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Frozen: uma jornada de autoconhecimento em duas partes

Para quem tem o hábito de ver filmes de fantasia ou adaptações de quadrinhos, a jornada do herói, tal como nos apresenta Joseph Campbell, não é nenhuma novidade. Sua estrutura é bem demarcada, e, embora as produções cinematográficas continuem descobrindo maneiras extraordinárias de apresentá-la, são poucas as variações reais que ela sofre. Em geral, o que temos é um herói que recebe uma espécie de chamado para o desconhecido e parte em busca de uma aventura. Nela, encontra uma ou mais figuras que o ajudam a superar sacrifícios nunca antes imaginados, passando por um processo de profunda transformação pessoal. Depois dele, nosso herói é enfim capaz de resolver o problema central da sua aventura e, como recompensa, recebe um presente e retorna para casa.

O livro de Campbell (O Herói de Mil Faces, Ed. Pensamento), publicado em 1944, influenciou a forma de pensar e produzir também outras artes, sobretudo aquelas voltadas para o grande público, que se baseiam em uma relação de aproximação entre o eu-espectador e o herói, fazendo com que seja impossível abandonar o filme ou a série até que se conclua a jornada. E se é verdade que essa estrutura vale para homens de máscara salvando o mundo, para um Jedi lutando em uma galáxia distante, para mulheres quase-adultas descobrindo quem são e para estudantes de magia que querem derrotar o mal, não é absurdo afirmar que ela vale também — e talvez sobretudo — para os filmes infantis que vemos e amamos.

De fato, uma versão específica do livro de Campbell foi elaborada para o maravilhoso mundo dos estúdios Disney. O seu criador, Christopher Vogler, moldou a teoria literária para as grandes telas de cinema, e, assim, influenciou a produção de praticamente todos os filmes que foram lançados desde então, a começar por Branca de Neve e Os Sete Anões e chegando até as princesas atuais. Afinal, não é também Moana, a princesa mais recente do estúdio, que escuta o chamado do mar e embarca na sua aventura, recebendo um presente da própria deusa, que salva antes de voltar para casa?

É curioso pensar como a estrutura está presente nas grandes histórias que conhecemos, mas é ainda mais curioso perceber quais dessas histórias ainda conseguem se destacar, mesmo presas a ela. É inegável que o estúdio mencionado nos apresenta grandes narrativas, mas, dentre elas, algumas merecem atenção especial, não porque subvertem a proposta de Campbell e oferecem mais do que uma jornada de autoconhecimento, mas porque o modo como essa jornada é pensada permite enxergar, com sutileza, como é cruel e difícil o processo de transformação que ela exige do herói.

Um desses casos é o da série de filmes Frozen, cujo primeiro filme foi lançado em 2013, pelos estúdios Disney, e transformado imediatamente em uma febre mundial poucas vezes vista. Frozen: Uma Aventura Congelante, foi vencedor de dois Oscar e um Globo de Ouro, além de uma série de outros prêmios, ocupa o lugar de décima primeira maior bilheteria mundial da história e é o centro de uma série de discussões sobre a forma de enxergar a figura da princesa e as relações femininas. Dessa forma, passou a ser não apenas um entretenimento para crianças que se apaixonam pela Rainha de Gelo e pelo boneco de neve que ama o verão, mas também uma fonte de questões mais sérias que são, na minha opinião, com alguma frequência, ignoradas.

É nessas questões que este texto pretende focar, traçando um caminho em linha mais ou menos reta que vai desde a produção de 2013 até a sua segunda parte, mais relevante para os pontos abordados, lançada no ano passado, Frozen II. Se os filmes infantis da Disney apresentam uma versão do mito do herói de Campbell, essa franquia a aprofunda, deixando para Elsa, a Rainha de Gelo, a responsabilidade de se transformar.

