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Conversations With a Killer: The Ted Bundy Tapes – o monólogo de um serial killer

Seattle, fevereiro de 1974. A polícia investiga o desaparecimento de Lynda Ann Healey, uma jovem estudante de 21 anos que desapareceu de sua casa em um bairro universitário. Vista pela última vez por uma de suas housemates (colegas de casa, em tradução livre), com quem conversou pouco antes de se deitar, Lynda era uma pessoa bastante conhecida na comunidade local, principalmente por seu trabalho em uma emissora de rádio regional, e seu sumiço pegou a todos de surpresa. De fato, era um mistério que uma jovem tão responsável desaparecesse sem deixar quaisquer vestígios além de uma mancha de sangue em um lençol num quarto impecavelmente arrumado, e a ausência de pistas, tanto quanto de pessoas que pudessem fornecer quaisquer informações, somado ao ineditismo do caso, tornaram o trabalho das autoridades locais especialmente complicado.

Poucos meses após o início das investigações, outro desaparecimento seria relatado: o de Georgann Hawkins, também estudante, também residente das proximidades da Universidade de Washington. Assim como Lynda, Georgann era uma mulher bastante jovem que desapareceu sem deixar pistas, o que não condizia com seu padrão de comportamento (diferente da primeira, no entanto, ela havia sumido em algum momento entre o caminho de casa e a república que visitara naquele dia, em um horário próximo à meia-noite, e não dentro de sua própria residência).

A notícia sobre um segundo desaparecimento alarmaria a população, sobretudo as jovens que se identificavam com o perfil das vítimas. Mas até aquele momento, os casos não eram tratados como possíveis assassinatos e sim como desaparecimentos. Foi somente quando o sumiço de outras quatro mulheres (Donna Gail Manson, Susan Rancourt, Roberta Parks e Brenda Ball, todas estudantes universitárias com idade entre 18 e 22 anos) tornou-se público que a hipótese de que se tratava de um assassino em série passou a ser utilizada — uma denominação ainda inédita e que somente em 1975 passaria a ser amplamente utilizada pela mídia.

Em menos de seis meses, seis garotas haviam desaparecido no estado de Washington sem qualquer motivo aparente, e os desaparecimentos continuariam a acontecer pelos meses subsequentes. Em julho de 1974, outras duas mulheres desapareceram na região de Seattle: Denise Naslund, de 18 anos, e Janice Ott, de 23, ambas vistas pela última vez no Parque Estadual de Lake Sammamish, onde teriam sido abordadas por um homem chamado “Ted” — e “um homem chamado Ted” era o mais próximo que a polícia chegaria de um suspeito até então. O alcance dos crimes não se restringiria à região de Washington, no entanto, e em setembro daquele mesmo ano, outras três vítimas seriam identificadas também no estado de Utah: Melissa Smith, de 17 anos, cujo corpo foi encontrado nove dias após seu desaparecimento; Nancy Wilcox, de 16, desaparecida enquanto voltava para casa; e Laura Aime, também de 17 anos, cujo corpo também fora localizado pela polícia. Menos de dois meses depois, Carol Daronch, então com 18 anos, seria sequestrada por um homem no estacionamento de um shopping, mas conseguiria fugir; e apenas quatro horas mais tarde, Debra Kent, de 17 anos, seria raptada e morta pelo mesmo indivíduo.

No ano seguinte, novas ocorrências continuaram a emergir: Caryn Campbell, de 23 anos, que estava de férias com o noivo, Julie Cunningham, de 26, e Denise Oliverson, de 25, desapareceram no estado do Colorado entre os meses de janeiro e abril de 1975, mas as poucas pistas encontradas pelas autoridades locais não foram suficientes para que grandes avanços fossem realizados — e só mais de um ano após a primeira vítima em Washington é que um suspeito real seria, de fato, encontrado.

“Na minha cabeça havia coincidências que o implicavam. Mas quando eu pensava na nossa relação diária, nada me levava a pensar que ele era um homem violento capaz de fazer algo assim.” 

