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Namjoon e o contrato social do indivíduo com o mundo

Kim Namjoon é um rapper, compositor e produtor. Dessa multiplicidade de talentos nasceu o BTS, que sob sua liderança veio a se tornar o ato musical sul-coreano mais bem sucedido da história e um dos maiores grupos musicais de todos os tempos; além de ter propiciado também a multiplicação desses talentos: sob o nome artístico RM, Namjoon também se tornou dançarino, performer, e mais recentemente, patrono das artes.

Embora possa parecer paradoxal que uma pessoa tenha conquistado o mundo sem tê-lo entendido primeiro, a verdade é que a inquietação de Namjoon sobre seu lugar no mundo sempre informou a sua arte. Isto fica evidente quando analisamos suas letras e escritos, ainda que não linearmente.

Em “Always” (2015), Namjoon confessa essa indagação de forma literal e explícita: “Eu vivo para entender o mundo”. Tão profunda é a busca de Namjoon pela ordem do mundo que suas letras comumente fazem uso de trocadilhos e metáforas que sugerem uma vontade de encontrar significados ocultos nos significantes, tanto do ponto de vista linguístico quanto metafísico. Na própria “Always”, Namjoon desmembra a palavra “always” (que significa “sempre” em inglês) em “all ways” (que significa “todas as formas”). Em “Trivia: Love” (2018), ele brinca sobre o formato dos caracteres que diferenciam a grafia da palavra “pessoa” (“사람”) da grafia da palavra “amor” (“사랑”) no alfabeto e idioma coreanos. Muito além de poesia e técnicas de composição de rap, o que transparece é a curiosidade de Namjoon por possíveis padrões ou sentidos que podem estar petrificados na construção das próprias palavras. É como se Namjoon confiasse que existe uma força inata guiando quem ou o que quer que seja que criou as palavras, e que tal força pudesse ser acessada se você mergulhar fundo o suficiente nelas. É esse o grau de intensidade do interesse de Namjoon pelas forças que regem o mundo.

Porém, Namjoon não quer só entender o mundo. Ele também quer fixar os termos de sua existência no mundo — ou, melhor dizendo, sua coexistência com o mundo. Essa preocupação parte de algumas premissas um tanto quanto pessimistas. Por exemplo, em um conteúdo produzido para o evento anual BTS Festa de 2021, Namjoon diz não acreditar que existam pessoas inerentemente boas — uma confissão que se assemelha às teorias professadas por Thomas Hobbes em Leviatã, o qual afirma que o homem nasce mau, ou ainda, que “o homem é o lobo do homem”. Hobbes foi um contratualista. Namjoon, de certa forma, também é.

Para o contratualismo (escola de pensamento filosófica que tem como expoentes Jean Jacques Rousseau, John Locke e o já citado Thomas Hobbes), estar em sociedade é abrir mão do seu estado de natureza e fazer concessões para viabilizar a coexistência pacífica com outros seres humanos. Rousseau, em O Contrato Social, e Hobbes, em Leviatã, partem de premissas distintas para entender a natureza do homem e a partir daí teorizar sobre como compatibilizá-la com a vida social. Diferentemente de Hobbes, Rousseau acredita que o homem nasce bom e é posteriormente corrompido pela sociedade. Mas independente da bondade ou maldade da essência humana, os dois contratualistas chegam à mesma conclusão: é preciso estabelecer um pacto entre os seres humanos para estabelecer um meio termo entre a liberdade individual e o bem comum. Nasce daí o contrato social.

