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Drive to Survive: onde estão as mulheres na Fórmula 1?

A música que embalava as vitórias do Ayrton Senna, apesar de não o termos visto correr, os “banhos” de champanhe nos pódios e as frases faladas repetidas vezes nas narrações das corridas são algumas das lembranças que vem à mente quando nós, autoras deste texto, pensamos em Fórmula 1, e é claro que isso vai mudar de pessoa para pessoa. Começamos a assistir F1 ainda crianças, com o nosso pai. Se na época achávamos chato, com o passar do tempo começamos a gostar. Apesar disso, acabamos nos distanciando do esporte.

O ressurgimento do nosso interesse veio com Drive To Survive, que serviu para nos lembrar que gostávamos, e ainda gostamos, de assistir a F1. A série, que estreou em 2018 na Netflix, apresenta uma visão dos bastidores da categoria, transformando as histórias que rondam os campeonatos em grandes narrativas. Com entrevistas e gravações que outrora não teríamos acesso, acompanhamos as tensões do esporte, como as brigas de ego entre pilotos e chefes de equipe, acidentes e decisões arbitrárias.

A produção é uma empreitada bem sucedida na expansão do público da Fórmula 1, visto que a categoria vinha sofrendo com o desinteresse do público mundo afora, o que era expresso pelos números de audiência. Nos últimos anos, com a compra da F1 pela Liberty Media, houve um notório aumento na presença on-line da marca, sendo essa uma das principais estratégias para chamar atenção dos fãs de automobilismo, principalmente os mais jovens. Atrelado a essa questão, os atuais pilotos possuem uma presença ativa nas redes sociais, seja nas suas próprias ou nas da equipe em que pilotam. Desta forma, Drive to Survive faz parte de um conjunto de mudanças para conquistar um novo público e reconquistar o interesse de muitos.

Ao mesmo tempo que surgiram mais jovens, também surgiram mais mulheres acompanhando a F1. Apesar disso, é bom esclarecer que sempre houve interesse feminino pela categoria, mas agora, com a internet, conseguimos vocalizar esse gostar. Entretanto, ainda que o público feminino tenha aumentado consideravelmente nos últimos anos, parece que os dirigentes do esporte ainda não se deram conta dessa nova realidade — ou apenas não se importam. Isso se dá, em parte, devido a uma visão masculinizada dos esportes à motor, no qual a presença do feminino está atrelada ao ambiente, como as grid girls, ou devido uma relação pessoal com os pilotos, engenheiros, chefes de equipe, como as mães, esposas, namoradas e irmãs desses profissionais.

Com isso, a falta de mulheres como protagonistas em Drive to Survive não surpreende, mas mesmo assim, incomoda. Entre as poucas mulheres que dão depoimentos, estão: Claire Williams, que entre os anos de 2013 e 2020, chefiou a Williams; a jornalista francesa Marion Jollès, esposa do então piloto da Haas, Romain Grosjean, que sobreviveu a um dos mais graves acidentes dos últimos anos na Fórmula 1; e a ex-piloto, na época, chefe da Venturi Racing, equipe que disputa a Fórmula E, Susie Wolff. Apesar disso, o lado profissional de Susie é pouco explorado, sendo priorizada sua relação e como ela enxerga seu marido, chefe de equipe e diretor-executivo da Mercedes, Toto Wolff.

No contexto de F1, há quem afirme que mulheres só assistem as corridas porque “os pilotos são bonitos”, e não há problema em admirar a beleza dos pilotos e torcer por eles, o que não significa que só assistimos por esse motivo. Por sua vez, no caso das pilotos, os comentários tendem a reforçar uma noção de “limitação biológica”, já que a Fórmula 1 seria muito física para as mulheres. Nesse sentido, os comentários sexistas que tentam justificar o interesse de mulheres pelo automobilismo são construídos para diminuir e/ou invalidar as experiências femininas.

Afirmações como essas são prejudiciais principalmente para aquelas que competem no esporte, já que para participar de competições automobilísticas é necessário não somente resultados e consistência mas também a presença de patrocinadores. Essas declarações, principalmente de figuras de dentro do esporte, afastam as marcas das pilotos, afinal, se as próprias equipes não consideram a possibilidade de uma piloto, por que investir nela ao invés de um piloto?

Recentemente, a questão do patrocínio afetou a piloto Tatiana Calderón, primeira mulher a competir na Fórmula 2. Calderón ficou sem participar da Indycar, a elite do automobilismo nos Estados Unidos, no meio da temporada devido a falta de pagamento da empresa patrocinadora. Tudo indicava que a piloto não competiria mais em 2022, entretanto, a situação mudou com o patrocínio de Karol G, cantora e compositora colombiana. A partir de mensagens trocadas no Instagram e com apoio da irmã da cantora, Jessica Giraldo, Tatiana voltou às pistas. Inicialmente, elas procuraram continuar na Indycar, mas a falta de vagas na reta final da temporada inviabilizou isso. Assim, a piloto retornou à F2, categoria mais próxima da F1, na equipe Charouz Racing Team.

