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BE: o BTS em busca de uma nova fluência musical

Música é a linguagem universal“. Repetimos e repetimos esse senso comum quase como se tivéssemos a esperança de que ele seja uma profecia auto-realizadora, simplesmente porque precisamos acreditar que em um mundo profundamente múltiplo e fragmentado existe algum tipo de linguagem universal, transferida pelos quatro cantos do planeta sem o menor ruído, com a garantia de total aceitação e compreensão do polo recebedor. A ciência, porém, discorda.

Em um estudo das pesquisadoras Erin Hannon e Sandra Trehub, a conclusão obtida foi a de que até os seis meses de idade, temos o que foi denominado “audição sem fronteiras”. Nesse período nosso cérebro não é ativado por ditas “violações” nos ritmos e tons que a música da nossa cultura tem como convencionais. Se o seu país está acostumado com batidas de 4 em 4 compassos ou com sons polifônicos ou monofônicos, e você escuta uma música totalmente estrangeira a essas tradições, você ainda não é capaz de perceber que há qualquer elemento fora do lugar. Em outras palavras, até os 6 meses de idade o seu cérebro não é fluente na linguagem musical da sua região. Aí, é claro, uma chavinha vira em suas capacidades cognitivas.

Até os 10, 11 meses, Hannon e Trehub afirmam que você ainda é capaz de se tornar fluente em mais de uma linguagem musical. Ser musicalmente bilíngue, ou poliglota, se sua família faz questão de te expor a sons de diferentes regiões do planeta. E assim, de repente, chega um ponto no seu desenvolvimento em que qualquer linguagem musical que entrar em seu radar será estrangeira para si. Por mais que você goste e se acostume, você nunca será fluente. Você nunca terá a capacidade que você tem na sua própria tradição musical de prever a próxima batida e relembrar padrões facilmente. Como é possível dizer, nesse caso, que existe uma linguagem universal na música?

A mesma ciência que destrói as esperanças que colocamos na música como linguagem universal nos oferece um conforto em retorno. A antropologia já comprovou que a música está e esteve presente em todas as civilizações e sociedades humanas. É inato ao homo sapiens organizar algum tipo de ritmo e melodia, e comunicar algum sentimento através dessa organização. E a função disso parece se repetir em lugares e períodos: a música é uma experiência coletiva, de comunhão e comunicação. Do canto religioso até às paradas da Billboard, algo na música nos conecta, e toda a teoria aponta para uma outra linguagem universal, a dos sentimentos (que, no caso, se escondem por trás de convenções musicais).

Não importa a sua fluência musical em uma linguagem ou outra, você é capaz de reconhecer um som como feliz ou triste – foi o que a pesquisa do psicólogo Heike Argstatter comprovou ao colocar cidadãos de países diferentes (Alemanha, Noruega, Coreia do Sul e Indonésia) para ouvir uma seleção enorme de sons e categorizá-los como felizes, tristes, assustadores, repulsivos, surpreendentes ou furiosos. Diferenças culturais fizeram as respostas para todas as categorias serem divergentes, exceto por duas: todos pareciam concordar em relação a quais sons eram felizes e quais eram tristes.

Em um mundo pré-globalização completa, todos os eventos realmente catastróficos pareciam ter endereços bem específicos. Da peste até as guerras mundiais (nem tão mundiais assim), dos desastres naturais até ataques terroristas e assassinatos em massa, tudo sempre atingiu uma cidade, um país, um continente ou dois quando o escopo era realmente enorme. É possível se entristecer com algo que não está te afetando diretamente, mas existe uma ressonância ímpar em um evento que afetou o globo de maneira tão total como a pandemia do COVID-19 em 2020. Ao nos trancarmos em nossos quartos e nos isolarmos, nossa tristeza, nossa solidão e nossa esperança se fortaleceram como uma linguagem verdadeiramente universal. E no meio disso tudo, mais uma vez reconhecemos a música como capaz de transmitir essa tristeza e o desejo de alegria ignorando fronteiras. E assim nasceu Be, o novo álbum do grupo pop BTS.

O Be é um disco que busca o tempo inteiro uma nova fluência musical, um retrato de uma época em que precisamos de trabalhar em dois eixos – a compreensão de que nada é verdadeiramente universal e uma tentativa de chegar o mais perto possível do global. O K-Pop (o nome dado popularmente à música pop feita na Coreia do Sul) bebe intensamente da fonte da música tradicional coreana, pautada em um amor pela polifonia (diversas camadas de vocais com timbres diferentes e instrumentos entrando e saindo de harmonias complexas), rap extremamente veloz que usa perfeitamente a flexibilidade de rimas que os sufixos da língua coreana permite, e batida marcada e sincopada, e tudo isso pode ser visto com clareza no Be, mas o leque de influências que o BTS traz para a mesa é bem mais global.

