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O papel da mulher nas comédias segundo Kevin Can F**k Himself

As sitcoms, abreviação de situational comedy, se tornaram um fenômeno de entretenimento do gênero de comédia bem antes das televisões surgirem. O formato surgiu nos anos 1920, nos Estados Unidos, ainda nos programas de rádio e só fez o seu lançamento na telinha em 1947 com o seriado Mary Kay and Johnny, se tornando altamente popular com I Love Lucy quatro anos depois. Com enredos que têm como objetivo se aproximar do telespectador por meio do retrato da vida casual e doméstica, as sitcoms nos fazem rir e ajudam a lidar com as situações mais trágicas de nossas vidas, sempre tentando ver o lado cômico delas. Porém o mesmo tem o longo histórico de mal representar e diminuir suas personagens femininas, assim como outras minorias.

Em Kevin Can F**k Himself, não apenas vemos a quebra do status quo da comédia como temos a oportunidade de ver e sentir como o clássico papel da “esposa” nesses seriados é submisso, mas também apagado, e por quê é a hora de mudarmos as tradições das comédias televisivas.

Atenção: este texto contém spoilers!

Kevin Can F**k Himself

Uma sala iluminada com cores vibrantes, um sofá e uma mesa de centro, uma escada no fundo e uma porta que dá para a cozinha: esse é um cenário principal clássico que conseguimos relacionar a diferentes séries de comédia. A cena inicial mostra Kevin (Eric Petersen), seu pai e seu melhor amigo, Neil (Alex Bonifer), no cenário personificando o “meninos serão meninos” ao acertarem Allison (Annie Murphy) com uma bolinha de ping-pong, e sendo aliviados por um trilha de risadas. Ela é chamada de “Mãe” pelos homens adultos mais velhos que ela e, quando tenta defender sua festa de aniversário de 10 anos de casamento, escuta que ela é uma “mulher de 35 anos”, enquanto Kevin é um “garoto de 35 anos”.

Allison: Qual é a diferença?
Kevin: Eu estou atingindo o meu ápice e você… (pausa, para efeito cômico) está também.

Kevin se livra da situação com o apoio dos outros homens no ambiente, que incentivam e também têm o comportamento de man-child. Quando se refugia para a cozinha, o cenário de Allison muda completamente; as luzes e cores vibrantes do cenário multicâmera se torna triste e abatida com uma única câmera registrando os seus momentos, nos lembrando dos seriados de drama e suspense. A feição de Allison também muda: nesse momento ela parece esgotada, conseguimos ver as marcas de expressão em seu rosto com mais facilidade do que no ambiente claro em que ela parecia sempre em segundo plano. A mudança é proposital, assim como a cena seguinte, em que ela quebra um copo de cerveja em sua mão como se fosse o anúncio do basta na vida que está levando.

Seu título é quase uma resposta para uma outra sitcom, Kevin Can Wait (2016-2018), que centrou uma polêmica ao demitir a atriz que fazia a esposa de Kevin e matar sua personagem entre uma temporada e outra, colocando Leah Remini em seu lugar sem dar nenhuma explicação do motivo ou lidar com a morte da personagem de Erinn Hayes. A forma como a série não se deu ao trabalho de honrar a personagem mostra como as mulheres em comédias são tratadas como plano de fundo e apenas uma parte da construção do homem protagonista, onde seu papel é ser a esposa e alvo de alívio cômico para o restante do elenco.

A ideia de jogo de câmeras pode ser uma novidade, mas não é a primeira vez que vemos na televisão. Em WandaVision, Wanda (Elizabeth Olsen) cria um universo paralelo entre a sua realidade e a sua vida perfeita com Vision (Paul Bettany) para não ter que lidar com a realidade. O cenário de sitcom é seu refúgio, que resgata suas memórias da infância e lhe protege da realidade, que é cruel demais para se viver, e lhe rodeia de momentos perfeitos e ideais, onde Wanda não é uma Vingadora, mas sim apenas uma esposa dedicada e que vive feliz com seu marido, Vision. Em Kevin Can F**k Himself, nós não temos a fantasia ou o realismo mágico para justificar a dor de Allison; na sitcom, o papel de esposa perfeita não é o seu refúgio, é a sua prisão.

