Nora. A música mantém o público a distância, aumentando o mistério. Talvez você também tenha iniciado a sequência apenas interessado em saber como os personagens se conhecem. Ao final, você provavelmente está se perguntando o quão bem eles se saem.

A partir daqui retrocedemos para algum momento do final dos anos 1990 ou início dos anos 2000, em Seul, onde uma menina de 12 anos, Na Young (Seung Ah Moon), está voltando para casa depois da escola com um garoto de 12 anos, Hae Sung (Seung Min Yim). Eles são namorados, embora o relacionamento seja obscurecido pela competição e pela dúvida sobre qual deles ficará em primeiro lugar na classe.

Doze anos depois, Na Young (Greta Lee) mudou seu nome para Nora e agora é uma dramaturga em ascensão em Nova York. Hae Sung (Teo Yoo) cumpriu o serviço militar e está estudando engenharia. Os dois se conectam via Facebook e, depois, pelo Skype, compartilhando conversas emocionadas conduzidas em fins opostos do dia, em lados opostos do mundo. Juntos, eles conversam sobre tudo e nada — o filme Eternal Sunshine of the Spotless Mind (Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, 2004), de Michael Gondry; quão próximos eles eram quando crianças; como ele a confortaria quando ela chorasse. Agora, em Nova York, ela parou de chorar, em parte porque “ninguém se importava” e em parte porque já não é a pessoa que costumava ser, tendo-se reinventado em um tempo diferente, em uma cultura diferente.

A distância é a chave para a magia reflexiva de Past Lives. O filme de Song é repleto de espaço — o tipo intangível entre as palavras e o tipo físico entre as personagens. Constantemente, Song enquadra Nora e Hae Sung frente a frente, como se estivessem se aproximando, mas nunca rompendo, uma linha invisível os dividindo. Em uma cena, em um vagão do metrô, as mãos de Nora e Hae Sung repousam em um poste a poucos centímetros de distância. O mesmo efeito perdura durante todo o filme: os personagens parecem se distanciar, sendo avisados para falar naquele momento — posicionados perfeitamente naquela zona de intimidade e restrição simultâneas. Todavia, o filme nunca parece tão rígido. Esses momentos, em conjunto, produzem o efeito de um campo magnético que emana de Nora e Hae Sung, remodelando o tempo e o espaço ao seu redor.

Past Lives

Isto dito, Song nunca usou um cronômetro ou fita métrica para guiá-la. Segundo entrevista concedida pela diretora para a Entertainment Weekly, durante as reuniões do Zoom, ela pediu a Yoo e Magaro que mantivessem suas câmeras desligadas para que agissem organicamente como estranhos no set. Nos ensaios presenciais, ela garantiu que Lee e Yoo não se tocassem, de modo que a criação de espaço pessoal se tornasse uma segunda natureza para os atores — e assim, quando eles finalmente se abraçam na tela, o momento parece monumental. Song também deixou seu relógio interno guiar uma cena quase sem palavras no ato final, quando Nora espera com Hae Sung a chegada de seu Uber. Song afirmou em entrevista que queria que a sequência transmitisse que essa despedida poderia ser um adeus final ou apenas temporário — então o tempo que seus personagens passaram parados na calçada parece um pouco longo demais, mas também como se fosse muito cedo.

Celine Song construiu Past Lives em torno do conceito de in-yun, uma palavra coreana que se traduz aproximadamente como “destino”. Ela pensou nisso depois de vivenciar o que Nora vivenciou no filme: anos atrás, ela se viu imprensada entre seu marido americano branco e seu namorado coreano de infância em um bar. O encontro inspirou Song a escrever Past Lives; ela saiu naquela noite pensando, segundo ela, ‘‘como é incrível para mim ser capaz de me conectar com esses dois caras e… [para eles] se conhecerem através da linguagem e do tempo”. Isso é in-yun, explica ela: um modo ‘‘passivo’’ de encarar o destino. In-yun não é sobre ‘‘manifestar’’ ou tentar direcionar o futuro de acordo com seus desejos; trata-se de reconhecer as camadas de conexões entre todos. Esta noção é o que desbloqueia Past Lives. O filme é um conto agridoce de amar e deixar para trás o antigo eu. À sombra da ponte do Brooklyn, Nora diz para Hae Sung “não somos mais crianças”, um lembrete de que Nora, obviamente mudou e a versão dela que Hae Sung conhecia já se foi. Ela é uma cápsula do tempo para Hae Sung, assim como ele é para ela. Um no outro, eles visitam e lamentam o que um dia foram e o que poderiam ser.