A primeira heroína e a primeira jornada: as duas histórias de Frozen (2013)

Embora seja comum enxergar Frozen como um filme no qual as histórias das protagonistas se entrelaçam e se tornam uma só, não podemos ignorar que, até o momento da coroação de Elsa, ela e Anna viviam vidas completamente diferentes dentro de uma mesma casa. A aproximação infantil das duas, mostrada logo no início do filme, não é mais possível quando Elsa percebe que seus poderes são também perigosos. Cai sobre ela uma fortíssima responsabilidade — de proteger o reino, de lidar com a magia —, e é preciso, a partir daí, trilhar um caminho que a afasta da irmã mais nova.

A história de Elsa começa em um lugar de repressão profunda de uma parte de si que ela não entende e não controla. Os poderes — que só se tornam um problema quando ferem alguém que ela ama — são um pedaço negado e estranho de quem ela é. Seus pais são a única fonte de segurança diante deles, e, se sua mãe tenta sempre acalmá-la mediante a presença do que é desconhecido, seu pai não pensa duas vezes antes de incentivar que ela o “esconda, não sinta, não deixe ninguém saber”. Assim, sua vida se constrói sob a batalha de duas partes de si, que, com a morte dos pais, se intensifica, até consumi-la.

A briga com a irmã mais nova no baile da sua coroação desencadeia a revelação do segredo de Elsa. Não só a situação é inesperada, mas ela também faz com que o maior medo da rainha se torne realidade: ela passa a ser vista como uma ameaça, como alguém que deve ser combatida. Não importa que o seu gelo seja um reflexo de suas emoções mais profundas, o medo convertido em uma literal barreira de proteção que afasta o outro e a isola dos ataques; ela é, a partir daquele momento, sob os olhos de quase todos do reino, apenas o que eles desconhecem. Daí a decisão da fuga e a necessidade de se afastar que marca o início da jornada — não a dela, mas a da sua irmã mais nova.

Em exílio, Elsa, vista como vilã — e assim pensada nas primeiras versões do filme —, pode enfim parar de tentar construir para si uma máscara, porque o povo de Arendelle já o fez. Ela aceita o papel que lhe é dado, sem perceber que a sua saída também tem consequências para quem fica, e, com ele, tem enfim a sensação (falsa, como se provará depois) de pertencimento. “Let It Go”, a música mais famosa do filme e o seu solo mais íntimo, fala sobre poder finalmente deixar de cumprir o padrão de excelência imposto a ela — por ela mesma, por seus pais — e descobrir, sozinha, até onde vão seus poderes. É um monólogo sobre falhar e conseguir enxergar outras coisas a partir dessa falha: não só quem ela é, mas as partes de si que ficavam soterradas debaixo do medo de decepcionar. Não é por nada que, durante o tempo da música, Elsa ergue para si um detalhado castelo de gelo, belíssimo em suas particularidades, a obra mais bonita que ela já criou sozinha e que representa o alcance surpreendentemente positivo do seu poder — o mesmo que, apenas alguns minutos atrás, era visto como uma ameaça. Além disso, constrói uma outra importante figura para o desenrolar da história, sobre a qual falarei mais tarde: Olaf.

Quando ela e Anna se reencontram, o que Elsa enxerga não são as intenções positivas de sua irmã, mas o retorno de uma vida que ela julgou poder deixar para trás. Além disso, a informação de que Arendelle está presa em um “inverno eterno” criado por ela retoma a ideia de que as suas falhas não podem, jamais, passar despercebidas. Essa parte de quem ela é — a desconhecida, a assustadora — é a única que importa, e a sua independência, as suas descobertas, a pessoa que ela percebe ser capaz de ser, tudo isso acaba reduzido à imagem de salvadora, de pessoa que precisa desfazer os seus ditos erros e cuidar de todo o reino. Mesmo Anna impõe sobre ela essa responsabilidade, ainda que unida a uma inegável confiança de que a irmã não é um monstro e à certeza de que seus poderes servem mais para ajudar do que para machucar.

