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Jovem rainha, senadora, espiã: a jornada de Padmé

A Galáxia tão, tão distante nos presenteou com algumas personagens femininas mais celebradas das últimas décadas — mas isso veio com um preço. Para o bem da verdade, é fácil identificar que o mundo cinematográfico de Star Wars não é nada amigável com as mulheres. Nesse universo de guerras espaciais fictícias, os diretores parecem ávidos em remover a agência de suas protagonistas.

Nenhuma delas, antes das sequências, possui um desenvolvimento individual de habilidades com o mesmo foco e separação de arcos dos seus colegas. Mesmo Leia Organa (Carrie Fisher), um ícone da cultura pop, teve o momento de maior destaque na trilogia original ofuscado por um infeliz biquíni dourado, usado enquanto era mantida como escrava de um alienígena não-humanoide. Toda a linguagem da cena, ainda por cima, aponta para um subtexto de que a Rebelde era escrava sexual de Jabba, The Hutt. Leia, mesmo tanto tempo depois, continua sendo marcada por essa imagem. E, possivelmente ela seria determinante, caso Carrie Fisher não fosse dona de uma personalidade forte o bastante para tomar o destino de Leia em suas mãos.

Rey (Daisy Ridler), a primeira protagonista Jedi das trilogias, teve dois filmes de escolhas autônomas e desenvolvimento emocional antes de ser designada para carregar o Legado Skywalker. Aqui vão, por exemplo, alguns fatos pontuais sobre essa última trilogia e o desenvolvimento cinematográfico mal planejado da personagem: no Twitter, em 2017, Rian Johnson afirmou que não havia planejamento algum para os acontecimentos após The Last Jedi. George Lucas programou ele mesmo o “Luke eremita” mas, quando coube aos novos produtores designar o motivo, não o fizeram. Ficou a cargo de Johnson lidar com a falta de visão final. J. J. Abrams não era sequer cogitado para retornar ao terceiro filme, mas intervenções da Disney decretaram que ele retornaria, passando por cima da LucasFilm. Ou seja, quando J. J. diz que Rey sempre foi vista para ser Skywalker, não é difícil levantar a sobrancelha em dúvida e questionar o quanto disso é verdade. Principalmente depois que os escritores de A Ascensão Skywalker chamaram-na de “vessel”, ou quando Chris Terrio atribuiu à morte de Carrie Fisher a falta de cenas de Kelly Marie Tran, em trecho concedido ao The Hollywood Reporter. De acordo com ele, a história de Rose Tico seria ao redor de Leia — apesar de terem feito mudanças na edição até o mês anterior ao lançamento, com refilmagens, e nenhuma delas envolveu uma maior participação de Marie Tran.

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No submundo dos bastidores, George Lucas esteve com Dave Filoni recentemente numa palestra e afirmou que “se você não sabe escrever, não deveria dirigir” —  isso ocorreu logo após Abrams falar que não tinha a menor ideia de como escrever finais. Essa entrevista ocorreu para o New York Times, onde o diretor afirma: “Eu nunca fui bom com finais. Eu realmente não acho que seja bom em nada, mas sei como começar uma história. Finais são difíceis”; isso foi dito durante uma das várias promoções após o lançamento de A Ascensão Skywalker, em dezembro de 2019.

Mas, verdade seja dita, o mundo de Star Wars sempre foi e sempre será terreno de muita especulação, com um sombrio histórico permanente: personagens femininas vão pagar o preço pelos bastidores da obra dominados por um círculo de homens. E nenhuma delas teve sua história mais ofuscada e colocada para fora da curva do que Padmé Naberrie (Natalie Portman). Ou, para muitos, Padmé Amidala, nome adotado durante o exercício dela como rainha, para proteção de sua identidade, permitindo-a viver entre os civis quando assim fosse necessário.

A jovem monarca marcou seu tempo com um histórico de feitos impressionantes e designações complicadas mas, ainda assim, teve sua trajetória nos filmes escrita para servir como ponto de ruptura para a queda de Anakin (Hayden Christensen) e ascensão de Darth Vader, como a mãe dos gêmeos Skywalker. Interpretada por uma Natalie Portman jovem demais, numa época em que a atriz sequer havia terminado o colegial e era constantemente fotografada com um livro na mão, estudando enquanto caracterizada como a personagem, Padmé não chega a ser pelo menos mencionada nos últimos três filmes. Mesmo sendo avó de Kylo Ren/Ben Solo (Adam Driver), e apesar de ser a mãe dos gêmeos Skywalker/Organa (Mark Hamill/Carrie Fisher), a despeito de suas palavras e ações terem desencadeado uma corrente de eventos capazes de mudar o curso interplanetário.

