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Felicidade Aparente: a nova estética do conservadorismo

Segundo a Prime Video, Felicidade Aparente: Os Segredos da Família Duggar é uma série documental limitada que investiga a mega-família mais amada da televisão americana, os Duggars, e a organização radical que os apoia: o Institute of Basic Life Principles. À medida que os segredos e escândalos da família são revelados, descobrimos que eles fazem parte de uma ameaça muito maior e mais poderosa que ameaça a própria democracia.

Se você não se lembra, ou não foi criado a base de programas enlatados, a família Duggar ficou famosa por seu reality show 19 Kids and Counting (na tradução literal, 19 filhos e contando), que depois virou Jill and Jessa: Counting On, todos produzidos pelo TLC entre 2008 e 2021 — com certas pausas e spin-offs devido às polêmicas com que a família ia se envolvendo com o tempo.

A premissa do reality era simples e parecia inofensiva. Como uma família com 19 filhos vivia de forma harmoniosa no interior do estado de Arkansas? A maioria dos episódios mostrava a família fazendo seus deveres diários. Como cozinhar para uma família tão grande? Como lavar a roupa de 19 crianças de uma vez só? Quantas fraldas são trocadas em um dia na casa dos Duggars? Mas os dois assuntos que mais interessavam as pessoas eram: será que Michelle, a matriarca, vai continuar tendo filhos? E por que ela não para?

A resposta é, sim, ela iria continuar a ter filhos até não poder mais. O porquê? Porque a família Duggar segue um movimento cristão fundamentalista chamado Quiverfull.

Felicidade Aparente

A palavra quiverfull vem de uma passagem da Bíblia que diz:

³ “Os filhos são herança do Senhor, uma recompensa que ele dá.

Como flechas nas mãos do guerreiro são os filhos nascidos na juventude.

Como é feliz o homem cuja aljava está cheia deles! Não será humilhado quando enfrentar seus inimigos no tribunal.”

Salmos 127:3-5

De acordo com essa vertente fundamentalista, não é somente dever do homem e da mulher ter filhos, mas ter muitos filhos. Qualquer forma de planejamento familiar ou prevenção de gravidez é considerado um pecado.

Não importa se o corpo da mulher está cansado ou doente. Não importa se você não tem dinheiro para alimentar as crianças que você já tem. Se você tem fé o suficiente, Deus proverá. Assim como ele fez com a família Duggar, que durante os anos de reality show da TLC, ganhavam viagens internacionais, dinheiro para construir uma casa que comportasse toda a família e uma cozinha industrial.

Além dos partos televisionados, outro evento que dava muita audiência para os Duggars eram os casamentos de seus filhos. Quando chegavam na fase adulta, os filhos começavam o processo de courting. Não confundir com namoro. Os Duggars e as outras famílias que seguiam esses ensinamentos não namoravam. To Court, ou cortejar em português, pode ser equiparado ao “namorar com intenção”, ou se relacionar com a intenção de casar. Relacionar aqui tem que ser usado com muito cuidado. Não tem beijo no courting. Não tem nem abraço direito. Ficar sozinho com seu namorado/namorada? Jamais. Só depois do casamento.

E isso era sempre pior para as filhas. Inclusive, tudo era pior para as filhas. De acordo com essa filosofia fundamentalista, a mulher precisa sempre estar submissa ao homem. Primeiro pelo pai, depois pelo marido. Não existe independência para a mulher.

Felicidade Aparente

Pode parecer estranho, mas os Duggars conseguiram envolver todos esses conceitos em uma roupagem que parecia tão pura, tão inofensiva, que por muitos anos eles enganaram uma boa parte da população que nem era tão conservadora assim. Assistindo um ou outro episódio você não conseguia perceber o quão perigoso eram os dogmas que os Duggars pregavam. Vai ver porque eles realmente não pregavam.

Esse novo meio de pregação não gritava diretamente com as pessoas. Ninguém ali estava mandando você se converter. Pelo contrário, eles apenas mostravam suas vidas “simples”, sem tecnologia, sem brigas, com harmonia, modéstia e conceitos tradicionais cristãos (pelo menos, do jeito que eles interpretam esses conceitos).

Quem via de fora muitas vezes pensava “Uau, talvez viver o que está escrito na Bíblia realmente seja o certo a se fazer. Talvez o papel da mulher realmente é ser submissa ao homem, olha como todas essas meninas são felizes! E os homens são todos honestos e confiáveis.” Isso realmente era o objetivo da família. E eles conseguiram isso por muito tempo. Até que toda farsa caiu por terra.

