Categorias: ENTREVISTA, LITERATURA

De frente com Valkirias: Sara Stopazzolli

Elas em Legítima Defesa não é um livro de fácil leitura. A cada página virada, a cada novo depoimento, o embrulho no meu estômago aumentava. Se ler o livro escrito por Sara Stopazzolli já é algo difícil, eu só poderia imaginar o que teria sido para ela colher cada uma daquelas histórias reais, destrinchar as tragédias pessoais de cada uma dessas mulheres em um documentário lançado em 2017 e depois em livro. Publicado pela DarkSide Books em formato e-book, a renda da venda inicial de Elas em Legítima Defesa será revertida para a Associação de Mulheres com Atitude e Compromisso Social (AMAC), uma ONG de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, que atua acolhendo e apoiando mulheres e famílias vítimas de violência doméstica. Elas em Legítima Defesa não é um livro fácil. No Brasil de 2020, porém, segue completamente necessário.

Em pouco mais de 200 páginas, Sara Stopazzolli percorre as histórias de seis mulheres — Nice, Soraia, Deise, Doralice, Emília e Úrsula — de diferentes origens mas todas com um denominador comum: a violência que suportaram de seus maridos, companheiros e namorados. Muitas delas viveram anos sofrendo nas mãos de homens violentos em prol da família, dos filhos pequenos. Algumas acreditavam que ainda teria jeito, que eles mudariam e voltariam a ser os homens gentis do início de seus relacionamentos. Mas nenhuma das histórias retratadas em Elas em Legítima Defesa teve um final diferente do que a morte desses homens em um último recurso por parte dessas mulheres: permanecerem vivas, manter os filhos vivos, única coisa que importava para elas depois de anos de abusos físicos, psicológicos e estupro marital. A situação extrema — tirar a vida de alguém — assombra cada uma delas ainda que tenham sido absolvidas pela justiça por terem usado da legítima defesa para conseguirem sobreviver.

No livro, Sara Stopazzolli aponta dados entristecedores a respeito do feminicídio no Brasil: “50 mil mulheres são assassinadas todo ano por companheiros atuais ou ex-companheiros, pais, irmãos, mulheres, irmãs e outros parentes, devido ao seu papel e à sua condição de mulheres.” De todos os “58% de todos os assassinatos de mulheres em 2017 foram cometidos por companheiros ou familiares, o que faz com que o lar seja o lugar mais perigoso para as mulheres”. Nesse momento é sempre bom lembrar que se você é vítima ou conhece alguma mulher vítima de violência, pode denunciar: o número 180 é o da Central de Atendimento à Mulher, o 190 é da Polícia Militar e o 100 é o Disque Direitos Humanos.

A seguir, Sara gentilmente respondeu algumas perguntas do Valkirias sobre o livro, sua experiência e expectativas.

Elas emLegítima Defesa, o livro, é um desdobramento do documentário que você e sua irmã, Leda, desenvolveram durante alguns anos e lançaram em 2017. Do início da pesquisa do projeto até sua conclusão e lançamento, muita coisa mudou na legislação com relação à proteção da mulher vítima de violência doméstica — no próprio livro você comenta que em 2013, quando iniciou a pesquisa, sequer havia a lei de feminicídio, por exemplo. O que mais mudou de lá pra cá, na sua visão, quando se fala de legítima defesa no caso de mulheres que sofrem violência doméstica? Não apenas com relação à legislação em si mas também na maneira como esses casos são tratados pela sociedade como um todo — há uma mudança que possa ser vista de maneira positiva?