O contrato social de Namjoon é um pacto de si mesmo com o mundo. É um “eu contra eles” em vez de um “todos contra todos”. Na já mencionada “Always”, Namjoon diz que vive para entender o mundo, mas que por outro lado, “o mundo nunca me entendeu”. Letras como essa mostram que Namjoon se vê como um dos espectros da bilateralidade do indivíduo com o mundo. Para Namjoon, o “mundo” é a soma de tudo: as pessoas que nele vivem, as estruturas sociais e culturais postas, as leis naturais e forças sociais que o regem. Rousseau, de certa forma, também pensava assim, e não à toa propunha que a necessidade do contrato social demandava operar com aquilo que já estava posto: “Ora, como os homens não podem engendrar novas forças, mas apenas unir e dirigir as existentes, não têm meio de conservar-se senão formando, por agregação, um conjunto de forças que possa sobrepujar a resistência, aplicando-as a um só móvel e fazendo-as agir em comum acordo.”

Mas a consequência do pacto social é que, até que algo seja feito para modificar isso, ele se aplica inclusive àqueles que não participaram dele. Nesse sentido, a música de Namjoon também sugere que ele se sente excluído do pacto social que estava em vigência quando ele nasceu, de forma que nada lhe restaria a não ser aceitá-lo. Em “Intro: Persona” (2019), Namjoon diz: “O mundo não está nem aí para a minha falta de experiência”, como uma triste conclusão de que o mundo não vai parar pra esperar até que você o compreenda; cabe a você determinar-se a partir daí, ajustando-se a ele. Parece não haver alternativa a não ser sucumbir, amoldar-se, aceitar o que está posto, para só assim ser aceito. É o que questiona Namjoon em “Forever Rain” (2020): “Se eu pudesse dar um beijo profundo no mundo, será que alguém me acolheria?”

Na arte de Namjoon, ambientada neste mundo, Namjoon é o convidado tardio que chega ao mundo e precisa entender o seu funcionamento. Nos rascunhos para a letra de “Blue & Grey” (2020), ele escreve: “Seria eu capaz de me misturar a esse mundo?”. A indagação vem de um lugar de alheamento; talvez até de medo. Não à toa, em “Adrift” (2015), Namjoon diz que ter nascido é algo que lhe dá medo. O nascimento é o momento em que o jogo começa para ele. A partir daí, ele precisa entender as regras e jogar.

Mas e se ele não gostar das regras? Ou, pior, e se ele nunca tivesse querido jogar? É o que sugere a letra de “Always” (2015): “A vida é um café que eu nunca pedi/ (…) E a morte é um Americano do qual eu não posso pedir um refil”. A metonímia utilizada por Namjoon é tristemente sugestiva. Assim como “americano” é uma forma específica de café, a morte parece ser um específico remédio para a dor da vida que a ele foi dada sem pedir.

Em O Contrato Social, Rousseau diz: “o que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto deseja e pode alcançar; o que com ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui”. Se isso é verdade, o contrato social deveria ser, então, algo ideal para Namjoon, que em “Reflection” (2016) canta: “Eu quero ficar livre da liberdade”. A liberdade natural, que segundo Rousseau é a que tem por limites “apenas as forças do indivíduo”, seria então um peso tão grande para Namjoon que melhor seria ceder a uma convenção.

Rousseau diz ainda: “Os compromissos que nos ligam ao corpo social só são obrigatórios por serem mútuos, e sua natureza é tal que, ao cumpri-los, não se pode trabalhar para outrem sem trabalhar também para si mesmo”, diz Rousseau. Entretanto, as letras de Namjoon dão conta de que ele não sente que está trabalhando para si mesmo, não sente que o pacto social está retribuindo-o da forma que deveria. Talvez por isto ele chegue, em alguns momentos, a até mesmo questionar sua existência: “Você tem certeza que está vivo?/ Se sim, como provaria isso?”. Em “Always”, ele acaba decidindo que sim, para o bem ou para o mal, está vivo: “Se eu soprar o ar, minha respiração fica visível no frio/ E embaça a janela, pelo menos”.

