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A onda latina no cinema hollywoodiano

Pare e pense em um filme ou série com protagonistas latinos. Qual o nome da produção que veio em mente? E de seus personagens? Talvez a Gloria (Sofía Vergara) de Modern Family, os protagonistas de One Day at a Time ou até mesmo o mais filme da DC, Besouro Azul.

Pode ser que você tenha ido ainda mais longe, com Lin-Manuel Miranda levando a latinidade porto-riquenha para os palcos com Hamilton, a animação Coco: A Vida é uma Festa, o musical In Da Heights que conta a história de um bairro latino nos Estados Unidos ou os sucessos de atrizes latinas como Jennifer Lopez e Cameron Diaz. Mas será que essas referências são suficientes para construir a imagem da América Latina, com seus 20 países, 560 línguas indígenas além do português e o espanhol, e mais de 19 mil quilômetros quadrados de extensão?

Obviamente, conquistas precisam ser celebradas e não há nada melhor do que identificar a sua mãe na personagem Rio Morales (Luna Lauren Vélez), mãe do Miles Morales (Shameik Moore) em Homem-Aranha no Aranhaverso ou comemorar o primeiro super-herói 100% latino com o Jamie Reyes (Xolo Maridueña) de Besouro Azul, mas ainda há muito chão para caminhar quando se pensa em representatividade e representação da América Latina no cinema hollywoodiano.

A onda latina no cinema hollywoodiano

A prova disso é o estudo realizado pela Annenberg Inclusion Initiative, que revelou que entre os 1.300 filmes de maior bilheteria lançados entre 2007 e 2019 no país, somente 5% dos mais de 50 mil personagens eram de origem latina ou hispânica. Para piorar, somente 3,5% eram protagonistas. A instituição responsável pela pesquisa realizou uma série de trabalhos científicos a respeito da desigualdade na indústria do entretenimento, e constatou que 79% dos estados norte-americanos possuem uma população latina maior do que a que está representada nas telas. Em 2021, os resultados do Censo 2020 nos Estados Unidos revelaram que a população de origem hispânica ou latina foi responsável por metade do crescimento demográfico no país nos últimos 10 anos. Somando-os, esse contingente populacional ultrapassa os 62 milhões, representando quase 20% da população total dos Estados Unidos. Mas onde estão essas pessoas nas telas?

O problema do estereótipo

Em primeiro lugar, a maior questão da representação de latinos no cinema estadunidense reside nos papéis de gênero e locais-comuns que os personagens ocupam dentro das narrativas. Na série Good Girls, por exemplo, o coadjuvante Rio (Manny Montana) é o típico latino envolvido com o tráfico e o crime, sendo extremamente sexualizado para caber no papel de amante da protagonista que está buscando uma fuga da sua vida de dona de casa e uma relação que ofereça perigo e adrenalina, ainda que isso envolva fetichizar o seu parceiro e enganá-lo em todas as oportunidades.

Rio é só um dos diversos exemplos de personagens masculinos latinos que são vinculados ao narcotráfico e a violência, com estereótipos presentes no corpo, por meio dos cortes de cabelo, tatuagens e estilos de roupa, mas também nas atitudes, uma vez que os homens são sempre retratados como pessoas perigosas e malvadas. Esse é o caso de personagens como Tony Padilla (Christian Navarro), da série Os 13 Porquês, Garriga (Rodrigo Santoro) no filme Golpe Duplo e Gonzalo (Diego Luna) no filme Contrabando.

Quando olhamos para o outro lado da moeda, pensando nas personagens femininas, somos confrontados com a imagem da mulher voluptuosa, sem muito intelecto e submetida às ações de seus parceiros, que geralmente são homens brancos, velhos e ricos. Esse é o caso de Gloria, em Modern Family, que apesar de ter ganhado o coração dos telespectadores, ficou submetida a esse estereótipo durante 11 temporadas.

A onda latina no cinema hollywoodiano

Aliás, outros trabalhos da atriz Sofia Vergara se encaixam nesse mesmo papel, como acontece no filme Perseguição Escaldante, onde a personagem Daniella Riva é a esposa de um americano mais velho e rico, mas em segredo está envolvida com um grupo criminoso composto por outros integrantes latinos. Apesar de ser a atriz latina mais bem paga na televisão norte-americana, Vergara não está sozinha no universo estadunidense de estereótipos latinos para mulheres. A atriz Lupe Ontiveros, de ascendência mexicana, interpretou o papel da empregada latina em pelo menos 150 produções cinematográficas, de acordo com os dados de sua extensa filmografia. A empregada latina, além de ocupar o papel de inferioridade em relação aos norte-americanos, é apresentada como um objeto do lar e um brinquedo sexual para os seus patrões em muitas dessas representações.

Poderíamos passar horas falando sobre como esses estereótipos estão representados em seus personagens, mas há ainda o problema da representação visual. Quantas cenas amareladas e alaranjadas você não viu na tela quando a cena estava se passando no México ou em outro país da América Latina? Quantas vezes o Brasil não foi representado por um bloco de carnaval no meio de uma rua com mulheres sensuais ou pelos perigos de uma suposta Floresta Amazônica? Os exemplos, infelizmente, são muitos.

O idioma quebrado

No geral, tanto os personagens masculinos quanto os femininos possuem uma característica em comum: o sotaque forte e a dificuldade de falar o inglês. Esse traço é utilizado como um grande modulador de suas personalidades, pois a linguagem original das produções é sempre apresentada como dominante, mais importante e valorosa.

