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Entre o antigo e o novo: a Nova York de Fran Lebowitz em Faz de Conta que Nova York é Uma Cidade

Criado pelo escritor francês Charles Baudelaire (1821-1867) e amplamente analisado pelo ensaísta alemão Walter Benjamin (1892-1940), o flâneur é um tipo literário característico da Paris do século XIX que se constituía como grande metrópole marcada pelas aceleradas mudanças nos modos de vida que a modernidade impunha. O flâneur seria o homem com tempo para andar na cidade e absorvê-la, apreciá-la, refletindo sobre toda a multidão acelerada que o cercava, sempre correndo atrás de seus compromissos e horários — e, portanto, uma espécie de resistência a essa forma moderna e acelerada de ocupar a cidade, que também poderia gerar reflexões sobre se sentir sozinho mesmo rodeado de pessoas, e as complicadas intersecções entre individualidade e sociedade, típicas da vida moderna.

Pensando por um viés de gênero, o flâneur era sempre homem e a mulher como andarilha e observadora da cidade só veio a ser representada na literatura pouco depois, especialmente na escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941). Em Mrs. Dalloway (1925), é a própria Clarissa Dalloway que decide ir comprar suas flores em um belo dia no final de junho, em 1923, em Londres, e a partir disso acompanhamos sua caminhada e reflexões existencialistas ao longo do romance.

Adaptado para o audiovisual e para o mundo contemporâneo, vemos um certo tipo de flâneur, com uma espécie de análise dos “tipos” da cidade de Nova York, feito pela escritora estadunidense Fran Lebowitz na minissérie Faz de Conta que Nova York é Uma Cidade, de Martin Scorsese. Amigos de longa data, o trabalho é uma espécie de continuação do primeiro documentário de Scorsese sobre Lebowitz e Nova York, de 2010, chamado Public Speaking. 

Faz de Conta que Nova York é Uma Cidade

Ao longo de sete episódios, Faz de Conta que Nova York é Uma Cidade acompanha Fran Lebowitz, autora de Metropolitan Life (1978) e Social Studies (1981), entre outros, e conhecida pela sua sagacidade ácida, em comentários e reflexões sobre Nova York. Aparentando ter uma opinião formada sobre tudo, a autora responde perguntas sobre diversos temas, como arte e cultura, sua relação com a escrita e a literatura, dinheiro e envelhecimento, feitas por Scorsese, que é o ponto alto da série ao gargalhar genuinamente dos comentários da amiga.

Entre cenas de Lebowitz conversando com o risonho Scorsese e da escritora caminhando por uma Nova York caótica e cheia de pessoas, em uma representação do flâneur contemporâneo, acompanhamos suas reflexões de forma descontraída e rabugenta. No primeiro episódio, “Pretend It’s a City“, Lebowitz comenta com incredulidade que viu caminhando em uma das avenidas da cidade um homem andando de bicicleta comendo um pedaço de pizza e usando o telefone celular ao mesmo tempo. Feliz de ter nascido na segunda metade do século XX e ter acompanhado vários acontecimentos históricos e seus desdobramentos sociais e políticos, Lebowitz em certo momento afirma que só é possível entender os seus próprios contemporâneos e é esse o tom das análises da escritora, já com 70 anos, uma coleção de 10 mil livros e algumas dívidas que a impedem de ter seu apartamento próprio.

Apesar de amar a cidade que escolheu viver quando saiu jovem de Nova Jersey, em 1969, para tentar a vida em uma das cidades mais caras dos Estados Unidos, Lebowitz parece não querer entender o funcionamento de uma certa Nova York jovem, marcada pelo uso de redes sociais, seus smartphones e leitores de livros espalhados pelo metrô e por toda a cidade. Talvez por essa indiferença com esses marcadores tão próprios do mundo contemporâneo, a escritora, famosa também por seus talk shows divertidos e ácidos, tenha criado essa persona de uma senhora rabugenta e reclamona, que critica muitos desses novos tipos da Nova York contemporânea.

Faz de Conta que Nova York é Uma Cidade

Mesclado a percepções impacientes sobre a cidade e seus jovens, há também uma Lebowitz nostálgica sobre a cidade que a construiu enquanto escritora de sucesso e que nunca mais voltará: relata sua experiência como mulher taxista no início da juventude na cidade, excluída pelos homens da profissão que a viam com maus olhos; seus primeiros anos na cidade e a dificuldade para pagar o aluguel; encontros com grandes personalidades como Charles Mingus e Andy Warhol. Apesar de falar especificamente sobre feminismo apenas quando menciona seu apoio ao movimento #MeToo, Lebowitz narra sua trajetória enquanto mulher conquistando espaços na cidade, e uma mulher que não se encaixava em nenhum dos padrões esperados para ela: expulsa da escola muito nova, seus prazeres são ler e fumar, em um certo culto à preguiça.

Um dos pontos altos da série é a relação da escritora com a leitura e as suas conversas com a amiga de longa data, Toni Morrison (1931-2019), célebre escritora estadunidense, autora de títulos como O Olho Mais Azul (1970) e Amada (1987). No último episódio, “Library Services”, a autora afirma tratar a leitura não como um espelho do seu próprio mundo, mas como porta de entrada para outros mundos possíveis. Dona de um número invejável de títulos, podemos apostar serem essas inúmeras portas de entrada para outras realidades que ajudaram Lebowitz a construir seu sagaz senso crítico. Apesar de não ter nascido em Nova York, podemos afirmar que Fran Lebowitz é um símbolo da cidade que nunca dorme, apesar de tantas críticas aos mecanismos que criam essa cidade.

Entre críticas, nostalgias e declarações de amor, Faz de Conta que Nova York é Uma Cidade acompanha essa senhora rabugenta caminhar pelas multidões com sentimentos de amor e ódio pelos seus vizinhos, uma flâneur que conquistou o espaço urbano que tanto ama. Acompanhar essa personagem peculiar, formada nas contradições do mundo moderno, vivendo na velocidade do mundo contemporâneo e refletindo as mudanças e contradições sociais, nos faz refletir sobre como construímos nossa subjetividade em relação aos outros e ao espaço em que vivemos. E Lebowitz deixa claro: tudo fica mais divertido com boas leituras e grandes amigos.

2 comentários

  1. Comecei a ver a série e tô gargalhando com o mal humor da Fran Lebowitz. Me senti muito representada com a incredulidade dela falando do moço da bicicleta.

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