Categorias: ENTREVISTA, LITERATURA

Fernanda Castro: o mundo da autora de Mariposa Vermelha

Com experiência anterior no universo da literatura, não é de se surpreender que Fernanda Castro tenha feito tanto sucesso com seus livros. Antes de partir para a publicação de O Fantasma de Cora, pela editora Gutenberg, e da noveleta Lágrimas de Carne, pela editora Dame Blanche, Fernanda sempre leu, desde pequena, na companhia da irmã. Com formação em Ciências da Computação e trabalhando como programadora, Fernanda nunca deixou o amor pelos livros de lado, o que a levou a criar um blog literário repleto de resenhas. Uma coisa puxa a outra e a paixão pela fantasia, que esteve ao seu lado desde sempre, a guiou em sua jornada no universo dos livros, culminando na escrita e publicação do maravilhoso Mariposa Vermelha, seu primeiro romance lançado pela Editora Seguinte.

A seguir, você acompanha a entrevista que a autora, gentilmente, concedeu ao Valkirias.

Em primeiro lugar gostaria de dizer que me faltam palavras para descrever o que senti enquanto lia Mariposa Vermelha. Fico muito contente de ler mulheres contemporâneas, brasileiras, capazes de criar uma fantasia tão repleta de magia e sensações únicas. De onde surgiu a ideia para escrever o Mariposa Vermelha e como você desenvolveu sua trama dos primeiros rascunhos até chegar à edição lançada pela Editora Suma?

Fernanda Castro: Eu estava bem envolvida com a ideia de escrever um monster romance com uma mocinha moralmente questionável. Adoro ler romantasias, e sinto que muitas delas ou não mergulham de fato na parte monstruosa (é muito fácil amar um “monstro” quando ele é só um cara gato de chifres, né?) ou se mantêm na construção de que mocinhas só podem ser amadas pelo público caso sejam éticas, justas e desejem salvar o mundo. Eu queria sair um pouco disso. Adoro vilões, adoro quando um personagem me faz pensar “poxa, no lugar dele acho que eu faria a mesma coisa”. E há toda uma corrente de livros trabalhando o que chamamos de female rage, a raiva feminina, que é quase uma fantasia sobre mulheres abandonando o papel social que lhes é imposto e abraçando a noção de que sim, às vezes temos raiva e queremos queimar tudo sem pedir licença.

A partir dessa ideia, fui montando o enredo de vingança. Eu já tinha escrito um conto sobre uma mulher grávida de um demônio para a Revista Suprassuma, então aproveitei essa dinâmica para o Tolú. Os bichos-da-seda vieram por acaso, porque minha irmã passou uns meses criando esses bichos como um projeto junto do meu sobrinho, e eles acabaram ficando na cabeça. Gostei da metáfora. Quanto à escrita do livro, ela foi meio que a jato, haha. A Editora da Suma na época entrou em contato comigo perguntando se eu tinha algo para apresentar. Eu tinha metade do livro. Mandei para ela ler e escrevi o resto como uma louca, acho que o processo inteiro da primeira à última palavra durou quatro meses. Depois disso, o primeiro rascunho já foi vendido e seguiu para edição com o time da Suma, que aí sim deu uma polida boa na história.

Como você criou seus personagens? Acho que Tolú se transforma em um favorito sem muita dificuldade, mas Amarílis é muito especial com todas as suas dúvidas, tormentos e as muralhas que ergue ao redor de si para evitar lidar com a dor. Como foi seu processo para trazê-los à vida? Gosto especialmente dos nomes de cada um deles! As personalidades refletem algo seu ou surgiram completamente da sua imaginação? Eles são tão reais que ao final de Mariposa Vermelha já são como amigos.