Filmes de romance tendem a seguir um roteiro — pessoas se conhecem, se perdem e tornam a ficar juntos e felizes para sempre — com uma diferença. Um mal-entendido que poderia ser explicado facilmente. Talvez, de todos os bares, de todas as cidades, no mundo inteiro, ela tinha que entrar justamente no dele. Esses filmes mantêm os espectadores entusiasmados ao fazerem perguntas clássicas: será que eles acabam
juntos? Como?

Past Lives

Past Lives recusa-se a ceder a configuração do triângulo amoroso, transformando Arthur em um vilão ou Hae Sung em um santo. É por isso que Celine Song faz Arthur imaginar em voz alta “que boa história” Nora e Hae Sung teriam se ela se apaixonasse por seu amigo de infância, e porque Song busca deixar claro que as intenções de Hae Sung eram egoístas: quando ele vai para Nova York, ele é recém-solteiro, a nostalgia o alimentando a buscar o encerramento. Além disso, a Nora que Hae Sung ama não é a mesma que Arthur ama. Um triângulo nunca existiu realmente.

O que existe, em vez disso, é uma história que desafia as muitas suposições feitas pelos espectadores na cena de abertura — e, talvez, pelo público do filme. Em Past Lives, a presença dos totens românticos Hae Sung e Arthur na vida de Nora permite que ela abrace tanto sua identidade coreana quanto sua identidade norte-americana. Essa é uma experiência desafiadora e emocionalmente intensa para Nora, que fica chocada com o quão americana ela se sente com Hae Sung, ao passo que Arthur revela que ela só fala coreano enquanto dorme. Imbricada nas oito mil linhas que tecem uma vida, está a garotinha Na Young, Hae Sung, Seul — talvez, seja essa a razão para que Nora fale sua língua materna enquanto dorme —, Nora, Arthur e Nova York, tudo isso é Na Young e Nora.

O que torna Past Lives um filme profundo, atraente e íntimo é a sua capacidade de se relacionar com toda e qualquer pessoa. Esta história é universal, todos nós “deixamos algo para trás, para ganharmos algo em troca”, diz a mãe de Nora no início do filme, seja para nos tornarmos quem desejamos ou por quaisquer outros motivos, e todos os desencontros que na vida há. Assim Past Lives é a saudade do que não foi, mas poderia ter sido, faz-nos lembrar do belíssimo poema “Memória”, de Carlos Drummond de Andrade que se encaixa com perfeição na história de Song: “Amar o perdido deixa confundido este coração”. O poema drummondiano fala, assim como Past Lives, da perda daquilo que foi amado, mas se consola afirmando que existe algo mais importante do que as coisas lindas: as coisas findas. “Findas” significa terminado, concluído. As coisas que acabaram, ficarão. Estas ficarão porque cristalizaram-se, despregaram-se da realidade, tornaram-se memória e “o que a memória ama fica eterno”¹.


Referência

¹ PRADO, Adélia. “Para o Zé”. In: __________. Adélia Prado: Poesia reunida. Rio de Janeiro: Editora Record, 2015, p. 74.

Mirian Marques é historiadora e pesquisadora de história dos livros e dos impressos, pisciana, chocólatra, cinéfila e apaixonada por livros. Ama escrever — apesar de falar mais sobre do que realmente escreve —, conversas longas e pôr-do-sol (e luares). Viciada no universo austeniano.

Vidas Passadas recebeu 2 indicações ao Oscar nas categorias de: Melhor Filme e Melhor Roteiro Original.

1 comentário

  1. Que análise belíssima do filme Past Lives. O texto consegue descrever a essência dessa produção cinematográfica a partir de uma escrita delicada e sútil, videnciando ao leitor os pormenores transcorridos nas cenas da obra. Parabéns pela análise tão delicada e tocante! 💜

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