Sobre o patrocínio de Karol G, Tatiana falou para o Del Paraguay, que ao ajudar uma atleta, que ela nem conhecia pessoalmente, a cantora colombiana mandou uma mensagem de empoderamento para as mulheres, de mulheres que se apoiam. Uma vez que, apesar de haver patrocinadores interessados em atletas, poucos param para pensar em atletas femininas. Hoje é possível observar mulheres trabalhando em posições de liderança nos bastidores da Fórmula 1, mesmo que para encontrá-las em um esporte tão associado a homens e masculinidade, seja preciso fazer um esforço consciente.

Durante o Grande Prêmio da Holanda, houve quem relacionasse os problemas que Yuki Tsunoda teve com seu carro da Alpha Tauri, equipe irmã da RBR, com uma possível estratégia das equipes para beneficiar Max Verstappen, piloto da Red Bull e atual campeão mundial. Tsunoda parou na pista duas vezes em situações incomuns, precisando abandonar a corrida na segunda parada. A ocasião levou a uma série de teorias conspiratórias nas redes sociais, que chegaram a ser fomentadas, indiretamente, por Toto Wolff.

Em consequência, Hannah Schmitz se tornou alvo de desconfiança e ódio on-line. A linguagem e o teor dos comentários destinados a ela foram (e são) totalmente inaceitáveis. Engenheira de estratégia da Red Bull Racing, ela tem sido, ao longo dos anos, uma das responsáveis pelos bons desempenhos da escuderia durante os campeonatos. Ela, em conjunto com outros profissionais, cria estratégias de corrida levando em consideração as mais diferentes situações, desde possíveis acidentes em determinados locais do circuito até o que fazer caso o tempo mude durante a corrida. Ainda que esteja fazendo o seu papel com excelência, ela muitas vezes passa despercebida pelo público em geral, uma vez que, para além dos pilotos, em grande parte devido a Drive to Survive, o rosto mais conhecido da RBR é o de Christian Horner, chefe de equipe.

Assim, somado à dificuldade das mulheres trabalharem nas categorias automobilísticas, vale mencionar os comentários e as denúncias de assédio relacionado ao aumento do público feminino que acompanham o campeonato. Relatos de assédio, infelizmente, não são novidades nas arquibancadas dos Grandes Prêmios. No entanto, apenas neste ano, em 2022, depois do ocorrido na Áustria, a FIA — Federação Internacional de Automobilismo — criou o Drive it Out, uma iniciativa voltada para combater o assédio contra mulheres, além de racismo, xenofobia e LGBTfobia.

Mas, assim como em outros esportes, a Fórmula 1 encontra dificuldade em orientar os torcedores em caso de assédio, identificar e punir tais ações. Ou seja, apesar da FIA se manifestar através de notas de repúdio e criar uma iniciativa que incentiva os fãs da categoria a ajudar a identificar os agressores, essas ações (sendo otimistas) promovem impactos mais significativos a longo prazo. A falta de segurança e o preconceito nos mantêm de fora das mais diferentes práticas esportivas, nos afastando, também, das arquibancadas, como se não tivéssemos o direito de torcer. Mulheres fãs, ainda mais se são jovens, dificilmente são levadas a sério, tendo seu gosto posto à prova a todo momento.

No nosso cotidiano, somos condicionadas a pensar na nossa segurança e a agir a partir de medidas de prevenção, como evitar locais desertos, escolher a roupa pensando no trajeto, fazer caminhos mais longos para fugir de certos locais e andar em grupo. Não é de hoje que mulheres denunciam assédios sofridos durante os Grandes Prêmios, por isso é compreensível que muitas não se sintam confortáveis frequentando esses locais, mas é importante que, mesmo aos poucos, continuemos ocupando esses espaços, não abrindo mão da segurança, é claro. Sobre a presença feminina em Interlagos e em Monza, palco do GP da Itália, recomendamos os episódios “As mulheres de Interlagos” e “Pizza com Ketchup — Aninha vai a Monza”, do podcast Box, Box, Box.

A cena mais rara na F1 é ter uma mulher no pódio, seja ela piloto, uma vez que não há pilotos mulheres ocupando uma das 20 vagas do grid ou representando a equipe no campeonato de construtores. Precisamos celebrar as mulheres nos esportes a motor, seja as que trabalham fora das pistas ou as que pilotam, independentemente da equipe ou campeonato. Além de valorizarmos jornalistas, comentaristas e produtoras de conteúdo que cobrem o automobilismo.

Rafaela Freitas é aspirante à comunicadora, noveleira assumida, apaixonada por cinema e cultura pop. Além disso, tem uma quedinha pelos clássicos da Sessão da Tarde e por produções com figurinos impecáveis.

Rafaele Chaves é um projeto de Historiadora, fã de narrativas novelescas, artesã e fanfiqueira. Acredita que o álbum Reputation foi injustiçado pelo Grammy.