F.C.: Acho que a criação de um personagem é sempre uma misturinha de ficção, observação das dores alheias e uma pitada de experiência própria. Amarílis foi a mais fácil, a que eu tinha com mais clareza na cabeça. Uma mulher que foi reprimida a vida inteira e que de repente se vê seduzida pela liberdade e que acaba gostando dela. A jornada dela de “sair do casulo” teve muito a ver com o momento em que eu estava vivendo, tanto a sensação de impotência na pandemia quanto as transformações pelas quais passei fazendo terapia para lidar melhor com alguns problemas familiares. É muito louco mudar essa perspectiva de que você pode se colocar em primeiro lugar, de que você não deve nada a ninguém, nem mesmo às pessoas que ama.

Já Tolú foi mais desafiador, porque eu precisava dar um jeito de criar certa vulnerabilidade para um personagem que, em teoria, era muito mais onipotente que o resto. Ele não tinha nada que o ameaçasse. Ao mesmo tempo, queria que ele se apaixonasse pela Amarílis nos próprios termos. Tolú não é humano, então não faria sentido aplicar nele as mesmas regras sociais ou éticas com que somos criados. Olhando em retrospecto, acho que o mais legal sobre os personagens de Mariposa Vermelha são justamente as inconstâncias, as contradições. Eles nunca são uma coisa só, mas tentam encontrar o melhor caminho.

Enquanto lia Mariposa Vermelha, não pude deixar de pensar em como a trama é costurada de maneira cuidadosa e delicada, culminando em uma conclusão poderosa. Para você, como a evolução de Amarílis pode servir de inspiração para leitores que preferem se manter em seus casulos em busca de segurança no lugar de enfrentar o desconhecido? Há algo dessas versões de Amarílis em você, da que começa e da que termina o livro?

F.C.: Há montes de Amarílis em mim, haha, e em muitas pessoas que conheço. Vou citar um comentário de uma amiga que sempre me pega muito: Elana Dykewomon escreveu que quase toda mulher que ela conheceu acreditava estar à beira da loucura, que tinha alguma parte louca dentro dela que ela precisava estar sempre atenta para não perder o controle, fosse do seu temperamento, da sua sexualidade, da sua ambição, dos seus desejos, da sua mente. Amarílis é um presente para todas as mulheres que já se sentiram assim, porque ela deixa a loucura correr solta e, com ela, a magia de ser quem realmente é. Através de Amarílis a gente sente o gostinho dessa liberdade”.

Acredito que é quase uma fantasia poder ver uma personagem chutar o pau da barraca desse jeito, aceitar as consequências e apostar para ver no que vai dar. É algo que a gente não pode aplicar 100% no mundo real (pelo menos não sem a ajuda de um demônio, haha), mas que serve como combustível, de certa forma. Às vezes, a gente precisa escutar nossos monstros e colocar nossas vontades acima dos outros. E isso não necessariamente nos torna pessoas ruins. Para quem foi socializado nessa estrutura de sempre sorrir, sempre ser suave e se comportar, é um alívio.

Como uma “pessoa que escreve”, sei que podemos passar por momentos de desafio durante a elaboração de um texto, que dirá um romance de quase 300 páginas. Quais foram os desafios que você enfrentou para trazer Mariposa Vermelha à vida? O que mudou na sua escrita desde os primeiros projetos publicados como Lágrimas de Carne e O Fantasma de Cora? Seu processo criativo mudou muito de um livro para o outro?

F.C.: Cada livro tem seu próprio processo: alguns saem mais rápido, outros precisam de muita boa vontade e oração. Mas, de modo geral, acho que o mais difícil para mim é o tempo. Não sou uma pessoa que senta na frente do computador e já sai escrevendo, eu levo uns instantes para entrar na vibe, para refletir sobre os rumos da história, para reler o que fiz no dia anterior e pegar o sabor de cada personagem. Então é bem complicado achar momentos de escrita no meio da rotina. Como trabalho com livros, fazendo tradução ou preparação para as editoras, às vezes eu simplesmente estou muito cansada de tanto olhar palavras, haha. Outra coisa que me pega é a expectativa. A gente sempre quer fazer nosso melhor trabalho, entregar nossa melhor história, e, a cada livro publicado, as cobranças aumentam. É algo completamente bobo e que só existe na minha cabeça, mas que me atrapalha um bocado.