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Padmé disseminou sementes da rebelião por onde passou, mas nada disso importa, claro. Não para uma audiência cruel perante mulheres que se apaixonam e cometem erros. Não quando os diretores parecem mais entusiasmados com a ideia de um trágico fim onde ela se entrega por completo do que fazer menção às implicações políticas de seus atos.

Padmé não foi apenas mais uma governante, ela foi alguém que durante toda a vida enfrentou situações de risco e desafiou injustiças. Jovem rainha, senadora, espiã no Senado, treinou diversas técnicas de combate e autodefesa, sendo dona de uma mente brilhante, capacitada e estrategista que formulou muitos dos planos aplicados entre ela e suas decoys. Amidala cresceu sob o escrutínio popular e, apesar de toda a pressão, excedeu as expectativas em seus deveres políticos, sendo uma das mais amadas governantes de Naboo, seu planeta de origem. Sobre Naboo, aliás, faz-se importante lembrar que a tradição local concedia direito ao voto para aqueles que demonstravam “maturidade”, não sendo idade um empecilho para ela ou outros que vieram antes.

Por consequência da sua criação rígida, a rainha, assim como Anakin, detinha nenhuma experiência amorosa quando descobriu tais sentimentos na companhia do “Eleito”. O romance trágico entre Padmé e Anakin deveria ser uma das vértices emocionais exploradas apropriadamente no fomento dos acontecimentos dramáticos envolvendo a família Skywalker; mas, como num passe de mágica, tudo acaba girando ao redor dele. O único personagem a explorar sua ligação com Padmé o faz nos livros, sendo Luke o responsável pela busca de conhecer melhor quem foi sua mãe.

De tal maneira, acaba sendo particularmente fácil deixá-la de lado quando a forma de expressão mais popular de Star Wars vive em seus filmes e eles demonstram vontade nenhuma em tornar o legado geracional tanto dela tão importante quanto o dele. Ora, caso o filho de Shmi não nutrisse sentimentos por alguém tão importante para a República quanto ela, talvez sua queda fosse prevenida. Mas apenas um coração piedoso como o dela seria capaz de perdoar as atitudes do outrora Jedi.

Em teoria, o material envolvendo Padmé poderia impulsionar um tempo de tela inspirador e marcante mas, ao escolher transformá-la, no terceiro ato, em alguém com comportamento muito mais encaixado nas tropes de “mocinha apaixonada que precisa ser salva”, George Lucas acaba falhando com a personagem. Alguns escritores de livros, como E. K. Johnson, responsável pela adaptação da história da própria Naberrie, afirmam até que o diálogo entre ela e o prodígio Jedi em A Vingança dos Sith remete a um término de relacionamento. Mas, na certa, a maneira como o filme foi escrito não deixa essa interpretação muito verossímil. Podemos, contudo, supor isso seja uma prévia do que vem na sequência de Queen’s Shadow (publicado em março de 2019): Queen’s Peril (previsto para este ano, em junho). É possível que finalmente os eventos finais na vida da senadora sejam contados através de seus olhos.

O primeiro livro que narra tal história tece uma completa imersão no cotidiano de Amidala e torna claro que sua vida definitivamente não girava ao redor de Skywalker. Inclusive, Padmé detém o maior vínculo afetivo entre mulheres, sendo confidente e grande amiga das Handmaidens. O laço entre ela e suas sombras, um grupo de jovens parecidas treinadas para parecer consigo em trejeitos, ações e aparência, ia bem além da relação entre rainha e suas sombras. Tanto era que, após deixar o cargo, teve a ajuda e presença de suas decoys de forma contínua, mesmo sem poder fornecer a mesma proteção de antes em troca. O livro também revela muitos detalhes sobre Sabé, interpretada nos filmes por Keira Knightley, que confirma-se no livro como sua amiga mais íntima. Aliás, numa leitura crítica das páginas desconhecidas por quem não tem muito interesse nas obras escritas de Star Wars, Sabé parece até mesmo nutrir uma espécie de sentimento mais profundo por sua rainha — à qual devotou a própria vida mesmo depois que teve a notícia da morte de Padmé. Ainda em Queen’s Shadow, outra de suas Handmaidens tem uma namorada, eventual esposa. A leitura do livro é bem agradável e merece ser conferida por quem sempre quis saber mais sobre sua protagonista, destacando-se principalmente por ser escrito por uma mulher e por fortalecer, na narrativa, os laços entre mulheres.

Percebemos, até então, que, mesmo vivendo no coração da política, ela não dava espaço para que outros viessem a passar por cima de sua determinação, ao mesmo tempo que nutria um laço profundo com aqueles mais próximos. Foi o próprio George Lucas quem fez o esboço da personagem como alguém forte, determinada, cuja seriedade em suas ações não era apenas um ato. Seu caráter valente sempre desafiou qualquer ataque à democracia. Um traço que, não por acidente, também corre nas veias da sua memorável filha, Leia Organa. Enquanto Leia herdou os traços diplomáticos maternos, a empatia inesgotável de Luke é espelhada nessa mesma característica marcante que havia em Padmé. E é esse alinhamento em defesa da democracia e de combate à corrupção um dos maiores marcadores da personagem, comumente lembrada por parte dos fãs como uma mulher que foi responsável pela própria morte, castigada por ser “boazinha demais”.