Essas ideias — de que é sua responsabilidade cuidar do reino e de que as suas falhas são inadmissíveis —, contudo, são a razão pela qual Elsa se encontra partida em duas, para começar. Por isso, ela não retorna ao reino e, de novo assumindo a posição de vilã, fere a irmã mais nova. O coração atingido pelo gelo é importante para a jornada de Anna, mas, para Elsa, funciona somente como mais uma prova de sua falha: ela é incapaz de proteger quem ama pela segunda vez, é incapaz de ficar livre das máscaras que construiu ao longo de sua vida mesmo quando está sozinha, e é incapaz de se fazer entender. Pela segunda vez no filme, o gelo se torna o que ela não tem ferramentas para acessar: medo, proteção de si mesma, um monstro gigante que afasta quem quer que tente se aproximar.

No momento em que ela volta para o reino para tentar corrigir os erros que cometeu, tem seu encontro com Hans, que a ameaça, e é, enfim, salva por Anna, que “morre” no processo. O amor verdadeiro que derrete o gelo e permite que sua irmã sobreviva, porém, não tem nada a ver com quem ela é, com o que ela faz — Elsa é o motivo inicial e final de uma jornada que não a pertence, no fim das contas. Ainda que ela faça o inverno acabar e a vida volte “ao normal” no reino, Frozen não é sobre ela, que continua ocupando um espaço onde não pertence, seguindo regras e usando as máscaras impostas e ela pelos habitantes de Arendelle e pela sua irmã.

Elsa é esquecida na agitação do final feliz e da volta para casa da heroína. Seu castelo de gelo fica perdido nas Montanhas do Norte e seus poderes, embora melhor controlados, ainda não são algo que ela domina, não são algo que ela compreende. Se é verdade que ela se torna melhor em não fazer tempestades gigantes, é porque, ao menos com Anna, não precisa fingir não errar — e também porque, sozinha, descobriu ser capaz de construir algo com toda aquela magia. Mas a sua história particular, embora tenha início nesse filme, com a difícil decisão de cisão entre ela e sua irmã mais nova, não termina de fato.

Na contramão do caminho traçado por Elsa, está a trajetória de Anna, a verdadeira heroína de Frozen. Seu chamado começa quando sua irmã foge, com a certeza absoluta de que ela precisa ir atrás dela, de que precisa ajudá-la. Sua história, porém, já era outra desde antes da coroação: enquanto Elsa lidava com a torturante responsabilidade de servir a um modelo, Anna, por sua vez, lidava com a extenuante liberdade de ser tudo, inclusive nada, dentro do enorme castelo.

Embora ambas as jovens lidem com uma profunda solidão, enquanto Elsa está perdida na dela, Anna faz de tudo para não precisar encarar a própria. O seu desconhecimento sobre os problemas da irmã faz com que o afastamento das duas seja visto pela mais nova como algo sem muitas explicações e que, portanto, ela jamais será capaz de compreender, mas jura ser capaz de resolver. Anna vê em Elsa sua metade perdida, a figura que falta para que ela seja inteira, e, com a ausência de outras pessoas dentro do castelo, direciona para a irmã as suas ansiedades, os seus desejos e a sua carência — sentimentos que, com a morte dos pais, crescem.

Com a reclusão de Elsa, o maior sonho de Anna passa a ser estar cercada de gente. Apenas a partir da presença do outro é que a sua existência ganha alguma importância, porque só o outro, ela acredita, carrega em si a capacidade de fazer com que ela se sinta completa. Quando os portões finalmente são abertos para a coroação, ela canta que enfim está recebendo a chance “de mudar o seu mundo solitário, de finalmente encontrar alguém”. E se esses são sentimentos perfeitamente compreensíveis para alguém que passou a vida inteira privada de qualquer companhia, também são evidências de que, assim como sua irmã mais velha, Anna passou todos esses anos sem ter os mecanismos necessários para entender questões mais profundas sobre si mesma, que ela tenta soterrar com soluções temporárias.