Assim como em “Always”, as metáforas sobre existência, nas músicas de Namjoon, estão quase sempre associadas ao frio — como em seu verso na música “Winter Flower” (2020), de Younha, quando ele diz: “Inverno, foi você quem me floresceu” —, à chuva — como “Forever Rain”, quando diz: “Quando chove, pelo menos sinto que tenho um amigo” —  ou à escuridão, como em “Moonchild” (2018), quando canta: “Não consigo respirar sob a luz do dia”. Se para muitos, o calor e a luz do sol inspiram vida, é nas circunstâncias opostas que Namjoon comprova a sua existência. No escuro e no frio, Namjoon se recolhe a si mesmo. É nesses momentos em que ele se vê livre da obrigação e incômodo de performar o contrato social às vistas de todo o mundo.

Porém, se o contrato social é essencialmente tão incompatível com a natureza de Namjoon, a ponto de para ele ser tão difícil assimilá-lo e agir de acordo com ele, isso significa duas coisas. Primeiramente, significa que não será fácil viver. Segundo, e mais esperançoso: significa que Namjoon tem apreço pela sua própria essência.

As letras de Namjoon sobre a sua batalha com o mundo costumam ser impregnadas de muita dor, mas essa dor dificilmente existiria se ele não tivesse uma voz própria e não tivesse um desejo inato de fazer essa voz ser ouvida. Pudesse ele aniquilar a sua própria essência, seria fácil viver em conformidade com o mundo sem nenhum questionamento. Mas o questionamento nasce justamente da sua noção de que ele tem o direito de ter a sua própria opinião, os seus próprios desejos e propósitos.

É quando Namjoon busca encontrar e realizar o propósito da sua voz que a sua existência ganha sentido. É o que ele faz com sua arte, sua música, como ele diz em “Voice” (2015): “Meu sonho é dar minha voz a todos/ (…) com minha música e minhas letras”.

Não é que Namjoon queira impor sua visão a ninguém. Ele está ciente de que sua voz, apesar de legítima, não é absoluta. Em “Reflection”, ele diz: “Minha altura é outro diâmetro do mundo” (que, segundo Muish, também pode ser traduzido como “minha nota musical é outro grito do mundo”). Nessa letra, Namjoon enquanto indivíduo é percebido como uma representação do mundo, mas não a única representação. Namjoon é uma nota musical entre muitas na sinfonia do mundo. O uso da palavra “outro” demonstra sua percepção de que a sua participação no mundo é uma entre tantas, não é o molde. Por isso, em “Intro: Persona”, ele diz: “Eu só quero te dar todas as vozes até eu morrer”. São muitas as vozes dentro de Namjoon e muitas as vozes existentes no mundo. Parte de entender isso significa, também, entender como essas vozes ecoam entre si, influenciando no próprio contrato social vigente no mundo.

Quando Namjoon diz, em entrevista à Rolling Stone em 2021, que “cada momento deixa um traço”, e quando ele questiona, em “Reflection”, se os esbarros e encontros são consequência de um destino, o que Namjoon está questionando é o lugar de cada pessoa no pontilhismo da vida. Como esses pontos se cruzam? O que os atrai um ao outro? Porque se há atração, então também há algo dentro de cada pessoa e circunstância que causa essa atração. Entender os encontros que temos é entender quem somos, é entender o que há dentro de nós que nos liga a uma pessoa e não a outra, que nos leva a algum lugar em vez de outro.

Esses questionamentos levam a outros: qual é o lugar em que Namjoon de fato quer estar? Como o seu próprio modo de ser o ajuda a chegar mais perto desse lugar? Resulta daí um contrato social não apenas de Namjoon com o mundo. Namjoon é também um contratualista de si mesmo. Em “uhgood” (2018), Namjoon canta: “Meu ideal e a realidade/ Eles parecem tão distantes um do outro/ Mas ainda assim, eu quero cruzar essa ponte/ E alcançar o verdadeiro eu.” Esse desejo de alcançar a sua verdadeira essência norteia os termos que Namjoon estabelece não só com o mundo, mas também consigo mesmo. Este é um pacto tão delicado quanto o próprio pacto social.