Kevin Can F**k Himself

Nos seriados de comédia, o papel da mulher é sempre o mesmo: a esposa e dona de casa dedicada que atura as peripécias do marido e seus amigos homens sempre com um sorriso no rosto e limpando suas bagunças, contando ele como mais um de seus filhos para criar. É um clichê pronto que está mais do que na hora de acabar, mas que seriados como Everybody Loves Raymond (1996-2005), According to Jim (2001-2009), The King of Queens (1998-2007) e a já mencionada Kevin Can Wait (2016-2018) seguem perpetuando em seus formatos.

Em algum momento dessas comédias, o telespectador pensa “Por que ela está com ele?”, uma vez que o papel da esposa está sempre com uma mulher mais jovem, estereotipada quase como uma modelo e perfeita para o seu marido, enquanto ele mesmo é desleixado, machista e não tem nenhuma atitude responsável. Por que essa mulher atura essa situação? Outro estereótipo de casamentos é que homens se casam esperando que nada mudará e suas esposas permanecerão as mesmas, enquanto mulheres criam a expectativa de que seus esposos irão mudar, mas nas comédias nada muda. Allison tinha um futuro brilhante, estava estudando, iria embora da sua pequena cidade e fazer o seu nome em outro lugar, mas então conheceu Kevin, um homem mais velho, que lhe prometeu um futuro incrível se ela esperasse um pouco. Dez anos depois, a única coisa que mudou foi Allison.

Em um episódio, Kevin se envolve em mais uma aventura infantil, que lhe rende muitas risadas, e liga sem parar para Allison lhe safar de mais uma na versão de sitcom. Na versão de câmera única, Allison fica ansiosa com as ligações sem parar do marido enquanto ela está viajando, querendo saber sem parar onde ela está. O que na visão cômica de Kevin é mais uma aventura que ele depende da esposa, na visão de Allison é um comportamento possessivo que ela precisa sempre dar satisfação para o marido.

Kevin Can F**k Himself

Allison sobreviveu dez anos ao lado de Kevin na promessa de que durante esse tempo eles economizariam para comprar uma casa em um lugar melhor e iniciariam seu feliz para sempre, porém logo ela descobre que enquanto ela desistia de seus sonhos e trabalhava em um emprego que só beneficiava o marido, ele também pegava o dinheiro da casa e financiava seus “planos infalíveis” sem avisá-la. Essa sendo a gota d’água em um copo cheio de desilusões, Allison toma a maior decisão da sua vida para sair desse relacionamento abusivo: ela vai matar Kevin.

Kevin Can F**k Himself também explora as relações entre as mulheres dentro do gênero. Historicamente, as esposas têm direito a uma melhor amiga, quando não apenas dedicam suas vidas para sua família, que pode muito bem ser sua cópia de outra esposa bela, recatada e do lar; e qualquer outra mulher se torna uma ameaça ou sua inimiga, dependendo do cenário. No seriado temos Patty (Mary Hollis Inboden), irmã de Neil e a única mulher membro do clube de Kevin. Patty cai no estereótipo da mulher não feminilizada, que está apta a andar com os meninos, entra em suas brincadeiras e ridiculariza a esposa para distanciar sua imagem de mulher “das outras”.