Uma dessas soluções é o que, no fim das contas, permite o início efetivo da história: seu casamento com Hans. Para alguém socialmente desajeitada e carente como Anna, encontrar um parceiro que parece não apenas vê-la de verdade, mas também completá-la, significa não precisar voltar para a solidão dos portões fechados e da ausência da irmã. Por isso, mesmo sem conhecê-lo, e sob a irônica sensação (típica dos contos de fadas) de que o amor verdadeiro é a melhor justificativa de todas, Anna aceita seu pedido de casamento. É o pedido de bênção da união que gera o atrito com Elsa e, consequentemente, a revelação de seus segredos e sua fuga. E é a partir daí que Anna se transforma na heroína de Campbell.

Ela deixa o conforto da sua vida — o seu “verdadeiro amor”, o seu reino — para ir atrás da sua irmã por sentir que essa é a coisa que precisa fazer. Encontra Kristoff logo no início da ainda desconhecida aventura, e ele, junto de Sven, se torna a sua forma de alcançar o seu objetivo — trazer Elsa de volta para casa, acabar com o inverno eterno. Assim, juntos, fogem de lobos selvagens, atravessam montanhas de gelo e encontram Olaf, mais um personagem cuja função (inicial) é apontar o caminho até o destino, até que, enfim, chegam à Rainha de Gelo. No confronto entre as duas, porém, a harmonia desejada por Anna não se transforma em realidade, e ela acaba sendo atingida no coração pelo gelo de Elsa. Começa, assim, o ponto mais baixo da sua trajetória de transformação.

Kristoff leva a recém-conquistada amiga aos seus curandeiros, os trolls. Sem que seja do conhecimento de nenhum deles, ele, na verdade, a leva de volta ao lugar em que a sua história (enquanto ser humano) teve início, ao lugar que marcou o seu rompimento com Elsa. Lá, descobrem que a única forma de salvá-la é com uma prova de amor verdadeiro, o que os faz imediatamente pensar em Hans, até então esquecido pelo enredo e deixado no comando de Arendelle. O retorno para casa, que marca o final da trajetória descrita por Campbell, parece então começar.

Uma vez em Arendelle, porém, Hans assume a sua verdadeira face: a de vilão ganancioso, que quer dominar o reino, ainda que isso signifique a morte da sua suposta amada. Deixada para morrer em um quarto, o espectador enfim compreende que a trajetória de Anna só agora atingiu o ponto mais baixo: o momento da transformação — associada metaforicamente à morte — começa quando ela, de volta à solidão da qual fugia, passa a entender que o outro não é capaz de salvá-la de fato. Somente ela pode fazê-lo. Acompanhada apenas por Olaf, que tenta oferecer a ela algum conforto temporário, Anna enfim é obrigada a encarar a questão que ignorou durante a maior parte da sua vida e é a partir da reflexão imposta a si pela jornada que ela, enfim, é capaz de concluir sua missão.

No meio da tempestade de neve, quando deve optar por salvar a própria vida ou a vida de Elsa, não escolher o amor verdadeiro é o modo de Anna deixar evidente que aprendeu a sua lição: se o outro importa, não importa apenas porque a completa. Proteger a irmã mais velha culmina na sua morte figurativa absoluta — ela se transforma, afinal, em uma estátua de gelo —, mas também é o que permite que ela viva novamente: o ato de amor verdadeiro não é de outrem sobre ela, mas dela mesma sobre o outro e, em certa medida, sobre si mesma. Anna se salva, enfim, sozinha; sem que Elsa encerre o inverno e sem que Hans ou Kristoff a prometam amor eterno. Alcança, dessa forma, o seu final feliz: o retorno para um reino seguro, com as pessoas que ama, carregando não apenas a lição aprendida como também o presente que advém dela — a amizade que a irmã lhe oferece, a promessa de uma cumplicidade antes inexistente.

É somente para Anna o final feliz de Frozen. E é porque apenas ela o recebe que temos, enfim, seis anos mais tarde, a segunda metade dessa história — Frozen II.

