Categorias: TV

Never Have I Ever: a jornada de cura de Devi Vishwakumar

Never Have I Ever, ou, Eu Nunca, em português, é aquele tipo de série que você começa a assistir de maneira despretensiosa e, quando percebe, está totalmente refém dos personagens e do enredo. Na série, acompanhamos Devi Vishwakumar, interpretada por Maitreyi Ramakrishnan, não apenas na sua jornada no ensino médio estadunidense, mas também em sua trajetória de cura após perder seu pai de maneira inesperada durante uma apresentação na escola.

Durante as quatro temporadas da série produzida e escrita por Mindy Kaling, conhecida por seus trabalhos em The Office e The Mindy Project, e Lang Fisher, de 30 Rock e Brooklyn Nine-Nine, vemos Davi perder o controle, chorar e cometer muitos erros, mas também testemunhamos seu crescimento e entendimento de seu lugar no mundo, percebendo como suas ações impactam não apenas em sua vida, mas a de todos ao seu redor. Devi amadureceu e deixou de ser uma estudante caótica e raivosa do segundo ano, sofrendo para lidar com o luto e toda a dor que sentia pela morte de seu pai, e se transformou em uma jovem capaz de respeitar e compreender melhor seus sentimentos, trocando os rompantes de raiva por uma análise mais certeira do que se passa em seu coração.

Never Have I Ever

Essa “nova” Devi foi fruto de um árduo e longo trabalho ao lado de sua terapeuta, a Dra. Jamie Ryan (Niecy Nash), o que mostra para audiências mais jovens a importância da terapia no trato da saúde mental. Assim como as dores físicas, nossas dores mentais devem ser validadas e tratadas com todo o cuidado e seriedade, e é isso o que a série mostra em todos os momentos em que Devi e a Dra. Jamie estão em tela. Para além do triângulo amoroso — você é Team Ben ou Team Paxton? — e de todas as maluquices entre amigas, Never Have I Ever é um importante lembrete de que não se deve simplesmente passar a mão na cabeça dos adolescentes, mas guiá-los para um processo seguro de cura que envolva o confronto de seus erros e o aprendizado por meio deles.

Never Have I Ever consegue mostrar um retrato autêntico de diferentes experiências adolescentes sem se furtar de explorar tema complexos como o luto e o estresse pós-traumático — e tudo isso sem deixar de ser cativante e perspicaz, nos fazendo torcer pelas vitórias de Devi mesmo nos momentos em que ela se mostra impossivelmente irritante, afinal, ela é uma adolescente. Uma das representações mais importantes da série, e verossímeis, é a maneira como Devi não consegue lidar com o luto e se adaptar à vida sem seu pai ao lado. Para ela, era o pai que fazia com que ela e sua mãe, Nalini (Poorna Jagannathan), fossem capazes de viver sob o mesmo teto e sem ele por perto, seria impossível continuar. Mas o que Devi aprende após lidar com todo seu sofrimento mental e as dificuldades de lidar com o processo do luto é que sua mãe também passava pelo mesmo, e que apoiando uma a outra, elas poderiam sair fortalecidas da situação. E é justamente isso o que acontece: juntas, Devi e Nalini passam a entender melhor o que sentem e conseguem se unir, dando um passo de cada vez, unidas no processo de cura.

Never Have I Ever

O relacionamento entre Devi e Nalini, inclusive, é um dos pontos altos da série, mostrando não apenas como a diferença de gerações pode impactar no entendimento entre elas, mas também como a dificuldade de comunicação, aliadas às expectativas culturais, podem gerar tensões e um progresso de altos e baixos entre mãe e filha. Além de ser uma adolescente aprendendo a se colocar no mundo, Davi também tem sua herança indiana colocada à prova o tempo todo, seja por conta da sua cultura e dos costumes familiares ou das grandes expectativas colocadas sobre ela e seu futuro. E dentro de todas as nuances de um relacionamento familiar repleto de camadas, Never Have I Ever é ótima em mostrar como um ambiente seguro e saudável, mesmo com os desentendimentos, pois eles acontecem e sempre acontecerão, é imprescindível para o crescimento de uma adolescente — principalmente, como no caso de Devi, quando ela sofre entre tentar se misturar ao cenário ao redor, de colegas brancos e estadunidenses, e respeitar sua ancestralidade.

A raiva e impulsividade de Devi também são pontos recorrentes na série, servindo como principal alerta e sintoma de sua depressão. O comportamento autodestrutivo de Devi aparece desde a primeira temporada, fazendo com que seus colegas a apelidem de “Crazy Devi” (“Devi Doida”, em tradução livre) durante seus piores rompantes. Sua tendência de agir sem pensar a coloca em situações difíceis com sua família, amigos e crushes, mostrando como a dificuldade de lidar — e controlar — emoções fortes é difícil, assim como as consequências de ser impulsiva. Devi mete os pés pelas mãos inúmeras vezes durante as quatro temporadas, causando intrigas entre os colegas além de fazer com que situações facilmente controláveis se tornem uma grande bola de neve de confusões. É claro que, em matéria de entretenimento, é interessante para o roteiro que Devi haja dessa maneira, mas as roteiristas nunca dão ponto sem nó e temos a oportunidade de ver nossa intrépida protagonista aprendendo com seus erros, respirando fundo antes de falar a primeira coisa que vem à mente e, o melhor, pedindo desculpas por seus atos impensados.

Never Have I Ever

Para além de toda a jornada de Devi com relação à sua saúde mental, a adolescente também precisa lidar com os dilemas típicos da idade: garotos, amigas e o processo de ingresso em uma faculdade de ponta (no caso de Devi, uma das famosas Ivy League estadunidenses). Never Have I Ever é ótima em mostrar cada um desses momentos inserindo-os de maneira natural nos assuntos que rodeiam a mente da protagonista, mostrando que conhecer a si mesma é a chave para seguir em frente em diferentes facetas da vida. Se no começo da série Devi experienciava ondas enormes de dúvidas a respeito de si mesma, de sua cultura e de seu lugar no mundo, ao final de Never Have I Ever encontramos uma adolescente muito mais segura e certa de suas escolhas, seja no campo amoroso ou no dos estudos. E esse tipo de crescimento é incrível de acompanhar, ainda mais devido ao fato de que a vivência da personagem, e todos aqueles que estão ao seu redor, é capaz de dialogar com diferentes adolescentes de sua audiência. A terapia, para Devi, foi um ponto importante em seu crescimento e aprendizado, assim como o suporte de sua família e amigas.

Never Have I Ever nunca se coloca no lugar de mostrar a verdade absoluta a respeito dos temas que aborda, mas é capaz de costurar com muito humor e delicadeza diversos assuntos espinhosos, do luto à raiva adolescente (e feminina), do desenvolvimento pessoal à resiliência, da vulnerabilidade e da confiança. Ainda que uma série de ficção, Never Have I Ever trata de questões e experiências psicológicas com as quais muitas pessoas, principalmente adolescentes, podem se identificar. Os episódios e situações pode servir como estalo para discussões e observações sobre muitas faces psicológicas do comportamento humano, seu desenvolvimento e o processo de cura — e tudo isso enquanto a gente ri e se emocionada, criando um turbilhão de sentimentos que somente Devi Vishwakumar é capaz de nos proporcionar.