Boa, nula, apagada, apaixonada. Essas são algumas características repetidas por aqueles que não veem nada de valioso nela ou foram incapazes de ler o subtexto por trás dos filmes.

Padmé não transformou-se em rainha antes dos seus 15 anos, eleita aos 14, por conta falta de personalidade ou atos de submissão. Tanto ódio direcionado à personagem é fruto de várias incoerências narrativas vistas nos filmes, pois é bem perceptível em mídias como os livros, quadrinhos e na famosa série animada The Clone Wars, que Padmé dificilmente sucumbia perante dificuldades. Essas últimas adaptações de Star Wars costumam tratá-la com maior seriedade do que os Episódios I, II e III. Na novelização de A Vingança dos Sith, a senadora é categoricamente escrita como uma das sementes da Rebelião. Seus atos em vida podem ter levado a um final trágico, mas a amplitude deles ressoou em Mon Mothma e nos Organa, sendo eles apenas exemplos daqueles inspirados por suas palavras, determinação e capacidade de navegar entre a compaixão e o saber o que é preciso fazer para provocar mudanças reais.

Padmé

Em Queen’s Shadow, Padmé ganha ainda mais profundidade, dado o foco em suas qualidades como espiã, amiga leal e dona de uma natureza empática que a faz, por muitas vezes, priorizar a segurança e alegria daqueles que a cercam em detrimento dos próprios desejos. Ela pode ter encontrado em Anakin um grande amor, mas ele não foi o primeiro. O primeiro amor da filha dos Naberrie foi a diplomacia, a busca pela paz, uma paixão incontida pelo bem da sociedade. Dito isso, é possível fazer juízo de que o Episódio III da saga não trouxe apenas a queda do Cavaleiro Jedi mais habilidoso da Galáxia, como também daquela a quem amava, da rainha mais célebre que Naboo tivera. E seu amor por ela foi profundo ao ponto de ser uma das maiores armas de manipulação usadas por Palpatine com o fim de trazer Anakin para o Lado Negro.

Foi apenas quando ele passou a ter visões onde Padmé perdia a vida que Skywalker afundou em seu flerte com o fim da própria humanidade. Enxergar toda a história entre eles numa leitura complementar nos leva a perceber mais qualidades humanas em toda essa guerra, que vai além dos sabres de luz e é maior do que o conflito entre as Forças. Padmé nos entrega uma qualidade cinza para esse universo que parece definido por determinismos categóricos. Em Padmé e Anakin não existe apenas luz ou escuridão. A primeira nos mostra o quanto alguém pode ser bondoso e ainda assim não dobrar-se, ser capaz de abdicar do pacifismo, ir contra as regras, colocar o dever em primeiro lugar. Anakin, por sua vez, exibe o quanto uma pessoa tida como a promessa de uma geração pode não aguentar as expectativas do mundo e padecer perante a manipulação de ideais. Buscaram, um no outro, a compreensão e cumplicidade. Encontraram, ironicamente, um atalho para o abismo habitado por seus maiores inimigos. E apenas um deles ganhou incontestável simpatia e popularidade.

Padmé carece de suporte por muitos motivos, mas nenhum deles faz parte do seu histórico dentro da ficção. Faltou, na época das prequelas, maior atenção à suas origens, um olhar mais sensível que respeitasse sua voz. Carrie Fisher foi uma das revisoras do roteiro, mas mesmo ela só conseguiu ir até certo ponto, não detendo o poder para mudar a visão dos produtores. Não que isso seja muito surpreendente quando falamos de Star Wars, uma das sagas mais celebradas mundo afora — e que, por consequência, possui grande carga de sexismo que acaba sendo depositada nesse universo através não apenas de contribuidores partícipes, como do próprio público.

Resta, aos que desejam conhecer mais sobre as histórias não centradas na visão de Anakin, Luke ou Obi-Wan, ou na jornada do herói, investir um pouco na leitura dos livros e conhecer as obras animadas que compõem a Galáxia criada décadas atrás. Star Wars mora além dos filmes, assim como Padmé Naberrie e sua jornada. Que com ela aprendamos a lutar por nossos direitos e a seguir o caminho em que acreditamos.

— You call this a diplomatic solution?
— No, I call it an aggressive negotiation.

— Você chama isso de uma solução diplomática?
— Não, eu chamo isso de uma negociação agressiva.


** A arte em destaque é de autoria de Mia Sodré.