Olaf: um interlúdio

Como mencionei anteriormente, enquanto Elsa cria o seu castelo de gelo, ela também cria e dá vida a uma outra figura: Olaf. O boneco de neve que fazia parte da infância dela com sua irmã mais nova e adora o verão é parte fundamental da história de Anna e da sua travessia — afinal, é ele quem a leva até Elsa —, mas seria ingenuidade acreditar que seu papel acaba por aí.

Sim, Olaf é uma figura engraçada e um pouquinho sem noção, mas ele também é o efeito do momento de libertação de Elsa, o que faz com que eles sejam, em maior ou menor medida, parte (ouso dizer) complementar um do outro. E se é evidente que esse complemento encontra respaldo nas suas personalidades — sendo ele a manifestação viva da estação mais quente do ano e Elsa, o seu oposto —, é possível perceber que ele também se articula em camadas mais profundas: as suas crises existenciais.

O espaço reservado ao boneco de neve durante o primeiro filme é muito pequeno. O único momento verdadeiramente dele é quando acontece o solo sobre querer conhecer o verão, que é, de imediato, tido como uma grande piada, um sonho impossível. O alívio cômico atrelado à ideia de um boneco de neve tomando sol serve, contudo, para disfarçar a enorme metáfora que ele representa. Afinal, não é também um desejo impossível de uma realidade diferente — longe do gelo, longe de seus poderes — que move Elsa?

No segundo filme, sua importância fica mais clara. Olaf também ganha apenas uma música, mas seu drama — a sensação de que todas as coisas mudam e terminam, a confiança de que crescer significa aprender a lidar com todos os problemas e não ter medo — atravessa toda a história do filme. Diversas vezes vemos esse discurso ser retomado, e é ele quem motiva parte do enredo.

Mais uma vez, sua música permite entender melhor como ele e Elsa são duas expressões de um mesmo sentimento: também ela, diante do desconhecido, tem a postura inicial de negá-lo em nome de uma normalidade. Olaf, ao fingir estar bem com os medos que sente e carrega diante do mundo, justifica tudo com “quando eu for mais velho, tudo fará sentido”; Elsa, por sua vez, procura justificar a sua postura inicial com o medo de que ir atrás da voz — do literal chamado — que escuta signifique abdicar da vida confortável e conhecida que ela já tem. E se a aventura da vida é um processo de crescimento (que, como diz Olaf, leva à sabedoria), ela também é um processo de abandono (que, como diz Elsa, exige o fim do lugar-comum de conforto).

O segundo filme traz também uma frase-chave muito importante para compreender como os dois personagens estão atrelados: a água tem memória. Olaf nada mais é que água congelada, formada por alguém cujos poderes são feitos desse elemento. Esse é um dos principais pontos que formam a base do segundo filme e que merece especial atenção, mas o trago aqui, inicialmente, para mostrar mais uma vez que é impossível ver Elsa sem ver também a sua criação, a parte de si que é, enquanto ela ainda não pode ser, um pouco livre. A comprovação final dessa relação una é que, quando Elsa “morre”, Olaf consegue sentir o acontecimento, mesmo distante, e, no fim das contas, precisa partir também.

Acredito que seja importante abrir esse interlúdio porque o segundo filme da franquia é muito mais denso do que o primeiro. A história de Anna, embora cativante e profunda à sua maneira, tira de foco a transformação de Elsa, que tem início em 2013, mas só acontece de verdade em 2019. E Olaf, ao funcionar como uma distração no primeiro filme, é transformado em um personagem que também sofre essa intensa mudança no segundo, de modo que ao longo de toda a narrativa podemos compreender melhor como Elsa se sente se prestarmos atenção nos preciosos comentários “inocentes” da sua criação fofinha.