Tudo começou com Josh Duggar, o filho mais velho da família. Casado, pai de três filhos, trabalhando em Washington (ele tentava ser membro do governo e trabalhava na política norte-americana defendendo os valores cristãos) foi acusado de trair a mulher. Não era mentira. E também era só o começo da queda dos valores tradicionais que a família tanto pregava.

Josh Duggar foi condenado recentemente, culpado por baixar e possuir imagens de pornøgrafia e abuso sexual infantil. Além disso, descobriram que ele abusou sexualmente de menores de idade no passado, incluindo algumas de suas irmãs. E os pais de Josh estavam cientes disso. Eles sabiam que o filho havia molestado suas filhas. Mesmo assim, esconderam tudo, colocaram sorrisos no rosto e se apresentaram como modelo a ser seguidos por todos. Josh era aclamado por seus pais e irmãos por ser um exemplo a ser seguido. Filho adorado, esposo carinhoso, pai exemplar. Sua esposa continuou submissa a ele mesmo depois da traição. Mesmo depois da descoberta dos abusos contra as irmãs. Mesmo depois de condenado por posse de conteúdo ilegal.

Felicidade Aparente

O documentário conta essa história com detalhes, e com depoimentos de pessoas que estudam ou acompanham essa história há muito tempo. Embora os Duggars tenham enganado muita gente durante os anos de reality, muitas pessoas também viam como esses valores “tradicionais” eram extremamente perigosos. Os fóruns on-line cresciam a cada ano para discutir o tema. Hoje existe até um nome para esse tipo de influencer: os Fundies são, geralmente, família gigantes que pregam o fundamentalismo por meio de inocentes vlogs e vídeos em seus Instagrams e canais de YouTube. Também entram nessa categoria os jovens que parecem inofensivos, mas que carregam consigo valores conservadores numa embalagem super fofa e pop. Vide aqui as moças do Girl Defined, por exemplo. Quem fala sobre isso muito bem é a Drag Queen Trixie Mattel em seu vídeo Trixie Learns “How to Wear Makeup in A God Honoring Way” que recomendo muito mais do que assistir qualquer vídeo das próprias Girl Defined.

O nome “Felicidade Aparente” não é atoa. O documentário também traz as vozes de quem viveu essa farsa.Os Duggars sempre pareciam felizes. Era tudo uma máscara. A felicidade nunca foi real, e os Duggars nunca foram os únicos a viver dessa forma. Recomendo o canal Ex-fundie Diaries onde Elly conta como foi viver numa família fundie e como conseguiu se desconstruir dos valores com os quais foi criadx. (Elly hoje se identifica como pessoa não-binária)

Embora tudo possa parecer mais um problema americano, infelizmente a globalização está aqui. A gente ja viu que as ideias QAnon e outras conspirações de direita são traduzidas e espalhadas no WhatsApp do seu tio e sua tia na velocidade da luz. Isso também acontece com as ideias conservadoras cristãs. Enquanto escrevia esse artigo, parei para pensar se esse não seria um problema americano demais para cobrir aqui. Não frequento uma igreja, quase não consumo conteúdo voltado para o mundo cristão. Será que essa questão cabe na realidade brasileira?

A resposta é sim. Esses dias estava no ex-Twitter e vi a imagem traduzida da Umbrella of Protection (Guarda-chuva da proteção, em uma tradução literal). Essa imagem e conceito de que o homem é o protetor da família (tradicional, é claro) e de que a mulher precisa ser submissa ao homem, seja ela o pai ou o marido, é 100% quiverfull, tirada do próprio material IBLP (Institute of Basic Life Principles). E como essa imagem apareceu na minha fyp do Twitter? Num print de stories de uma influencer cristã brasileira, Leticia Almeida. Abrindo o ig de Leticia Almeida você não percebe de cara o ultraconservadorismo. Jovem, bonita, fotos aesthetics — a curadoria do feed impecável. Poderia ser apenas mais uma influencer de lifestyle. Mas escondido ali, temos esses conceitos tão perigosos. Quem não quer ter a vida perfeita do Instagram? Uma família, linda, sempre feliz. A embalagem é nova, moderna e clean, mas a mensagem continua a mesma. O conservadorismo continua empurrando as ideias de misoginia e preconceito.

Felicidade Aparente é um documentário sobre programas de reality, conservadorismo, fundamentalismo cristão, abuso religioso, influencers e tantas outras coisas. É mais do que os segredos de uma família só. É mais do que um um setor fundamentalista cristão do sul dos Estados Unidos. É preciso entender como a mídia influencia a propagação de ideias conservadoras e religiosas no século XXI. Se antes essas ideias e conceitos andavam devagar pelo mundo, hoje elas chegam de diversos modos — vestidas e maquiadas das mais diversas maneiras. Dentro da igreja, em programas de reality até  posts de Instagram de mommy vloggers.