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Branca de Neve: representatividade dos personagens no mundo real

A Disney, desde sua criação, foi uma produtora muito presente em diferentes gerações e é a responsável por trazer mais próximo o fantástico da realidade. Por isso, o grande número de releituras criadas por ela mostra o quão importante é a adaptação do que a sociedade consome. O papel do mocinho e da princesa vem mudando, junto ao dos vilões que se tornaram mais complexos e importantes.

O movimento industrial cinematográfico teve seu início na década de 20 e usou como base construções narrativas com elementos que fossem parte do imaginário do espectador — daí a criação das estrelas de cinema, por exemplo, as figuras representativas de comportamentos de massa. Muitas mulheres criaram uma versão própria que mimetizava o comportamento das personagens femininas, e, dessa forma, transformava ícones da cultura popular em projeção e sedução. Ao mesmo tempo, no entanto, essas imagens criam um estereótipo. Como tarefa da indústria cultural, a fetichização se desenvolve como parte do consumo e, através desses estereótipos, cria falsas necessidades, isto é, tudo aquilo que não é imprescindível para a sobrevivência, mas que se torna item de desejo quando aparece no meio de comunicação.

Com a dominação da mídia, acontece a conexão entre o imaginário e o espectador, que é o processo que influencia o comportamento de quem assiste determinada produção midiática. É por isso que, assim como no cinema, na televisão as narrativas têm personagens femininas, mas em papéis secundários e/ou limitadas a diálogos sobre vestuário e relacionamentos, gerando itens de valor a serem comercializados pela ideia de fetiche midiático. Quando o estereótipo é vencido, sua sustenção perde base simbólica em relação a sua apresentação. A mulher moderna só vai encontrar significado no produto midiático se ele for, no mínimo, um reflexo do que ela vive. E, assim como no caso das personagens princesas que são recriadas e apresentadas de formas mais independentes e fortes, rainhas e bruxas também passam por essa evolução.

Branca de Neve
Branca de Neve e Bruxa Má, de Gustaf Tenggren, meados da década de 30. Tenggren foi ilustrador do filme clássico da Disney.

Segundo a Wikipédia (2015), existem cerca de 14 adaptações da história de Branca de Neve na versão de conto e mais de 30 releituras no audiovisual. Todos os autores que reescreveram a narrativa mantiveram pelo menos um dos elementos e, em sua maioria, é a presença da personagem feminina Branca de Neve, a peça obrigatória para que essas sejam relacionadas com a versão original.

Elementos como os anões já foram trocados por variáveis como ladrões, frades e até reis. Mas já que eles sempre funcionaram como a figura da amizade, segundo alguns psicanalistas, nesse ambiente, independente de sua versão, Branca de Neve encontra um espaço em que sua beleza não a faz correr perigo. Eles são parte importante da construção de caráter da personagem, já que no momento em que os conhece, nota que todos são equivalentes, têm os mesmos artefatos na casa, cuidam um do outro e têm em mente riquezas ao invés do sexo ou a busca pela beleza. Os anões na história são como seus melhores amigos na vida real. Quando a criança entra em contato com a adolescência, é seu grupo de amigos que a ajuda a transitar dessa fase para a outra, são eles que estão ali para compartilhar sentimentos e ajuda mútua.

Já o espelho mágico da Rainha Má, de certa forma, se transforma na figura do amante, o confidente, aquele que só tem olhos para a dona daquela imagem. Numa espécie de autoafirmação, a beleza refletida só tem sentido se alguém, em algum lugar, a admirar. Para a antagonista da história, mesmo em adaptações onde esse elemento fica em segundo plano, a beleza é seu trunfo, seu passaporte para uma vida mais poderosa. Logo, o espelho é seu aliado para conferir que ela ainda é a mais bela de todas.

Branca de Neve
Branca de Neve, de Otto Kubel (1929/1930).

Na história de Branca de Neve fica bastante claro o que a madrasta sente pela princesa. Afinal, ela foi acolhida (ou inserida, conforme algumas versões) em uma família desestruturada pela morte da figura feminina. A partir do momento em que ela vê a ruptura da inocência na pequena moça, seu sentimento imediato é o da rivalidade. A madrasta não tem filtros contra a inveja, o rancor e o ciúmes, e Branca de Neve acaba sendo seu único e maior rival na briga pela atenção do pai, o homem da casa. A afeição que existe entre uma mãe e uma filha é livre de barreiras desse tipo; a criança é sangue do seu sangue e, consequentemente, sua construção de caráter se molda conforme sua influência. Quando essa figura sai de cena precocemente, abre lugar a uma nova rotina de sentimentos e o abandono sentido pela princesa também transforma a própria menina.