A segunda heroína e a jornada final – Frozen II e o retorno para casa

A imagem do rio associado à memória faz parte da cultura ocidental desde os gregos: no submundo de Hades, existe o rio do esquecimento; no Olimpo, a deusa Mnemosine assume também a forma da água, preservando a memória. Em ambos os casos, a travessia está associada à transformação: é por meio do esquecimento que a reencarnação ao mundo dos mortais é possível; é por meio da memória que se mantém alguém vivo.

A relação entre história e memória também não é novidade: se a história é um discurso construído pelo poder, sendo passado adiante pelos seus vencedores e, portanto, obedecendo a uma ideologia específica, a memória é a forma encontrada pelos vencidos de sobreviver, subvertendo o discurso hegemônico da História, com H maiúsculo, e dando voz às suas guerras particulares. Na literatura, ficou conhecido como “testemunho” o lugar ocupado pela memória — se ficcional ou verdadeira, já é outro debate.

É sob esses dois pilares — o da memória associada à imagem da água e o da história como um discurso construído por quem tem o poder de fazê-lo — que Frozen II se ergue. Embora ainda siga a fórmula observada por Campbell da trajetória do herói, a narrativa foca sobretudo no intenso processo de transformação associado a ela, aprofundando, com sutileza, as renúncias e as escolhas que precisam ser feitas.

O filme nos conta, logo de início, a lenda sobre um rio mágico com todas as respostas, localizado em um lugar distante. Ele representa, ao mesmo tempo, segurança e perigo, e assume a forma de uma figura feminina: a mãe que aguarda o retorno do filho, que oferece a verdade e, curiosamente, que também afoga. A busca pelo rio, Ahtohallan, é a jornada do herói em uma versão de bolso, cheia de perigos e provações, e a recompensa pelo trajeto é a solução para os mistérios da vida, uma versão mística da Máquina do Mundo: um presente dos deuses para os mortais.

É curioso notar que o mito é contado às protagonistas pela sua mãe, e que, anos mais tarde, é uma voz feminina que Elsa ouvirá. E se é possível pensar que Ahtohallan é a forma encontrada pelos criadores do filme de dar luz à imagem de Mnemosine, também se torna interessante observar que o canto que convida à aventura em muito se aproxima do canto das musas que abrem os poemas épicos do ocidente. Musas essas que, vale lembrar, são todas filhas da deusa da memória.

A trajetória de Elsa, iniciada em 2013 com a fuga de Arendelle, ficou suspensa por seis anos, e apenas é a partir da brisa outonal que chega ao reino que a Rainha de Gelo parece, enfim, pronta para ir em busca de si mesma outra vez. No conforto da vida que leva, cercada pelas pessoas que ama, ela enfim ouve seu chamado: uma voz que canta em segredo, apenas ao seu ouvido, e que parece convidá-la o tempo todo a explorar o desconhecido. Incerta e amedrontada, ela a ignora; contudo, é impossível fugir para sempre, uma vez que forças misteriosas parecem movê-la sempre em direção ao mesmo destino e, ao render-se à curiosidade, atendendo ao chamado da voz, Elsa desperta o “espírito da floresta” e, assim, embarca na sua própria jornada.

Anna e Kristoff, é claro, a acompanham, além de Sven e de Olaf. Eles são, contudo, coadjuvantes dessa trajetória, e, por isso, não receberão destaque neste pedaço do texto. Vale lembrar, porém, que os laços estreitados entre Anna e Elsa serão importantes durante o processo de transformação sofrido pela irmã mais velha, e que também Kristoff desempenha um papel fundamental na relação entre as duas, ao permitir que Anna se desprenda dele para, mais uma vez, descobrir, a partir da missão Elsa, a importância de ser, ela mesma, inteira.

Em sua viagem, Elsa chegará à Floresta Mágica da história de seus pais, conhecerá o povo preso dentro da misteriosa névoa e descobrirá os quatro deuses que controlam aquele mundo: água, ar, terra e fogo. Unidos, os elementos trabalhavam em harmonia. Contudo, devido a um erro da História, tal harmonia fora destruída. Mais uma vez, para salvar Arendelle, é preciso deixá-la; agora, porém, a travessia parece exigir sacrifícios maiores.