Blue and Grey“, escrita por Kim Taehyung (V), é uma balada folk que não pareceria tão estrangeira nos discos mais recentes de Taylor Swift ou Phoebe Bridgers. “Stay“, escrita por Jeon Jungkook, traz a euforia das batidas de EDM que lotam as paradas da Billboard no século XXI. Com faixas compostas por diversos membros da banda em diversos gêneros, fica claro que o BTS conversa entre si em linguagens diferentes, o que não impede a troca criativa entre eles – e nos convidam a tentar, mesmo com todos os impedimentos científicos ou não, fazer o mesmo.

BTS - Be

Até mesmo na obra de um só compositor/rapper da banda, Min Yoongi (Suga), você pode ver o contraste de local e global e as brincadeiras com a “linguagem universal” da música. Em 2020, sob a alcunha de seu projeto solo Agust D, Yoongi lançou a faixa “Daechwita, que afasta qualquer tipo de ocidentalização e se constrói musicalmente em cima de uma base de flauta e tambor das antigas canções militares da Coreia do Sul. No mesmo ano, sua colaboração para o álbum Be, “Telepathy“, tem seus dois pés firmes na tradição do hip hop dos anos 90, com tons de disco, rap californiano e new jack swing (influências que também temperam “Dis-ease“, com sua excelente letra sobre a cultura do burnout).

Mesmo com todas essas influências globais, se você vive de alguma maneira, em toda a sua sua não-fluência ocidental, o fenômeno do “k-pop”, você está acostumado a sentir a barreira da linguagem todos os dias – não nos seus ouvidos, mas na sua vida social. Todo entusiasta do gênero já viveu o momento (quase um batismo de fogo, uma iniciação na cena) de indicar uma banda para um amigo e receber uma resposta que vai do estranhamente hostil até a educada frase “não consigo ouvir música cuja letra eu não entendo”. Essa barreira não era tão visível quando gerações passadas, sem um cursinho de inglês, se debruçavam na música de Beatles, Queen ou Michael Jackson sem a ansiedade de descobrir o que seus ídolos estavam cantando. Mas ela surge repetidas vezes para o fã de K-Pop, uma pedra que esse Sísifo tem que carregar para o topo da colina todos os dias.

Não importa o seu amor pelo K-Pop, como ocidental, você nunca será 100% fluente. Isso está inscrito no seu cérebro desde os 6 meses de idade. Em entrevista recente, Kim Namjoon (rapper e compositor do BTS chamado de “líder” pelo resto da banda), cita uma fala do artista visual sul coreano Whanki Kim, que ao se mudar para Nova York começa a replicar o estilo de artistas ocidentais como Mark Rothko mas percebe, enfim, que não consegue fazer nada que não seja coreano, pois é o que ele é afinal. “Eu não posso fazer nada além disso, pois sou um estrangeiro“. Mas nessa relação entre fãs e banda, ambos estrangeiros uns para os outros, de forma inegável, algo é comunicado.

Enquanto esse texto é escrito, “Life Goes On“, uma balada R&B melancólca mas otimista sobre o COVID-19 feita pelo BTS, está no primeiro lugar da cobiçada parada Hot 100, da Billboard. Em terceiro está “Dynamite“, o hit titânico cantado em inglês pela mesma banda, 100% construído sobre uma base que evoca a Disco Music e o som dos estúdios Motown e Stax nos EUA. Uma em coreano, outra em inglês. Talvez você seja fluente em uma dessas línguas. Talvez, em nenhuma delas. Mas em 2020 você se tornou fluente em sentir o isolamento e a angústia que permeia “Life Goes On“, e em sentir a necessidade de catarse que gerou “Dynamite“. É simples. É ciência. É a única linguagem genuinamente universal.

Ana Clara Matta é a fantasma Dickensiana da blogosfera passada. Editora do finado portal de música independente Rock’n’Beats e criadora do blog de cinema Ovo de Fantasma, hoje sai ocasionalmente de sua caverna para comentar cultura pop (e menos pop) e acredita que o objetivo da vida está na frase “Eat, drink, and be merry”.