Apesar de reforçar a distância entre a mulher aceita pelos homens e a esposa que mais parece a mãe de todos, Allison e Patty ainda são mulheres que sempre serão lidas como não-prioridade no universo misógino e machista criado por homens cis e brancos das comédias. Patty é a única pessoa do elenco que também consegue flutuar entre as versões de comédia e drama, por viver seus próprios conflitos que nunca são protagonizados ou cuidado pelo grupo de homens. Diferente de Allison, Patty não é a esposa, mas a irmã do melhor amigo de Kevin, a sua vida não é glamourosa pelas luzes artificiais e trilhas de risadas para aliviar o seu cotidiano; ela está estacionada em seu relacionamento com Kurt (Sean Clements), um homem que não lhe adiciona em nada, e vive na casa dos McRoberts para se distrair da monotonia do seu emprego como cabeleireira.

Kevin Can F**k Himself

Conforme os episódios vão avançando e as duas iniciam conversas que demoraram dez anos para acontecer, tanto Patty quanto Allison percebem que o tempo inteiro as duas estavam passando por coisas similares e tendo sentimentos parecidos, mas nunca pensaram em unir suas forças. Esse é um exemplo clássico da rivalidade feminina, usado pelo patriarcado como forma de manipular e separar mulheres, onde elas se sentem tanto inferior quanto superior a outras mulheres, ditas como serem diferentes umas das outras e criando o sentimento de rivalidade para que o sistema patriarcal nunca corra perigo e homens garantam seus privilégios. Logo, Allison e Patty criam uma irmandade entre elas, onde Patty ajuda Allison em seu plano de se livrar de Kevin enquanto ela se desenrola no seu sistema de tráfico de drogas, que esconde de todo mundo.

Em determinado momento, Kevin descobre que as duas saíram da cidade e comeram em sua lanchonete favorita sem trazer um lanche para ele e expulsa Patty do seu clube do bolinha. É nesse momento que conseguimos captar a nuance entre a comédia e seu alívio cômico e o comportamento tóxico e abusivo de Kevin. Enquanto no primeiro momento Kevin está fazendo o seu discurso de como foi traído por sua amiga e sua esposa em meio a risadas no fundo, no segundo vemos como Kevin está irritado com o fato de que Patty e Allison iniciaram uma amizade e foram para um lugar sem a sua supervisão.

Na vida real, comportamentos abusivos não são escancarados e claros, são pequenos momentos de controle e descontrole que muitas vezes não percebemos no instante de seu ato, mas em uma longa lista de momentos passados que são acumulados dentro das vítimas. É o que Kevin Can F**k Himself mostra: em meio a complacência, cultivamos um sistema que decidimos não ver e não mudar em nome do alívio cômico.

As sitcom mimetizam uma parte muito peculiar da realidade machista e patriarcal de nossas vidas. O protagonismo nessas produções está no homem, que sempre possui uma desculpa para ser do jeito que é e é engraçado demais para mudar, ao passo em que a mulher é a pessoa madura da relação e é tida como mãe por procuração daqueles homens adultos e muito provavelmente mais velhos do que ela (usando o estereótipo de meninas se desenvolvem mais rápido e são mais maduras que meninos e que eles sempre serão meninos).

Mesmo que temos a ideia de que essas produções são sobre o casal, a realidade é que o resto do elenco é composto dos amigos do marido que ganham muitas vezes mais horas de cena do que a esposa, e também os filhos, que se abrange para seus parceiros, colegas de escola e melhores amigos, enquanto da esposa não sabemos o que acontece com ela fora do cenário familiar, e quando ela ganha alguma cena solo em sua maioria está sempre relacionado ao lar e ao cuidado de sua família, enquanto o marido tem suas ambições juvenis e aventuras que nunca tem sucesso.

Com Kevin Can F**k Himself, acompanhamos como é a vida da esposa de comédia por trás das câmeras e luzes brilhantes, sem as trilhas de risadas. É deprimente, paranoico e sufocador. Repensamos quem é esse homem e marido pela visão da mulher, que entregou a sua vida e ambição para viver os sonhos do cônjuge, que aos poucos foi silenciada e diminuída a simplesmente satisfazer os homens ao seu redor.


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1 comentário

  1. Essa série é incrível, fiquei muito feliz que foi renovada para a segunda temporada e adorei ler a visão de vocês!

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