Caminhando sempre para o Norte, a Rainha de Gelo encontra o navio naufragado de seus pais e descobre que a razão da morte deles foi a busca por respostas sobre quem ela é. Mesmo tantos anos depois, essa questão se mantém — Elsa ainda não descobriu quem é de verdade, e, se conseguiu tirar algumas máscaras ao fugir de Arendelle tanto tempo atrás, só consegue se desprender completamente das expectativas colocadas sobre seus ombros quando decide, sozinha, chegar ao destino que seus pais não alcançaram, Ahtohallan, e conhecer, ela mesma, a história que a formou.

Mais uma vez, o primeiro sacrifício de sua travessia é separar-se de Anna. Se em Frozen essa separação vem em forma de um corte bruto, em Frozen II Elsa conhece a determinação da irmã o suficiente para realizar uma cisão mais bem calculada. De novo, seus caminhos se bifurcam: para Anna, fica a responsabilidade de, com Olaf, encontrar Elsa; para Elsa, sobra a função de encontrar a verdade — e ela mesma.

A travessia do mar revolto do norte, com ondas gigantescas e afogamentos constantes, endurece a protagonista do filme. O deus da água tem a forma de um cavalo que não permite que ninguém atravesse seu reino, até que, enfim, Elsa o domina. Montar o deus de seu próprio elemento é, talvez, a imagem mais certeira para comprovar o que o espectador já percebeu: Elsa pode não saber de onde seus poderes vêm, mas sabe, mais do que nunca, controlá-los. Essa parte desconhecida de si, a partir da decisão de encontrar o rio e de usar o cavalo para atravessar o mar, passa a integrá-la totalmente. Não é mais o mistério que a move, mas a certeza.

Descobrir que Ahtohallan está congelado é outra forma de sentir-se parte daquele lugar. É claro que as respostas falariam com ela em níveis mais profundos; a Máquina do Mundo oferece a quem a olha sempre uma possibilidade de sucesso a partir de um ponto de vista específico. Se Elsa é água transformada em gelo, também o lugar das respostas, a Mãe, assumirá essa forma, alcançando-a em uma linguagem que outras pessoas não conseguem falar. Adentrar a caverna destruída pelo tempo e remontá-la enquanto demanda que o espírito mágico se manifeste é a forma de Elsa de construir-se — de fora para dentro e, ao mesmo tempo, de dentro para fora. E é no centro dos elementos que moldam o mundo que explode a canção de sua mãe: há, enfim, o reencontro com a parte de si levada embora; com a parte herdada pelo sangue que só poderia correr entre as mulheres.

Mais cedo no filme, descobrimos que a magia de Elsa é um presente: o povo de origem de sua mãe são os Northuldra. Neles também está presente a capacidade de entrar em contato com os espíritos que controlam as forças do mundo, e Elsa a recebe porque sua mãe, para salvar seu futuro marido, cantou para a floresta — um pedido de proteção direcionado às musas. É este o canto que a Rainha de Gelo reconhece como um chamado; é também ele que explode quando ela ocupa o seu lugar no centro da caverna congelada onde mora a verdade. É a confiança de sua mãe nos espíritos que permite que ela e o pai das protagonistas de Frozen saiam vivos da batalha que se desenrola na Floresta Encantada, e o ato de sua mãe de apoiar-se na magia sagrada, e não no conflito, molda a história de Elsa muitos anos depois, recompensando-na.

Não à toa Elsa sofre outra mudança em sua aparência exterior ao encontrar as imagens de sua mãe nas paredes da caverna. O processo, visto pela primeira vez em “Let It Go”, se repete na segunda canção-monólogo da heroína, e ela assume uma imagem quase angelical, completamente branca, uma manifestação do sagrado em terras de gelo. Declara: fui encontrada, e a voz da sua mãe canta ao fundo: você é quem você estava procurando.