Qual foi a passagem que você mais gostou de escrever em Mariposa Vermelha e qual achou mais difícil e desafiadora? Tenho vários momentos favoritos durante o livro, mas a reviravolta final é sempre o que me deixa mais empolgada ao lembrar da leitura.

F.C.: As partes mais divertidas com certeza foram os flertes entre Amarílis e Tolú, essa brincadeira de gato e rato. Eu poderia escrever mil páginas disso, hahaha. Por outro lado, todas as cenas de Amarílis lembrando ou refletindo sobre a mãe foram difíceis de colocar no papel. É uma relação muito delicada, muito crua e ambígua, com muitos sentimentos misturados. E eu queria tomar um cuidado especial para que isso transparecesse ao leitor, mostrar o tanto que Amarílis ama e se ressente da mãe, o quanto foge dela e sente sua falta, o quanto quer ser diferente ao mesmo tempo em que se orgulha das origens. Engraçado que, sobre a reviravolta final, muita gente me fala que achou a terceira parte do livro muito corrida, haha, então talvez não tenha sido meu melhor momento. Mas gosto dessa acelerada, é meio catártica.

Quem são as suas escritoras favoritas e as suas inspirações? Contemporâneas ou das antigas, deixe algumas recomendações para os leitores do Valkirias conhecerem melhor você por meio de seus livros do coração!

F.C.: Sempre digo que a Maggie Stiefvater escreveu o livro que eu queria ter escrito, chamado Corrida de Escorpião. No geral, tendo a me apaixonar por histórias com foco mais no interior dos personagens do que no enredo. Não me importo muito com quem ganha a guerra ou em descobrir qual era o tesouro, prefiro saber por que aqueles dois irmãos não se falam mais ou por que aquela mulher carrega o fardo de viver à sombra da mãe. Dito isso, admiro muito as histórias de Madeline Miller, Connie Willis, Shirley Jackson, Mariana Enriquez, Helene Wecker, Aline Valek, Ana Paula Maia, Jana Bianchi e Hache Pueyo (e sei que estou sendo injusta com mais outro montão de escritoras incríveis). Também acho que é quase impossível escrever boas cenas de romance erótico sem ter lido bons livros de romance erótico, por isso vou indicar Tessa Dare e Karina Heid. Para terminar, há um manuscrito de Lis Vilas Boas que, se Deus, quiser será publicado em breve e eu vou poder dizer para todo mundo que eu queria ter escrito.

Quais são os próximos passos para a literatura fantástica de Fernanda Castro? Alguma possibilidade de reencontrarmos Amarílis e Tolú em um futuro próximo? Sei que não me incomodaria de ler sobre as aventuras desses dois enquanto você quisesse escrevê-las. Tem alguma novidade guardada a sete chaves que poderia compartilhar com a gente?

F.C.: Eu sou péssima com continuações, hahaha. Penso em escrever alguns materiais extras para mimar os leitores no futuro, mas nada muito estruturado. Para ser sincera, acho que uma continuação de Mariposa Vermelha exigiria um novo arco de evolução para a Amarílis (o que pode acabar tirando um pouco o brilho do anterior) e mataria algo que gosto muito em finais abertos, que é a possibilidade de deixar o leitor imaginando os desdobramentos de um livro. Em meio a tantas franquias e reboots, sou uma firme defensora das histórias que acabam! Já os segredos do futuro estão tão bem guardados a setenta chaves que nem eu sei, hahaha. Mas estou trabalhando em várias pequenas ideias, vendo como elas brotam e qual pode virar livro primeiro. Posso adiantar que não pretendo parar de escrever tão cedo…