Não à toa, a maior parte das representações latinas utilizam um espanglês torto para fazer com que o público ria ou para identificá-los como latinos ou hispânicos com mais facilidade. Como se isso não fosse ofensivo o suficiente, menosprezam o espanhol e outros idiomas a fim de reforçar a suposta soberania do inglês. Tudo isso é comprovado por falas como “Você sabe o quão inteligente eu sou em espanhol?” da personagem Gloria em Modern Family, comprovando não somente que seu intelecto fica limitado ao uso do inglês como também mostrando a riqueza que existe em sua cultura original. Essa questão é mostrada em diversos episódios em que a personagem pode se comunicar em seu idioma materno, mesmo que por alguns segundos, pois toda a sua personalidade e a forma com que ela é percebida por outros personagens muda.

A onda latina no cinema hollywoodiano

Apesar disso, o alívio cômico parece prevalecer quando se trata de personagens latinos. Por isso, apresentá-los como pessoas que mal conseguem se comunicar em inglês é mais importante do que valorizar a latinidade e a diversidade cultural que esses personagens podem acrescentar às narrativas exaustivamente iguais de Hollywood. Por isso, o idioma espanhol, o português e outras linguagens latinas continuam, e provavelmente continuarão por alguns anos, a serem apresentadas em um lugar secundário, de subalternidade e exotismo. Felizmente, alguns passos estão sendo dados em direção à mudanças importantes.

Surgem novos heróis

Sim, a mudança parece estar vindo do tão esgotado universo de heróis na indústria cinematográfica. Por meio de famílias latinas como a de Miles Morales, no Spiderverso da Marvel, e de Jamie Reyes, no mundo do Besouro Azul da DC, o foco da narrativa está migrando para as particularidades de personagens hispânicos ou latinos. Ademais, há de se dar o devido crédito às produções da Disney, pois tanto Encanto como In Da Heights trouxeram novas narrativas latinas para a grande tela e colocaram essa discussão em foco. Porém, esse crédito será dado quando eles pagarem os seus escritores, roteiristas e atores propriamente, mas esse é um assunto para outro texto.

É claro que os estereótipos continuam, seja na caracterização dessas famílias ou no papel secundário que ocupam nas narrativas. Comumente, as famílias latinas que são representadas tendem a ser imigrantes ilegais ou descendentes de imigrantes ilegais e pessoas originárias de territórios como Cuba, México e Porto Rico, além dos casos comuns de famílias com descendentes de latinos. Essa escolha geográfica também esconde motivos políticos e socioculturais. Por um lado, Porto Rico é um território americano desde 1898, apesar de ser considerado um Estado Livre Associado, com a própria Constituição e autonomia em diversos setores. No entanto, continua dependendo dos Estados Unidos nos aspectos de imigração, defesa e alfândega.

Não preciso dizer que a autonomia e diversidade cultural porto-riquenha merecem respeito e reconhecimento, mas ainda assim, é curioso como a representação latina parte de um território americano. Nestes casos, percebe-se um esforço de apresentar uma latinidade doméstica, trabalhando com uma representatividade de quintal ao escolher tratar sobre uma comunidade que ainda está dentro dos domínios e das mãos imperialistas dos Estados Unidos.

Em complemento a essa escolha política, tem-se a representação de Cuba como um território horrível, repleto de mazelas, onde todos os habitantes fogem para se salvar do Malvado Governo Cubano, essa instituição que desafia os Estados Unidos há décadas. Como se a Crise dos Mísseis de Cuba não tivesse acabado em outubro de 1962, a América do Norte continua arrastando esse conflito e fortalecendo uma narrativa de superioridade de todas as formas, principalmente pela criação de imagens de controle através do audiovisual.

Esse também é o caso do México, com conflitos de fronteira que duram gerações tanto para os mexicanos quanto para os estadunidenses. Na tentativa de controlar a narrativa, não é difícil encontrar personagens mexicanos que são imigrantes ilegais, fugitivos ou “sobreviventes” de uma guerra civil repleta de propaganda. É como se o projeto de um muro entre as duas nações fosse fictício também, mas esse é um problema bem mais real do que Hollywood faz parecer.

Em narrativas, todas as escolhas são estratégicas e carregam mensagens, sejam elas explícitas ou implícitas e subliminares. Desde quão apertado é o vestido da protagonista latina até quão arrastado é o inglês do protagonista latino, tudo é uma maneira de comunicar valores como superioridade econômica, soberania política, dominação cultural, preconceito étnico, supremacia racial e diversos outros problemas de ordem social que são urgentes.

Da mesma forma, a maneira com que as nações são apresentadas ao público e a história de cada personagem pode fortalecer ou desautorizar, como Patrícia Hill Collins bem pontuou, as imagens de controle e a hegemonia que continua legitimando esses processos de subalternização e domínio das nações latinas. Claro que devemos celebrar a participação de atrizes como Bruna Marquezine em produções como Besouro Azul, assim como devemos nos deliciar com o sotaque porto-riquenho em Spiderverso, mas isso, por si só, não é suficiente.

Na América Latina, somos mais de 660 milhões de pessoas que não cabem em 5% de representação cinematográfica, ou em 3,5% de protagonistas. Somos mais do que o estereótipo do traficante, da empregada doméstica ou da esposa gostosa. Somos mais que Cuba, México e Porto Rico, apesar da importância dessas nações para além de suas representações torpes.

Há ainda muito trabalho a ser feito.