Da longa jornada rumo ao autoconhecimento e amor próprio que Namjoon e o BTS travaram em sua discografia — desde Namjoon cantando “Eu queria poder amar a mim mesmo” em “Reflection” até uma trilogia de álbuns chamada Love Yourself (“ame a si mesmo”) (2017-2018) —, Namjoon chega à conclusão de que é preciso tratar seu eu com carinho para alcançar o que quer de si e do mundo. Por isso, em “Intro: Persona”, ele direciona palavras gentis a si mesmo: “Querido eu, nunca perca sua temperatura/ Você não precisa ser quente nem frio”.

Mas estar sempre contra o mundo e contra si mesmo pode ser cansativo demais. Então, em vez de Kim Namjoon contra o mundo, a história que ele busca é Kim Namjoon e o mundo, ou até mesmo, Kim Namjoon e todos os seus Kim Namjoons do passado, presente e futuro. Essa sim é uma história da qual ele pode ter total controle e, quem sabe, até mesmo sair vitorioso. Quem sabe, se Namjoon conseguir definir seus próprios termos consigo mesmo, conseguirá ele também chegar a um bom acordo com o mundo? Namjoon parece positivo da sua capacidade de fazer isto em seu verso para o remix de “Champion” (2017) da banda Fall Out Boy, quando ele diz: “Eu vou me casar com esse mundo sozinho/ E colocar um anel em mim mesmo”. A palavra “anel”, em inglês (língua na qual Namjoon escreveu seu verso), também se traduz como ringue de luta. É uma figura de duplo sentido usada por Namjoon para expressar sua resolução: ele vai se inserir na luta e vai se sagrar campeão e, para isso, precisa selar o seu compromisso com o mundo, mas também consigo mesmo. Assim como o casamento enquanto convenção social tem também a sua associação com o romantismo, o contratualista Namjoon também se rende ao amor, quando canta em “Trivia: Love”: “Vivo, logo amo.” O autocontrato social de Kim Namjoon é, acima de tudo, um ato motivado pelo amor.

Ana Clara Ribeiro é uma advogada e escritora apaixonada por música e suas interseções com diversos temas. Como crítica musical, escreveu para os sites PopMatters, Rolling Stone Korea, Remezcla, Sounds and Colours, The Line of Best Fit, Consequence of Sound, entre outros. Também publicou diversos artigos nas áreas de Propriedade Intelectual, marketing e comunicação para veículos como WIPO Magazine, IP Watchdog, Justificando e diversos blogs pessoais e corporativos.

12 comentários

  1. Estou sem fôlego, que análise enlouquecedora, me senti representada em algumas palavras . Eis um ponto comum entre BTSxARMY, o texto e sobre o Nam mas minha vivência me faz crer que muitos nesse fandom estamos no mesmo barco . Obrigada pelo texto impecável

  2. Parabéns Ana Clara isso é Namjoom homem inteligente competente admiro ele quero ter amigo irradia sabedoria maravilhoso Namjoom amoooo ele

  3. É muito gostoso poder acessar um pouquinho da intimidade dessa pessoa que é o Namjoon, através da arte sensível que ele compartilha conosco, e que também conseguimos nos indentificar. Muito obrigada pelo texto e reflexões

  4. Ah, o Joon é perfeito. MUITO obrigada por tudo o que você escreveu, é muito legal ver a visão de mundo dele ser abordada e vista por mais pessoas. Como fã, o amo e aprecio o trabalho dele, inclusive tudo que ele me ensinou.

  5. Sempre me identifiquei com RM, durante a leitura a quantidade de lágrimas que me escapou não foram poucas. Esse artigo é tão precioso! Obrigado por compartilhar essas junções de palavras tão resplandecentes!

  6. Amei o conteúdo! NamJoon é fantástico e essa reflexão me fez conhecê-lo melhor! Sensível!, inteligente! Admiro demais!

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