Quando Branca de Neve esbarra com diferentes tentativas mortais da madrasta, sua primeira reação não é temer nenhuma delas: todas eram figuras de diferentes mulheres que queriam cuidar dela. A figura da velha, por exemplo, muito comum na maioria das adaptações do conto, remete aos avós e ao reconforto que eles trazem, e esse seria um dos motivos pelos quais o disfarce foi infalível no plano da Rainha Má.

Ao oferecer a maçã para a princesa, a tentação de consumir algo proibido, assim como Adão e Eva, levou  Branca de Neve a aceitar o presente. Essa seria uma analogia à inserção da sexualidade na personagem. Ela morre menina, mas acorda pronta para uma vida a dois com o Príncipe Encantado. Esse, que se apaixona perdidamente pelas bochechas rosadas que a princesa tem, mesmo falecida, vê naquele caixão de vidro a beleza passiva da menina — e que, ao ser beijada dormindo, sofre uma violação.

Uma visão parecida, porém não totalmente igual, é a do Caçador para com Branca de Neve. No impulso de acabar com quem estava roubando sua atenção, a Rainha Má manda que a menina seja morta na floresta e exige seu coração e vísceras para que sejam ingeridas e sua beleza, incorporada. O Caçador, porém, é um personagem ambíguo, que não é controlado pela Rainha Má, mas que também não salva Branca de Neve completamente, deixando-a a mercê da própria sorte na floresta. A figura desse personagem retrata a posição que um filho pode ter para com os pais: num primeiro momento, acata o que lhe foi dito por amor e identificação, mas toma sua própria decisão em seguida e busca o que acha certo para si.

Branca de Neve
Branca de Neve, de Gustaf Tenggren.

Produtos midiáticos são potencializadores de relações e são responsáveis por unir e criar laços afetivos e sociais — por isso o seu consumo muda conforme a geração e época vividos. Um conto de fadas e uma narrativa audiovisual são, ambos, ferramentas sociais importantes e decisivas na construção da personalidade da audiência. Assim que consumidos, sua mensagem passa pela identificação, compreensão e projeção da mente do receptor, transformando o entendimento daquele produto. Esse é um processo catalizador na criação da própria impressão que cada um que escuta, assiste ou participa daquela realidade tem.

Nesse momento, da criação e assimilação de papéis dentro de uma sociedade, o tipo de representação que é imposto através desses produtos tem dois vieses: o estereotipado e o projetado. O estereotipado é o cenário, personagem ou final que já é previsto e identificado pela maioria. E o projetado seria o tipo de situação em que quem assiste se identifica ou cria empatia querendo, então, fazer parte daquilo.

A representatividade faz parte do processo de socialização construindo imagens e desejos a partir de uma narrativa. Quando os contos dos Irmãos Grimm foram compilados e publicados, essas histórias já eram de conhecimento popular e, por isso, já tinham um papel importante na aplicação da moral e costumes da época. Ao levar para o público, do fim da década de 30, uma história em que existia um duelo entre uma rainha poderosa e malvada contra uma jovem moça pela atenção de um homem em comum, a sociedade coloca mulheres como rivais. É apresentado também um universo em que a beleza feminina é a maior riqueza que qualquer mulher pode ter. Isso é levado para fora da narrativa através da venda de cosméticos, roupas e ideias de feminilidade.

Esse tipo de estereótipo criado de que a jovem é indefesa e a mãe é mais experiente, incorporada na vilã, também transforma o modo como a mulher é representada na sua variação de idade. A busca pela juventude faz parte da construção social de beleza e sinônimo de poder, o que, em outras palavras, significa “conquistar” quem quiser — imagem criada para identificar as princesas de sua recompensa final: o casamento, o amor correspondido. Mas quando, na vida real, as mulheres enfrentam situações muito diferentes das vividas por suas figuras idolatradas, sua visão de amor se torna adversa, resultando na quebra de expectativa. Para chamar a atenção desse público que não está sendo representado é necessário transformar seus personagens em tipos cada vez mais “humanos”. Esse é um dos caminhos da releitura e da adaptação.

Para que as novas tramas e histórias façam sentido para a audiência, a figura das princesas, bruxas e caçadores se transforma conforme seu público evolui. Como exemplo de personagem que não segue os mesmos padrões previamente estabelecidos, temos a princesa Merida, de Valente (2012), ou Mulan (2008). Ela são jovens que mostram, em seus discursos marcantes, que o responsável por seu destino são elas mesmas. E que sim, elas são mais do que capazes de chegar aonde querem, assim como toda e qualquer mulher.