Diferente do que acontece com sua irmã em Frozen, Elsa já sabia da necessidade de solidão para que o processo de transformação da jornada acontecesse. Ela tinha aliados, uma base sólida na qual se apoiar, mas, no fundo, entendia que cabia somente a ela a travessia do oceano, a reunião com a própria mãe — uma das imagens mais bonitas do filme, vale dizer —, a descoberta de si no centro dos elementos do mundo. Mais que tornar-se heroína, a jornada de Elsa a transforma em deusa, em um dos espíritos, em força natural: a reunião dos quatro elementos, a ponte entre o mundo sagrado e o mundo dos homens. Ela é a Máquina do Mundo; sua volta para casa é, enfim, o retorno dela para dentro de si.

Por isso não cabe a ela resolver os mistérios da História. Ao descobrir a traição de seu avô ao povo de sua mãe, Elsa passa pelo mesmo processo de “morte” sofrido por Anna: congela, porque mergulha fundo demais; há uma mudança material acontecendo, um traço entre o antes e o depois. Entretanto, Campbell já nos havia preparado para essa passagem: é preciso morrer, ainda que metaforicamente, para transformar-se de verdade. E a Rainha de Gelo é envolvida por uma camada dura dela mesma: o gelo que a cobre não impede que ela leve a verdade até Anna, tantos quilômetros distante, mas a segura no lugar: agora que é um espírito, não cabe mais a ela transformar o mundo dos homens; ela é, afinal, apenas uma ponte. Por isso, também Olaf, que é parte de quem ela é, precisa desaparecer.

Derrubadas — por Anna e Kristoff — as mentiras que cercam Arendelle e o povo Northuldra, Elsa pode voltar para casa. Embora pareça, mais uma vez, que é Anna a heroína do filme, a narrativa não tem como foco a resolução do conflito da História (embora ele seja uma de suas bases, porque se atrela firmemente à questão da memória coletiva), mas a transformação de Elsa em algo maior que ela mesma: o herói de Campbell, quando volta para casa, traz consigo a informação crucial que permitirá que seu povo cresça e prospere. Essa informação, no caso de Frozen II, é a existência absoluta de Elsa, que deixa de ser Rainha, abandonando de vez as máscaras que não lhe serviam, e passa a ser a conselheira de Anna, atuando, novamente, como a ponte entre os mundos que nasceu para ser.

Se Frozen é um filme sobre aprender a olhar para si mesma, sobre entender que o outro não é capaz de completar quem nós somos, Frozen II é a maturação desses aprendizados. Olaf diz: tudo vai fazer sentido quando eu for mais velho. E faz. Elsa não precisa ser a rainha que controla os poderes e proteger Arendelle, porque a sua missão é maior do que isso — maior do que ela mesma. Anna, por sua vez, não precisa mais ocupar o lugar de coadjuvante, e pode ter seu destino concretizado no final feliz clássico das princesas da Disney: o casamento, o reino, um futuro harmônico.

A grande maravilha de Frozen II é mostrar, em seus detalhes, com extrema delicadeza, a dureza do processo de tornar-se adulto, de conhecer-se, que a jornada do herói exige. Para um público que conheceu as protagonistas muito jovem e, no lançamento do segundo filme, já está um pouco mais velho, é o recado de que o passar do tempo exige muito de nós, mas demanda sobretudo coragem.

Mnemosine é a mãe à qual voltamos sempre, porque é pela memória dos nossos iguais que construímos quem somos, mas, para chegar até ela, é preciso aceitar também beber a água do Lete. A história se constrói das duas coisas: dos lembrados e dos esquecidos, do que se firma em rocha sólida e é moldado pelo fogo, e do que corre entre os dedos e não se apreende por completo: os quatro elementos do mundo, as quatro forças que nos movem. É essa a mensagem de Frozen II, e é só a partir dela que o final feliz pode existir tanto para Anna, à sua maneira, quanto para Elsa, fora dos moldes inadequados em que ela uma vez tentou existir.