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Por onde anda Samira Makhmalbaf?

Indicada e ganhadora de diversos prêmios internacionais, Samira Makhmalbaf é uma cineasta iraniana, considerada uma das diretoras mais talentosas de todos os tempos, embora seus trabalhos raramente sejam exibidos no cinema. Seu primeiro longa-metragem, A Maçã, foi lançado em 1997, quando ela tinha apenas dezessete anos. O Quadro Negro, seu segundo filme, foi lançado em 2000 e deu a Samira o título de cineasta mais jovem a concorrer à Palma de Ouro em toda a história do Festival de Cannes. Seu terceiro longa, At Five in the Dimension, foi lançado três anos depois. Sua última produção data de 2008, com o também aclamado Two-legged Horse, produzido no Afeganistão. Samira Makhmalbaf estava em alta nos anos 2000. Ela parecia imbatível, indestrutível. Mesmo com as perseguições do governo, em meio a uma sociedade machista, ela seguia produzindo cinema de qualidade que mostrava a realidade de seu povo — principalmente a vida das mulheres do Irã. Mas, desde 2008, Samira não lançou nenhum longa.

Sempre admirei o cinema da família Makhmalbaf. A Maçã foi um dos meus filmes favoritos da adolescência. Assistia religiosamente toda vez que reprisava no finado Cine Conhecimento do Canal Futura (que atualmente tem um primo chamado Cineclube Futura). Hoje não acompanho o cinema internacional como fazia aos dezessete anos e, quando pensei em escrever esse texto, achei que veria tudo o que perdi durante os anos que não acompanhei o cinema iraniano. Para minha surpresa, não havia nada. Mas como estamos em 2022 e toda a informação a um clique de distância, a primeira coisa que fiz foi buscar no Google: por onde anda Samira Makhmalbaf? Pensei em muitas respostas, mas a falta delas foi a minha surpresa.

Quem é Samira Makhmalbaf?

Samira Makhmalbaf

Samira Makhmalbaf nasceu em 1980 na capital do Irã, Teerã. É filha de Mohsen Makhmalbaf, um famoso cineasta iraniano e fundador do cinema novo iraniano. Samira nasceu após a Revolução Cultural e no pós-guerra, em uma sociedade cada vez mais conservadora e fechada, especialmente para mulheres. Mesmo assim, costumava acompanhar o pai em suas filmagens quando criança, além de estar ao lado dele na edição dos filmes. De acordo com sua biografia oficial, a primeira experiência cinematográfica de Samira veio quando ela tinha sete anos, quando apareceu no filme do pai, The Cyclist, de 1987. Aos catorze anos, abandonou o ensino médio para seguir carreira no cinema na Makhmalbaf Film House, a produtora de filmes do seu pai. No final dos anos 1990, no auge de sua popularidade internacional por filmes como A Moment of Innocence e Gabbeh, Mohsen Makhmalbaf anunciou que reduziria a criação de filmes e, em vez disso, ajudaria a criar cineastas.

Assim como Samira, a filha mais velha de Mohsen, todos da família Makhmalbaf passaram pelo processo de se tornarem cineastas em um país que não valorizava a arte do cinema. Todos os filhos e a esposa de Mohsen se formaram na Makhmalbaf Film House e produziram — ou ajudaram a produzir — obras que hoje são marcos do cinema iraniano.

Cinema político

Seguindo os ensinamentos de Mohsen, os filmes de Samira sempre tocaram no aspecto político e cultural da sociedade iraniana. Em seu primeiro longa, Samira conta a história que se passa no sul de Teerã. Muitas famílias de um mesmo bairro se reunem para denunciar ao Serviço Social os vizinhos que não deixam suas crianças saírem de casa. Uma assistente social é escalada para ir até a residência e descobre que duas gêmeas de onze anos vivem trancadas desde que nasceram. O pai, um senhor de idade muito religioso, mas com muita pouca educação, argumenta que suas filhas precisam estar trancadas enquanto ele sai para trabalhar, assim nenhum homem poderá atentar contra sua inocência. E assim vive a família, até que as meninas são liberadas do cárcere por uma assistente social que tenta a todo custo mostrar ao pai que essa não é a melhor solução para o bem-estar de suas filhas. O filme mostra as dificuldades e aventuras das irmãs ao terem contanto com o mundo pela primeira vez. Uma mistura de documentário e ficção, a história não é só baseada em fatos reais — os atores também são os personagens reais da história. O Quadro Negro (2000) é recheado de metáforas e simbolismos e conta a história fictícia de professores curdos em busca de alunos nas montanhas da fronteira entre o Irã e o Iraque. At Five in the Afternoon (2003) narra a história de uma jovem ambiciosa tentando ter acesso à educação no Afeganistão após a derrota do Talibã, o que fica ainda mais tenebroso de assistir em 2022, com a volta do Talibã ao poder no país.