Theodore Robert Bundy — ou Ted Bundy, como ficou mais conhecido — foi preso pela primeira vez no segundo semestre de 1975 por desrespeitar uma ordem policial. Antes disso, ele já havia transitado pelo radar da polícia de Washington após Elizabeth Kloepfer, com quem mantinha um relacionamento à época, relatar atitudes suspeitas de sua parte, mas a falta de evidências que pudessem incriminá-lo impediram que ele fosse oficialmente interrogado sobre o desaparecimento de mulheres na região. Naquele momento, no entanto, uma breve busca em seu carro identificou objetos (pedaços de pano rasgados, uma bolsa de mulher, um picador de gelo, um pé de cabra, etc) que imediatamente chamaram a atenção da polícia. Sua compatibilidade física com a descrição do suspeito por sequestrar e agredir Carol Daronch também não depunha em seu favor, de modo que uma nova investigação foi rapidamente instaurada. Em 1976, Ted foi julgado e condenado a uma pena variável de 1 a 15 anos de prisão por tentativa de sequestro e agressão, sem direito à liberdade condicional (a avaliação psicológica do Presídio Estadual de Utah determinava que ele possuía um lado violento e que seria um risco para a sociedade libertá-lo antes do cumprimento integral da pena). Todavia, seu nome não demoraria a ser conectado a outros crimes, em especial ao assassinato de Caryn Campbell, pelo qual receberia um mandato de prisão do estado do Colorado não muito tempo depois, e para onde seria extraditado em 1977 (algo incomum, embora compreensível diante de uma acusação de homicídio) para responder pelo crime — e de onde também conseguiria fugir não uma, mas duas vezes antes de ser finalmente condenado.

Conversations With a Killer
Carol Daronch durante o julgamento de Ted Bundy.

Desnecessário dizer que ambas as fugas apresentaram-se como uma dor de cabeça para a polícia e motivo de horror para a população norte-americana. Mas se a primeira não duraria uma semana e não contaria com a incidência de novos casos, o mesmo não poderia ser dito sobre o segundo período no qual esteve foragido, muito mais longo e devastador em comparação. As estudantes Margaret Bowman, de 21 anos, e Lisa Levy, de 20, foram assassinadas enquanto dormiam em seus respectivos quartos na república Chi Omega, em Tallahassee, na Flórida; Karen Chandler e Kathy Kleiner, com quem dividiam a casa, também estavam no local e foram brutalmente agredidas, mas conseguiram sobreviver ao ataque; e poucos dias depois, na pequena cidade de Lake City, também na Flórida, a jovem Kimberly Leach, de apenas 12 anos, seria assassinada depois de desaparecer inexplicavelmente entre o caminho de casa até a escola (seu corpo seria encontrado quase dois meses após o crime).

Bundy foi preso novamente em fevereiro de 1978, em Pensacola, na Flórida, e uma vez detido, os pontos que o ligavam aos inúmeros crimes contra mulheres no país finalmente começaram a se conectar. Àquela altura, parecia seguro afirmar que ele de fato era responsável, ao menos, pelos crimes cometidos na região. No entanto, foi apenas naquele momento que as investigações de Washington e Utah, do Colorado e também da Flórida, passaram a simultaneamente convergir para a figura de Ted Bundy como um fator comum. Ainda que nem todos tivessem evidências que o ligassem indiscutivelmente aos casos, a Flórida possuía o suficiente para levá-lo a julgamento. Assim, no mesmo ano, Bundy foi indiciado e julgado por homicídio qualificado — primeiro, pelos assassinatos de Margaret Bowman e Lisa Levy; depois, pela morte da jovem Kimberly Leach —, sendo condenado à pena de morte. Como colocaria o juiz responsável pelo primeiro caso ao anunciar a sentença, as mortes “foram hediondas, abomináveis e cruéis (…), o produto do desejo de infligir um alto nível de dor e uma enorme indiferença à vida humana”, e dele também são as palavras que seriam amplamente utilizadas para descrever a natureza daqueles crimes: extremamente perversos, surpreendentemente malignos e vis.

Mas a extensão e gravidade de seus crimes (que também incluíam estupro e necrofilia, além de assassinato) apenas serviriam para alimentar a narrativa construída e protagonizada pelo próprio assassino. Mesmo depois de ser condenado — e, talvez, principalmente depois disso —, ele continuaria a conceder entrevistas, ser alvo de reportagens e transformar-se-ia em personagem de livros, filmes e documentários. Ted Bundy era o clássico psicopata charmoso e carismático que faria história na ficção, capaz de chamar a atenção ao mesmo tempo em que revelava muito pouco sobre si mesmo, e a obsessão cultural que nasceu a partir de então apenas serviu para amplificar sua voz; o mesmo enfoque auto-engrandecedor que tanto lhe agradava.