Sara Stopazzolli: Quando comecei a pesquisa em 2013 não se falava em legítima defesa de mulheres. Inclusive a hipótese inicial da pesquisa era “existem casos de mulheres que mataram seu companheiros em legítima defesa no Brasil?” Não havia pesquisas acadêmicas sobre o assunto, estatísticas, e os processos judiciais não são organizados de forma que facilite uma pesquisa nesse sentido. Comecei uma pesquisa do zero, buscando casos onde a mulher era a ré e o homem a vítima. Ou por palavras chave como legítima defesa/companheiro. Isso já mostra como o assunto era silenciado ou até mesmo quase um tabu social. A legítima defesa segue sendo uma excludente de ilicitude para casos em que a pessoa mata para não morrer. Porém, na maioria dos casos das mulheres que matam seus companheiros, a legítima defesa só é aceita depois de um longo processo judicial, onde a mulher inicialmente é acusada de homicídio qualificado, muitas vezes fica presa até o dia do julgamento, para por fim ser absolvida pelo tribunal do júri.

Acredito que depois que o documentário foi lançado, em 2017, não só por conta do filme, mas pelas mudanças e debates sobre violência de gênero que têm ocorrido com mais intensidade desde 2015, a sociedade de uma forma geral está olhando para essas histórias de uma forma mais empática. Não tenho acompanhado os novos casos que surgiram nos dois últimos anos para ver se houve alguma mudança também no tratamento dado pela justiça.

A maior parte das mulheres que aparecem no livro sofreram algum tipo de retaliação e preconceito por parte da sociedade após a morte de seus parceiros. Essa mesma sociedade que ignorou por completo (ou decidiu ignorar) a situação de abusos físicos e mentais que sofreram por anos, escolheu julgá-las mesmo após a absolvição legal. Uma das coisas mais positivas de Elas em Legítima Defesa, ao meu ver, é a humanização dessas mulheres, mostrando que matar era a última coisa que elas desejavam e que muitas delas lidam com o sentimento de culpa até hoje. Por que essas mulheres foram (e são) tão julgadas por terem protegido a si mesmas e seus filhos de parceiros violentos? Por que os mesmos julgamentos não se estendem aos homens que as agrediram durante todo o tempo em que estiveram juntos, com muitas pessoas fechando os olhos para a rotina de agressões?

S.S.: Porque vivemos em uma sociedade que naturaliza a objetificação e a submissão da mulher. Por mais que muita coisa já tenha mudado, que tenhamos a Maria da Penha, a lei do feminicídio, o fato é que culturalmente ainda estamos presos numa estrutura patriarcal e machista. A mulher só é legitimada socialmente se estiver com um homem do lado, há uma romantização da família tradicional, entre outras questões que acabam “perdoando” a violência dentro dos lares, numa espécie de “ruim com ele, pior sem ele”. Questões culturais também colocam a mulher na posição de cuidadora, passiva, daquela que espera a mudança, que perdoa, que está sempre disponível para o outro, enquanto o homem, ao contrário, é o que tudo pode e que, por mais merda que faça, sempre será cuidado e perdoado. AINDA assim, a sociedade, ao menos no discurso, não aprova a violência contra a mulher, difícil achar alguém que se declare a favor disso. Creio que há sim homens sendo  julgados e condenados por agressão. O problema é sair do silencio, chegar na denúncia, na prova. A maioria das personagens do meu livro nunca chegou perto de denunciar.

Enquanto lia Elas em Legítima Defesa, não pude deixar de pensar na situação das mulheres e crianças que vivem em lares violentos e estão em quarentena. O Instituto Maria da Penha, inclusive, fez um alerta em maio a respeito dessa realidade visto que as ocorrências aumentaram em seis estados (São Paulo, Acre, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Pará) em 2020 comparando-se o mesmo recorte de tempo de 2019. No próprio livro consta a informação de que 58% de todos os assassinatos de mulheres em 2017 foram cometidos por companheiros ou familiares, o que faz com que o lar seja o “lugar mais perigoso para as mulheres”. Ainda que atualmente exista muito mais informação a respeito de como se proteger e denunciar um companheiro ou um familiar abusivo, a realidade é que continua sendo muito difícil buscar ajuda. Como você acha que esse cenário pode mudar a longo prazo? 

