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Selva Almada: sobre contar a história comum das garotas mortas

Feminicídios costumam ser mais lembrados quando os suspeitos são facilmente identificados pela polícia e depois julgados, condenados e presos (ou não). Assim são os principais casos que marcaram o noticiário brasileiro, como o de Eloá Cristina Pimentel e o de Eliza Samúdio. Sem que se possa apontar um culpado, o crime perde destaque na cobertura jornalística e pode cair em esquecimento fora do círculo de parentes e amigos da vítima. Em Garotas Mortas, a escritora Selva Almada faz um relato de não-ficção sobre violência contra a mulher a partir de três desses crimes pouco memoráveis que ocorreram nos anos 1980 no interior da Argentina. Feminicídios que impactaram a escritora, mas, nos dias de hoje, provavelmente não seriam notícia por muito tempo, já que as circunstâncias não eram tão emblemáticas e eles nunca foram solucionados.

Andrea Danne, 19 anos, foi morta em casa com uma punhalada no coração. María Luisa Quevedo, 15, encontrada morta em um terreno baldio dias após o seu desaparecimento. Sarita Mundín, 20, saiu para um passeio com o namorado e nunca mais voltou. “Três adolescentes do interior assassinadas nos anos 80, três mortes impunes ocorridas quando em nosso país ainda se ignorava o termo feminicídio”, resume a autora logo no primeiro capítulo. Como contexto, vale destacar que o livro foi publicado em 2014, antes do movimento Nem Uma a Menos, iniciado na Argentina em 2015 a partir da comoção popular pelos assassinatos de Chiara Paez e Lucía Perez. A tradução para o português, pela editora Todavia, é que só chegou no país a tempo da Flip 2018, que trouxe a escritora como participante.

Nascida em 1973 na província de Entre Ríos, ao norte de Buenos Aires, Selva Almada começou a carreira literária com livros de poemas e contos, mas foi com O Vento que Arrasa, lançado em 2012, que ela passou a ter mais destaque como escritora. A novela é sobre o encontro de duas famílias no interior da Argentina: um pastor e sua filha passam pouco mais de um dia esperando o conserto do carro na oficina de um homem que vive com um filho não reconhecido.

Depois de produzir ficção, o impulso para escrever sobre feminicídios veio de uma obsessão pessoal da autora sobre o caso de Andrea. Aos 13 anos, Selva ficou em choque ao ouvir sobre o crime pelo rádio. “Eu não sabia que uma mulher podia ser morta pelo simples fato de ser mulher, mas tinha escutado histórias que, com o tempo, fui ligando umas às outras. Casos que não terminavam com a morte da mulher, mas em que ela era objeto da misoginia, do abuso, do desprezo.”

A notícia sobre a garota morta foi recebida como a revelação de que a casa de uma mulher nem sempre é um lugar seguro. O caso de Andrea, pelo que se sabe, não foi consequência de violência doméstica, mas serviu para alertar uma Selva adolescente sobre um dos horrores de viver no mundo dos homens. E só depois de anos que ela soube dos outros dois casos, também ocorridos naquele mesmo período e naquela mesma região onde ela também tinha crescido.

“As três garotas viviam em povoados pequenos de província e vinham de uma classe média baixa, igual a mim. Éramos contemporâneas. Teriam hoje mais ou menos a minha idade. Não devem ter sido criadas de maneira muito diferente da que me criaram. Isso me permitia entender o mundo em que haviam sido assassinadas, porque era o mesmo mundo em que eu havia sido educada”, disse em entrevista ao Nexo. Ao destacar as semelhanças com as vítimas, Selva deixa transparecer o medo compartilhado por várias mulheres: qualquer uma de nós pode ser vítima de assassinato, estupro ou assédio. Não estamos seguras.

Em Garotas Mortas, as histórias das jovens são contadas na tentativa de fazer justiça a esses crimes impunes em particular e a todos os feminicídios em geral. Parece um propósito fora de alcance, mas o livro serve para dar ao menos algum destaque ao assunto. Para que o assassinato de mulheres seja discutido como um problema de toda a sociedade e não de pessoas específicas, como se cada caso fosse uma exceção. Para que nossos medos sejam levados em conta.

No relato, Selva relembra que o tema da violência de gênero sempre esteve presente em sua vida a partir das situações enfrentadas pelas mulheres que conhecia. A vizinha que apanhava, a que denunciou o marido por estupro, a que era proibida de usar maquiagem ou a que tinha que entregar o salário que recebia para não ter independência financeira. Tudo isso era comentado em voz baixa entre as amigas da mãe dela “como se a situação da pobre coitada fosse motivo de vergonha ou como se elas também temessem o agressor”. Em oposição a essas conversas clandestinas, a decisão de contestar publicamente a naturalização dessas violências e de compartilhar as preocupações que temos enquanto mulheres é um pedido por mudança. Para que esse mundo em que tantos feminicídios ocorrem todos os dias deixe de existir. Como um apelo de protesto: queremos continuar vivas.