Ted Bundy: Conversas Com Um Assassino é, de certa forma, um exemplo disso: lançado em meados do ano 2000, pouco mais de dez anos após o cumprimento da sentença, o livro é um compilado das muitas horas que os repórteres Stephen Michaud e Hugh Aynesworth passaram entrevistando-o no corredor da morte durante a década de 1980. Mais ou menos à mesma época, Bundy confessaria ser responsável pelos crimes cujas provas não haviam sido suficientes para incriminá-lo e por outros que não tinham sido sequer descobertos pela polícia, com vítimas jamais identificadas — nada que o tornasse menos irresistível, no entanto. O fato de ser um homem branco de olhos azuis, considerado atraente em vista do padrão eurocêntrico vigente, apenas reforçavam a aparente improbabilidade de sua figura em oposição aos detalhes macabros de seus atos, sinalizando que tanto o interesse público quanto a prerrogativa da dúvida até que se prove o contrário eram privilégios reservados a poucos.

“Queremos dizer que conseguimos identificar pessoas perigosas. Mas o mais assustador é que não há como identificá-las. As pessoas não percebem que existem possíveis assassinos entre elas. Como alguém poderia viver numa sociedade onde as pessoas de que gostam, amam, com quem moram, trabalham e admiram, podem acabar revelando-se as pessoas mais perversas do mundo?”

Conversations With a Killer: The Ted Bundy Tapes, minissérie documental lançada recentemente pela Netflix, é, também, uma produção abertamente centralizada no assassino — tal e qual o livro que lhe serve como base. Ao longo de quatro episódios, somos lembrados de novo e de novo que, trinta anos após sua morte e mais de quarenta desde o assassinato de Lynda Ann Healey, Ted Bundy continua a ser visto como uma pessoa interessante, que ajudou a criar e solidificar o mito do assassino em série charmoso e inteligente, que mantém uma vida dupla e está sempre um passo à frente das autoridades, e que continua a exercer uma enorme e determinante influência sobre aquelas histórias (e tantas outras) mesmo depois de tanto tempo.

Conversations With a Killer
Relatório da avaliação psicológica realizada no Presídio Estadual de Utah.

A série mistura imagens de arquivos das próprias investigações com outras disponibilizadas em bancos de dados da década de 1970, e também inclui entrevistas com jornalistas, advogados e detetives, além de Carol Daronch, uma das poucas vítimas sobreviventes que, em conjunto, tentam balancear os relatos do assassino. Mas fora o relato da última, não há nada que realmente justifique, em especial do ponto de vista narrativo, que a mesma história seja contada de novo e de novo da mesma maneira redundante de outrora; o que torna Conversations With a Killer especialmente desnecessária.

Com efeito, a maior parte das entrevistas apenas reforçam o monólogo conduzido pelo próprio Ted, em uma montagem que, de maneira paradoxal, prefere favorecer sua perspectiva dos fatos e não permite a si mesma explorar terrenos mais complexos, como o seu possível diagnóstico de transtorno bipolar, ou amplificar a voz das vítimas. Nos poucos momentos em que isso acontece, Conversations With a Killer encontra seu ponto de ancoragem, e é justamente ao isolar seu objeto de análise da percepção pública glorificada que a série abandona o discurso do jovem e brilhante assassino para jogar luz tão somente sobre sua inegável perversidade. Quando Nita Neary afirma ter visto Ted próximo à república Chi Omega, onde mais tarde ele faria duas vítimas fatais e feriria gravemente outras duas, ela evidencia o assassino Ted Bundy e não o homem charmoso e carismático que poderia ser um assassino, e por isso seu depoimento é tão poderoso. O mesmo acontece durante o relato de Carol Daronch, quando remonta o ataque que sofreu em 1975, ou quando fala sobre como pessoas ao seu redor tentaram desacreditá-la (um homem tão bonito e simpático não poderia ser o responsável por uma tentativa de sequestro e agressão) antes e durante o julgamento.

O que talvez seja mais potente, no entanto, é que os crimes também despertam a atenção para a misoginia intrínseca a eles. A escolha por vítimas do sexo feminino sempre foi deliberada e a hipótese sobre as semelhanças entre as vítimas e sua primeira namorada, Stephanie Brooks (quase todas universitárias, quase todas brancas e com cabelos castanhos), fica evidente desde o princípio. Mas a década de 1970 também foi um período marcado pela consolidação da segunda onda feminista nos Estados Unidos, que observou o surgimento de uma geração de mulheres mais livres e independentes. A própria série relata que era comum que mulheres andassem sozinhas, pedissem carona a estranhos, ficassem fora até mais tarde e não se preocupassem em trancar portas ou janelas. Mas mais do que isso, mulheres também passaram a ter mais autonomia sobre seus corpos, o que não passaria despercebido aos mais conservadores. Com um assassino à solta, no entanto, esses comportamentos foram amplamente desencorajados e, consequentemente, começaram a se modificar.

