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Fiona Gallagher sempre foi a força e a essência de Shameless

Exibida nos Estados Unidos a partir de 2011 pela emissora Showtime, Shameless foi, por muitos anos, líder de audiência no canal, e ainda hoje apresenta bons números para uma obra tão antiga. A produção acompanha os irmãos Gallagher, liderados por Fiona, e Frank, seu pai abusivo, alcoólatra e ausente. A série começou como uma comédia pura, sincera e crua, que não poupa seu pública de algumas verdades duras. Entretanto, com o passar dos anos, o amadurecimento dos roteiristas e a evolução da dramédia na TV, a série passou a trilhar novos caminhos; o drama começou a tomar uma grande parcela da vida daqueles personagens e, na maioria das vezes, Fiona era quem estava no centro das discussões levantadas.

Fiona Gallagher (Emmy Rossum) teve mais de um momento marcante em Shameless, mas é justo dizer que nenhum deles supera o sétimo episódio da terceira temporada. Nesse episódio, enquanto enfrenta seu pai Frank em uma batalha judicial pela guarda de seus irmãos, a personagem protagoniza um dos discursos mais importantes da TV — o mesmo que consagrou a personagem como uma das mais bem desenvolvidas no meio da era da Peak TV.

Minha mãe é bipolar, meu pai é alcoólatra e um viciado, ele pega o que ele quer e não oferece nada em retorno. Nem dinheiro, nem suporte. Eu fiz o que eu pude para ajudar a cuidar dos meus irmãos, mas queria ter feito mais.”

Quando termina de falar na frente do juiz, Frank olha para baixo, mostrando, pela primeira vez na série, indícios de vergonha. Por meio desse discurso, Fiona deixou sua mensagem clara: família sempre vem primeiro, algo reforçado pela personagem durante toda sua trajetória dentro da série. Essa postura foi o que fez com que ela acabasse por se tornar a figura central, a cola que grudava os Gallagher. Por isso foi tão difícil calcular o impacto que o anúncio da saída da atriz Emmy Rossum teria na produção.

Atenção: O texto contém spoilers da season finale!

Independente, resiliente e uma verdadeira força da natureza, Fiona teve mais baixos do que altos na série. Do seu relacionamento complicado e abusivo com Jimmy/Steve (Justin Chatwin) até o momento em que seu irmão mais novo, Liam, usa cocaína sem querer quando ela deixa a mesma espalhada pela casa, a personagem atingiu o fundo do poço mais de uma vez, mas sempre acabou voltando. “Você é a pessoa mais forte que eu conheço“, diz Lip (Jeremy Allen White) para ela em um dos seus últimos momentos da produção.

Fiona Gallagher - Shameless

É por isso que a decisão dos roteiristas de apresentar um episódio morno para sua despedida foi algo incomum. Durante o episódio, todas as tramas secundárias continuaram acontecendo, como se fosse apenas mais uma season finale e todos eles fossem voltar para o próximo ano, como sempre. Ao mesmo tempo, Fiona fazia suas despedidas de forma tímida, concisa e principalmente silenciosa. Deu um abraço sincero em Lip e trocou um dos momentos mais crus da relação entre ela e seu pai. Dúvida em ir embora foi algo que pouco passou por sua mente, mesmo seu destino sendo ainda muito incerto. “Algum lugar perto do Equador, estou farta de invernos“, ela fala para Ian (Cameron Monaghan), que responde de imediato para ela ir e nunca olhar para trás. Nunca mais olhar para os relacionamentos explosivos, para o frio do lado sul de Chicago e principalmente para todos os problemas causados por seus pais após anos de negligência.

E ela faz isso, sem nem ficar para sua própria festa de despedida. Fiona entra em um avião e olha para a frente, com esperança de algo melhor. Os roteiristas consideraram colocar um rosto familiar na sua última cena (um amor antigo, talvez?), mas escolheram honrar a personagem ao apresentar, possivelmente pela primeira vez, uma das narrativas da mesma sem um homem envolvido. O último contato que temos com a personagem é seu avião passando, em direção ao desconhecido. E isso seria perfeito, se a série não fosse voltar normalmente para uma décima temporada — dessa vez sem o seu maior triunfo: sem Fiona, sem Emmy Rossum.

A nona e última temporada de Fiona foi marcada por um dos pontos mais baixos da sua longa trajetória. A personagem, que parecia ter encontrado seu caminho dentro do mundo dos negócios, acaba sendo alcançada por uma onda de má sorte, situação característica dos Gallagher. Por causa disso, um dos meus maiores medos começa a se tornar realidade: alguns aspectos da personalidade de seus pais (e de seus problemas também) começam a aparecer na sua personalidade. Amarga e com um sério problema com o álcool, a personagem vê despertar dentro de si uma força de vontade sobrenatural quando percebe que atingiu o ápice da sua irresponsabilidade, em uma passagem de partir o coração.

A trajetória de Fiona, no entanto, está longe de ser perfeita. Sua narrativa sempre esteve ligada a caras aleatórios, que nem sempre faziam bem para ela. A personagem namora mentirosos patológicos, viciados e até mesmo homens que fazem péssimas músicas sobre o relacionamento (o desastre chamado Gus, que compôs The F Word (f*cking Fiona) — uma das coisas mais ofensivas que a série já teve a coragem de fazer, e isso não é falar pouco). Ainda que seus relacionamentos sejam uma grande parte da sua vida, eles nunca a definiram e raramente seus namorados ficavam presentes na série, justamente porque todos os outros aspectos da sua vida eram muito mais interessantes do que esse.

Fiona Gallagher - Shameless

Como legado, ela deixa a criação dos seus irmãos e de sua irmã Debbie (Emma Kenney), uma possível sucessora. A personagem não é uma das favoritas do público, mas de algumas temporadas para cá ela ganha algumas qualidades que são dignas de Fiona — superprotetora, intensa e dona de si, ainda que muitas vezes tenha tomado decisões impulsivas e que tiveram consequências sérias na sua vida ao longo prazo. Talvez seja esse o papel que Fiona vá ocupar na série daqui para a frente: uma inspiração, ainda que indireta.

Durante nove anos, Fiona foi a alma de Shameless. A força, o coração e o cérebro. Mais do que isso, desafiou os padrões e subverteu suas chances, criando cinco crianças completamente sozinha. Ela viu oportunidades chegarem e irem embora e, muitas vezes, mal teve forças para continuar. Fiona tomava conta de todo mundo, mas ninguém tomava conta dela. Essa personagem peculiar, uma das melhores personagens femininas da TV no século XXI, foi reforçada por uma ótima e intensa atuação de Emmy Rossum — que lutou por igualdade salarial dentro da série, fez sua estreia como diretora e agora segue seu caminho para achar um projeto que consiga explorar (ainda mais) seu talento como uma artista completa.

É justo dizer que não tenho absolutamente nada em comum com Fiona Gallagher. Cresci em um ambiente estável e minhas referências de relacionamentos (seja de amizade, românticos ou paternais) não podiam ser mais distintos. Mesmo assim, me identifiquei com ela em vários momentos. A mistura de vulnerabilidade e força, que era algo tão presente na personagem, é muito comum em mulheres de carne e osso no mundo inteiro, e, no final, é o que faz Fiona uma das personagens mais universais e fundamentais dessa geração. Torço para que ela volte para o final da série, pelo menos para fazer uma pontinha.

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