Apesar de sempre destacar que o livro não é um trabalho jornalístico, Selva Almada traça um perfil de suas personagens, faz toda uma apuração sobre as circunstâncias das mortes (e do desaparecimento) e tenta entender por que as investigações dos casos foram inconclusivas. Visita as cidades em que as garotas moravam, conversa com parentes e conhecidos, tenta reconstruir os últimos dias que antecederam os crimes. E o texto é um bom exemplo de como tratar vítimas de violência, mostrando que é possível examinar o passado de uma mulher sem cair em slut-shaming. Dar um contexto sobre a pessoa, descrevendo hábitos e traços de personalidade, é diferente de dar ênfase ao tipo de roupa que ela usava em determinada situação ou a qualquer tipo de julgamento moral usado para a culpabilização de vítimas.

O ponto fraco de Garotas Mortas é que, por não se assumir enquanto reportagem ou ensaio, o relato parece perder o foco em alguns momentos. Quem interessa mais para a história: as três vítimas ou a narradora? A necessidade da autora de se colocar no texto regularmente atrapalha o ritmo do livro. Seja contando o que ela já sabia sobre as cidades que visita, descrevendo longas horas de espera para falar com um personagem ou reclamando por não ter conseguido determinada entrevista. As cenas que mais destoam são as consultas a uma cartomante para tentar entender a própria obsessão por essas histórias. Numa das visitas, ela diz a Selva que talvez a sua missão fosse a de dar voz a essas garotas para depois deixá-las partir livremente. É uma outra forma de descrever uma tentativa de se fazer justiça? Talvez. Mas pareceu um recurso desnecessário que pretendia criar uma relação mais forte entre a autora e as vítimas.

Para citar uma obra de proposta semelhante, a romancista mexicana Valeria Luiselli acerta o tom do relato de não ficção em Tell Me How It Ends: An Essay In Forty Questions (o título em espanhol ficou Os Garotos Perdidos: Um Ensaio em Quarenta Perguntas). Ainda não lançado no Brasil, o livro trata da imigração de crianças latinas que chegam sem documentos aos Estados Unidos e enfrentam um processo judicial sob o risco de deportação. Valeria escreve a partir da experiência como tradutora para os advogados voluntários que defendem essas crianças e não falam espanhol. Por mais que ela também apareça no texto, essa interferência acrescenta para a narrativa porque mostra o abismo entre as dificuldades para uma criança fugitiva de uma situação de violência conseguir ficar no país e a relativa facilidade com que a escritora recebe o seu green card pelo correio.

No caso de Selva, ela até reconhece que estar viva é um privilégio (“uma questão de sorte”), mas as análises mais gerais sobre o tema não ultrapassam poucas linhas. Se tivesse optado por escrever um ensaio sobre feminicídios em vez de produzir uma crónica — termo utilizado na Argentina para grande reportagem — que não se assume como tal, poderia ter contribuído com mais ideias para o debate sobre feminismo. Difícil não se lembrar de um argumento da escritora estadunidense Rebecca Solnit recorrente em alguns dos textos de A Mãe de Todas as Perguntas: é importante tratar a violência contra a mulher como uma questão de saúde pública, já que crimes como o próprio feminicídio (infelizmente) fazem parte um padrão. Não são casos isolados.

“A ampla presença da violência de gênero e da violência sexual serve para restringir a liberdade e a confiança daquelas que têm de viver num mundo em que as ameaças compõem o pano de fundo de suas vidas, uma nota de rodapé a cada página, uma nuvem nublado todos os céus. Não são crimes ‘passionais’, como se costumava dizer, nem de desejo, mas sim de fúria em controlar, impor ou reforçar uma estrutura de poder. Inúmeros homicídios na violência doméstica são punições ou tentativas de manter o controle sobre mulheres que anunciam que estão indo, tentam ir ou já foram embora. Matar alguém é matar sua liberdade, sua autonomia, seu poder, sua voz.” — Uma Breve História do Silêncio, ensaio de Rebecca Solnit presente em A Mãe de Todas as Perguntas

No relato sobre as garotas mortas, a literatura pode ser uma forma de resistir à violência se o livro for capaz de impactar o mundo em que fomos educadas, o mundo em que Andrea, María Luisa e Sarita deveriam ter vivido por mais tempo. Uma mulher é assassinada a cada trinta horas na Argentina. No Brasil, um feminicídio é registrado a cada duas horas. Esses números alarmantes, baseados em estatísticas de 2017, mostram que, ainda que seja difícil falar de cada uma das vítimas, devemos pensar em formas de mudar esse quadro e, principalmente, devemos ouvir os pedidos de ajuda. Na matéria de capa do suplemento feminista Las 12 do dia 13 de julho, a sobrevivente de uma tentativa de feminicídio Olga Díaz fala sobre a importância de divulgar ideias do movimento Ni Una Menos para que as próximas gerações tenham mais chances de não viver essa história tão comum por trás das estatísticas: denúncias ignoradas, culpabilização das vítimas, proteção aos agressores. Vamos falar até que nos escutem.


** A arte em destaque é de autoria da editora Anna Vitória.

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