Ser mulher era um risco por si só e os crimes interromperam o avanço de uma autonomia em evidente ascensão. Como muitos homens antes e depois dele, Bundy canalizava sua raiva, ressentimento, frustração e falta de controle em relação e sobre as mulheres de maneira violenta. No entanto, se assassinos em séries costumam apresentar-se com menos frequência (mas nem tão pouca assim), casos de violência contra a mulher não são uma exceção e evidenciam de forma bastante clara que esse não é um problema de origem exclusivamente psicológica (às vezes, tampouco o é), mas também, e principalmente, social. Em 2018, somente no Texas, um estudante matou 10 pessoas e feriu outras 13, incluindo uma garota que havia recusado suas investidas, enquanto um homem feriu duas mulheres no momento em que conduziam veículos por não gostar do modo como elas dirigiam — e esses são apenas dois exemplos.

Ted Bundy

Estudos também apontam que, nos Estados Unidos, uma em cada cinco mulheres (21,3%) já foram vítimas de estupro ou tentativa, quase sempre na infância ou na adolescência (81,3%); 43,6% já sofreram algum tipo de violência sexual e 37% alguma espécie de contato sexual indesejado. No Brasil, a situação não é muito melhor: somente na cidade de São Paulo, 32 casos de estupro foram registrados por dia em 2018, enquanto que, em 2017, foi registrado um aumento de 6,5% nos casos de homicídios contra mulheres no país em relação a 2016.

São dados alarmantes, mas que de maneira alguma surpreendem. Em 1988, o fotógrafo Richard Misrach encontraria exemplares da revista Playboy marcados por tiros depois de serem utilizados como alvo durante um treinamento. O alvo, ele percebeu, eram as mulheres da capa, mas todas as outras páginas haviam sido marcadas pelas balas. A violência contra a mulher, simbolicamente, age de maneira parecida: ela penetra todas as camadas da nossa sociedade e está em todos os lugares. A morte, por sua vez, é o último e mais extremo nível de submissão ao qual uma mulher pode ser colocada. Conversations With a Killer relembra, ainda que apenas de passagem, que grande parte das vítimas foi estuprada depois de serem mortas e muitas delas continuariam a sê-lo por vários dias após suas mortes, que deixariam de ser o meio para um fim para se tornarem o próprio fim. A série, entretanto, não parece particularmente interessada em articular paralelos ou fornecer estatísticas, de modo que as informações funcionam apenas como pequenos detalhes dentro de um escopo mais amplo, que não é a violência específica contra mulheres e sim o próprio Ted Bundy — uma mudança de foco sutil, mas perceptível, e que muda absolutamente tudo.

“Pessoas assim escolhem suas vítimas por um motivo. Suas vítimas eram mulheres jovens e atraentes. Mulheres são objetos, seres geralmente subordinados aos homens. Mulheres são um produto. Da indústria pørnográfica, passando pela Playboy e até o noticiário, não há como negar o componente sexual. Porém, o sexo é importante apenas no contexto de um esquema muito mais amplo. Com possessão, controle, violência.”

Conversations With a Killer: The Ted Bundy Tapes vem na esteira de uma extensa gama de produções centralizadas em crimes e criminosos, sejam eles reais ou fictícios. Há muita curiosidade sobre o assunto; talvez pelo seu caráter transgressor, talvez porque simplesmente precisamos de histórias que nos forneçam algum tipo de resposta ou resolução. No entanto, como a mídia que transforma assassinos em celebridades, Conversations With a Killer contribui para a manutenção do status mítico em torno de uma figura inegavelmente cruel, sem fornecer quaisquer novos questionamentos ou panoramas. Embora se proponha a ser um diálogo, um contraponto entre muitos pontos de vista, o que prevalece ainda é a visão unidimensional sobre um caso extremamente complexo. Detetives, advogados e promotores falam sobre o mundo que conhecem e esse mundo é, inevitavelmente, aquele centrado no aspecto jurídico da coisa (um contexto onde também há uma perceptível disputa de egos). Mas mesmo após a morte do criminoso (na cadeira elétrica, ironicamente acionada por uma mulher), os mortos continuariam mortos. É uma afirmação óbvia, mas esquecida com demasiada e preocupante frequência. Desenterrar a história de Ted Bundy não é um alerta sobre os perigos que existem no mundo lá fora; a história apenas continua a ecoar sua voz. Esquecer-se das vidas que foram interrompidas, encarando-as como um acontecimento isolado, no entanto, é permitir que muitas outras continuem a sê-lo. Se a misoginia está em todos os lugares, talvez seja a hora de perguntar o que esses crimes dizem sobre nós.

Conversations With a Killer