Os filmes de Samira eram poéticos e simbolistas, mas nunca deixaram de ser políticos. Considerada a Sofia Coppola iraniana, Samira foi chamada para participar do corpo de jurado de premiações internacionais e foi sempre elogiada pela mídia especializada. Seu último filme, Two-legged Horse (2008), foi alvo de um atentado terrorista durante as gravações que acabou ferindo seis atores e matando um cavalo que participava das filmagens. Mesmo assim, Samira conseguiu terminar o filme, que foi muito bem recebido pela crítica.

Entre 2008 e 2012 é possível encontrar algumas entrevistas e e noticias sobre Samira. Em premiações e como jurada de festivais internacionais ela continuou seu trabalho não só como cineasta, mas como defensora dos direitos das mulheres. Mas depois disso, quase nada. O último filme de sua irmã foi lançado em 2009. Sua madrasta e seu irmão continuam trabalhando nas produções de seu pai. Mohsen Makhmalbaf continua na ativa, mesmo que sem muito alarde ou presença na mídia. Nenhum dos membros da família Makhmalbaf é presente nas mídias sociais — o que faz o trabalho de entender o que está acontecendo ainda mais difícil. Nos acostumamos a ver pessoas famosas dando seus próprios updates nos últimos anos. O que sabemos sobre os Makhmalbaf vem de publicações no site oficial da Makhmalbaf Filme House, mas mesmo as atualizações não são feitas com frequência — a última foi em 2020 sobre o filme de Mohsen, Marghe and Her Mother, e algumas entrevistas ou artigos sobre cinema.

Ao ler os artigos dos anos 2000, os jornalistas e estudiosos de cinema colocavam Samira Makhmalbaf como a grande promessa do cinema. Mas, depois de 2008, é como se ela nunca tivesse existido. O artigo mais recente — e com informações sobre o sumiço da cineasta — e do crítico de cinema da The New Yorker, Richard Brody. Em seu artigo, intitulado The Wunderkind Iranian Director Who Stopped Making Films, Brody questiona por que uma cineasta tão jovem e promissora parou de fazer filmes tão cedo e sua conclusão também é a falta de respostas. Ele mesmo tentou contactar Samira, mas sem sucesso, deixando, por fim, algumas informações:  exilados pelas perseguições do governo iraniano, a família Makhmalbaf vive na Inglaterra desde 2011, embora tenham tido problemas com o passaporte de alguns membros da família, incluindo Samira. O autor, então, não sabe ao certo se Samira conseguiu o status de refugiada política pelo governo britânico. Em 2022, Mohsen contou à  Variety sobre as dificuldades de se fazer cinema independente na era dos streamings, mas tampouco mencionou a filha cineasta.

O objetivo deste artigo era falar sobre o cinema de Samira Makhmalbaf, mas a pergunta sobre seu desaparecimento continua pairando em minha cabeça. Não descarto a ideia de que ela tenha apenas parado de fazer cinema porque foi de sua vontade, mas parece impossível acreditar que uma mulher tão talentosa e promissora em sua arte parasse no auge de sua carreira. As notícias de problemas com passaporte e perseguição política dão mais motivos para acreditar que a carreira de Samira não foi interrompida por vontade própria. Samira Makhmalbaf podia ser considerada a Sofia Coppola do Irã, mas Coppola nunca teve que lidar com a retenção de passaportes ou atentados terroristas a sets de filmagem. Samira sempre retratou as dificuldades de ser mulher no Irã. Ela mesma disse muitas vezes sobre as dificuldades que encontrou ao tentar dirigir filmes em seu país de origem. Talvez essas dificuldades tenham sido a causa para o fim ou a pausa em sua carreira cinematográfica. Espero ver de novo os filmes de Samira em cartaz em breve. E, acima de tudo, que ela esteja bem nesse mundo caótico.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!