S.S.: Eu não vejo outra saída que não seja pela prevenção e pela educação. A Lei Maria da Penha é muito completa, fala de educação de agressores, aulas de gênero nas escolas, assistência multidisciplinar para mulheres e suas famílias, mas no Brasil os capítulos dedicados ao punitivismo são os que ganham mais destaque. Tanto que muita gente acha que a Lei Maria da Penha se trata só de punir os agressores. Promover a equidade de gênero, criar oportunidades iguais para meninas e meninos, homens e mulheres, informa-los sobre papéis de gênero, que nada mais é do que uma construção social que pode e deve ser desconstruída para chegarmos nesse equilíbrio, informar sobre relacionamento abusivo, ciclo de violência, são ações que podem contribuir para mudar esse cenário.

Ao final do livro você escreve que a Lei Maria da Penha e Lei do Feminicídio não são suficientes para promover a igualdade de gênero e o fim da violência doméstica. A atuação do atual governo também dificulta cada vez mais que a proteção necessária chegue a mulheres e famílias vítimas de violência doméstica. As políticas públicas estão longe de serem ideais e os debates sobre gênero parecem evocar um conceito estereotipado que a maior parte das pessoas prefere acusar a entender o que significa. O que você acha que está ao nosso alcance fazer, enquanto sociedade, para mudar esse cenário? Aqui no Valkirias falamos sobre machismo, misoginia e questões de gênero diariamente, mas sentimos que estamos sempre dentro de uma bolha muito específica e que parece difícil de ser rompida. O que seria efetivo fazer quando não temos respaldo do governo e as políticas públicas voltadas às mulheres vem sendo desmontada em uma velocidade alarmante?

S.S.: A resposta anterior conversou com o começo dessa pergunta. Respondi acima o que seria o ideal, mas estamos num momento complicado para aplicar isso tudo dentro de políticas públicas. Creio que cabe à nós, enquanto sociedade, fazer a nossa parte. Sim, acaba ficando dentro da bolha. Muito difícil romper porque gênero e feminismo são palavras que ficaram estigmatizadas para certa parcela da população que, num país dividido como o nosso, não está aberta ao diálogo. Associam o feminismo à esquerda. A partir do contato com o público do documentário Legitima Defesa, que abrangeu pessoas de todas os posicionamentos e não-posicionamentos, eu percebi que todos e todas são sensíveis ao tema da violência contra a mulher, a questão é que há pessoas que defendem um assistencialismo e o punitivismo mas não estão dispostas a mudar a cultura, a estrutura social. Sair da bolha é realmente um desafio e não tenho respostas para isso. Com o meu trabalho busco humanizar as estatísticas, contar histórias que gerem empatia, sensibilizar para essas questões.  Inclusive lancei recentemente um canal de podcast, o Luneta do Crime, onde narro crimes invisíveis cometidos contra mulheres anônimas.

Todos os relatos presentes no livro são de deixar qualquer uma angustiada, principalmente por sabermos que poucas sãos as variáveis que nos impedem de entrar para as estatísticas acerca da violência doméstica. Assim como você, sou uma mulher branca, de classe média, que cresceu em um lar saudável e amoroso, sem histórico de violência. Os agressores não são apenas os homens bêbados ou machistas, podem ser qualquer um e em qualquer lugar, respaldados pela sociedade patriarcal em que vivemos. Das histórias reais presentes em Elas em Legítima Defesa, qual foi a mais difícil de digerir? 

S.S.:Todas foram muito difíceis. Mas fiquei especialmente tocada pela Doralice, que já era quase uma senhora que passou a vida cuidando dos outros, marido, filhos, netos, era cuidadora de idosos, e conseguiu se separar depois de 30 anos de agressões. Aí quando parecia estar vivendo a independência e seus desejos pela primeira vez na vida, começa a namorar um rapaz mais jovem e é novamente agredida. Ela morava no interior do interior de SP e deixava o número de telefone com pedido de socorro escrito na estrada de barro. Matou em legítima defesa e foi presa por dois anos até o dia do julgamento. Na hora que precisou ser cuidada, não havia ninguém por ela. Escrevia cartas do próprio punho pra juíza pedindo a liberdade e nada. Ela adoeceu por conta da prisão e da culpa.


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