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Donna Pinciotti: o pingo de revolução em meio ao oceano conformado

Avanços tecnológicos, luta por liberdade de expressão, revolução sexual, músicas em tom de protesto e outros tantos estereótipos fazem a década de 1970 parecer tão revolucionária, que até esquecemos que o andar da carruagem do progresso social não aconteceu de maneira tão acelerada naquela época. É o que mostra a série estadunidense That’s ‘70s Show, veiculada pela primeira vez em agosto de 1998. Na série, um grupo de amigos adolescentes (Donna Pinciotti, Eric Forman, Michael Kelso, Jackie Burkhart, Fez e Steven Hyde) tenta curtir a vida na Wisconsin dos anos 1970 enquanto ficam presos a uma rotina que se resume em reuniões no porão de Eric, conversas, discussões, festas, namoros e maconha.

O círculo de amizade dos cinco personagens principais é composto por diferentes personalidades, porém, em sua maioria, com a mentalidade baseada nos ideais retrógrados de seus pais. Contraditoriamente, Donna (Laura Prepon) teve uma criação liberal, já que seus progenitores faziam parte do grupo estereotipado como sendo defensores da paz e do amor. Contudo, no momento em que sua mãe decide estudar sobre o feminismo junto de um grupo de mulheres com ideais igualitários e começa a reproduzir esses novos conhecimentos em sua vida pessoal, seu pai decide que aquilo é errado e se põe em posição de julgamento sobre a esposa. Diante de toda essa situação, Donna decide tomar as dores da mãe, e ao longo de vários episódios, consegue (aos poucos) mostrar ao pai que aquele não era seu local de fala.

Segunda Onda Feminista

Donna Pinciotti

Donna se destaca dos demais personagens por defender seus ideais com unhas e dentes, coisa que não era muito aceita na época retratada na série. É importante lembrar que os anos 70 compreenderam, entre outros eventos, a Segunda Onda Feminista (1960-1980), que tinha como slogan a frase “o pessoal é político”. O período foi marcado pela conquista de espaço de feministas, quando as mulheres conseguiram ser mais ouvidas pela sociedade. O movimento encorajava as mulheres a se politizar, a fim de combater estruturas sexistas de poder.

Mesmo em ascensão, o movimento feminista ainda enfrentava opositores de renome na sociedade. Em 1974, o ator estadunidense John Wayne, ao ser convidado por alunos de Harvard para um debate sobre feminismo, proferiu a seguinte frase: “Elas têm o direito de trabalhar onde quiserem, contanto que já tenham o jantar preparado para quando você chegar em casa”. Por falas como esta, se posicionar ideologicamente era assustador para as mulheres da época, o que torna Donna Pinciotti uma das personagens mais corajosas de That’s ‘70 Show.

A garota, mesmo cercada de homens com pensamentos e atitudes extremamente machistas, não tinha medo de travar discussões acaloradas com seu namorado, amigos ou pai para defender seus ideais igualitários. Eric Forman (Topher Grace), seu par romântico na série, tentou inúmeras vezes silenciar suas falas de protesto diante de atitudes opressoras de seu grupo de convívio. Não muito diferente de situações vividas por muitas mulheres nos dias atuais, ao demonstrar sua vontade de ter uma carreira e uma vida independente de seu futuro marido, Donna era ridicularizada pelo homem com o qual desejava se casar. A visão de um futuro próspero para si mesma o incomodava tanto, que virou motivo de discussões entre o casal, mas nunca motivo para Pinciotti abrir mão de sua motivação de vida. Diversas vezes, eu, como espectadora, me peguei pensando em algum motivo plausível para que ela não terminasse aquele relacionamento, já que ele claramente a colocou para baixo diversas vezes.

A verdade é que é difícil julgar o relacionamento alheio (mesmo quando é fictício). Talvez justamente por amar tanto seu namorado, Donna preferiu brigar para defender seus ideais do que terminar de vez o relacionamento. O difícil é admitir que todas as tentativas de educar Eric foram em vão, já que ele sempre se mostrou irredutível em abrir mão do machismo espelhado nas atitudes de seu pai.

Donna foi a única rede de apoio de Jackie

Donna Pinciotti

Além de Donna, havia apenas uma outra garota em seu grupo de amigos: Jackie Burkhart (Mila Kunis). Pinciotti abriu os olhos de Jackie em diversos momentos da trama, já que a visão conformada de sua amiga a impedia de enxergar que estava frequentemente sendo oprimida e menosprezada. O primeiro namoro de Burkhart é marcado por términos e voltas constantes com Michael (Ashton Kutcher), que a vê basicamente como um objeto sexual e fonte de dinheiro. O garoto só percebe a falta que ela faz em sua vida quando não a tem mais por perto, mas para perceber isso, a jovem precisou que alguém lhe mostrasse a verdade.

Outro problema constante de Jackie é sua percepção elitizada do mundo. Por ter nascido em uma família rica e sempre ganhar tudo o que quis, foi difícil até que ela finalmente entendesse (mesmo que a passos lentos) que as coisas não funcionavam assim para todos. Após ter a mesada suspensa pelo pai por escolher continuar sendo namorada de Michael, ela se obrigou a arrumar um emprego vendendo queijos, já que seu namorado se recusava a trabalhar. Enquanto todos riam da menina, Donna a apoiava e dizia o quão revolucionário era ela ter arrumado um emprego, por mais distante de seus sonhos que fosse.

Donna não se importou que Jackie pegasse no seu pé e a chamasse diversas vezes de chata, pois no final seus discursos serviram para melhorar a vida de Jackie em alguns aspectos. Ela aprendeu que precisava se priorizar, solucionar seus problemas sozinha e não suportar tudo o que seu namorado falava, porque ela devia impor limites. Por ser uma série sobre os anos 1970, produzida nos anos 1990, That’s ‘70’s Show tem diversos erros grotescos quando observamos o contexto social da história, inclusive na jornada de Donna. Porém, devemos exaltar o fato de que por mais que tenha sido desacreditada em inúmeras situações, Donna não desistiu de seus ideais e continuou defendendo a igualdade como ponto principal de seus discursos e problematizações. Apesar da época, a personagem mostra que as mulheres não devem, de maneira alguma, baixar sua guarda diante de situações claramente opressoras, pois toda grande corrida começa com um pequeno passo.

Bianca Smiderle Lemos é jornalista em formação, apaixonada por cultura pop e viciada em dar pitaco em tudo desde criança. Aquela totalmente de humanas que pode dar uma palestra sobre qualquer assunto, mas se assusta com um cálculo simples de matemática básica.


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