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Sleep With Me: um girls love filipino e a Teoria Crip

“It’s time to sleep, everybody. Always remember, if you’re lonely, I’m here for you. This has been Harry and you’ve been listening to Sleep with Me. Good night.” (“É hora de dormir, pessoal. Sempre se lembre, se você está sozinho, estou aqui. Meu nome é Harry e você escutou Sleep with me. Boa noite.”, em tradução livre.)

Atenção: este texto contém spoilers!

É assim que Harry (Janine Gutierrez), uma locutora de rádio, encerra seus programas transmitidos durante as madrugadas para ouvinte solitários e que querem compartilhar suas angústias e problemas, em busca de uma palavra amiga e um conselho acalentador. Luna (Lovi Poe) é uma dessas ouvintes fiéis. Ela sofre com a síndrome do atraso das fases do sono (SAFS), que a faz dormir de dia e ficar acordada à noite.

Logo nos primeiros minutos da minissérie Sleep With Me, que conta com seis episódios de cerca de vinte minutos cada, é possível ter uma visão sólida sobre as angústias e problemáticas de Luna. A sequência em que ela busca seus pertences da casa do ex-namorado, que insiste que pode se adequar a rotina dela, e o modo fechado e cheio de barreiras que ela responde, que visualmente, também, se reflete em sua postura e roupas pretas e soturnas, nos mostra como seu distúrbio do sono afetou o modo como Luna se relaciona com os outros e a (des)confiança com que ela lida com o afeto.

Harry, por sua vez, é uma cadeirante e, ao contrário de Luna, tem sua deficiência visível fisicamente para o mundo, o que afeta como as pessoas a veem e se aproximam dela desde o primeiro momento que a conhecem. A produção faz um trabalho excelente em mostrar a rotina da personagem, que mora com seu irmão, Kai (Kerwin King), sem cair em um tom apelativo. Acompanhamos Harry saindo da cama para a cadeira de rodas, manobras que ela precisa fazer ao chegar no trabalho e deparar-se com um chão molhado e, especialmente, a dificuldade em conseguir um novo emprego, quando a rádio para qual trabalhava fecha, assim que as pessoas descobrem que ela é PCD. Apesar disso, entretanto, em alguns âmbitos faltou pesquisa por parte da equipe, uma vez que, por exemplo, a cadeira de rodas utilizada por Harry é um modelo hospitalar e nada adequada para o uso diário, como aponta o comentário da autora PCD, Vanessa Reis, aqui.

O ponto central de Sleep With Me, todavia, não é o fato das personagens principais serem pessoas com deficiência ou LGBTQs, mas sim envolver o telespectador em uma história que mostre o que acontece quando os dois universos de Harry e Luna colidem. A escritora e diretora do drama, Samantha Lee, conta que a história nasceu durante a pandemia do coronavírus, em que ela estava solitária, e seu escape foi escrever sobre os diferentes jeitos com que as pessoas se amam.

De um primeiro encontro com momentos constrangedores, passando pelo nervosismo e as incertezas da aproximação até a primeira vez que dormem juntas, Sleep With Me faz um ótimo trabalho em pincelar o relacionamento de Harry e Luna, criar uma atmosfera envolvente e cativante e estabelecer uma dinâmica interessante entre a personalidade das duas. O aprofundamento da relação e as ocasiões vividas em determinado momento, entretanto, nos deixam com um gostinho de quero mais, com uma ânsia de ver mais, mas que pelo tempo limitado da produção não é possível.

“Maybe I just got tired of waiting. Waiting for some who understands me, my life and what entails. Because if it’s going to end anyway, why prolong the agony?
(…)
You act like being in love is a curse.”

“Talvez eu apenas cansei de esperar. Esperar por alguém que me entende, minha vida e o que isso envolve. Porque se vai acabar de todo jeito, por que prolongar a agonia?
(…)
Você age como se estar apaixonada fosse uma maldição.”

A trajetória de Luna e a dificuldade de se conectar e manter relacionamentos, devido ao seu distúrbio de sono, fazem com que ela se feche e esteja preparada para que a estadia das pessoas em sua vida seja apenas passageira. Parece ser assim até com sua família, com quem ela mantém contato esporádico. Com dificuldade em manter empregos, uma vez que sua condição é rotulada apenas como preguiça, má vontade ou  boemia, ela está acostumada a ser solitária, a não se comprometer para não se machucar e, sobretudo, para não se tornar um fardo na vida daqueles que ama.

Até que ela encontra Harry, com seu sorriso doce e olhar sem barreiras, que está disposta a se doar pela relação, contrapor a inquietação e insegurança que os sentimentos causam em Luna com certezas e afirmações, além de provocá-la a ser vulnerável, arriscar-se e permitir-se ser feliz. Mas, nesta jornada, Harry também precisa aprender a não se preocupar e doar-se emocionalmente demais pelos outros, enquanto mantém apenas para si suas dores e frustrações.

Assistir um romance sáfico que desenvolve de forma sensível o envolvimento de duas pessoas com deficiência e mostra não só o capacitismo e falta de acessibilidade em suas diversas formas, mas que também vai além disso e reafirma algo que, infelizmente, ainda é raro no entretenimento atualmente — PCDs vivendo histórias de amor, é muito satisfatório.

Neste sentido, a fala da criadora de Sleep With Me enriquece ainda mais a obra ao comentar, durante um behind the scenes, sobre a Teoria Crip, idealizada por Robert McRuer no livro Crip Theory: Cultural Signs of Queerness and Disability. Para Lee, há um significado poderoso em representar duas minorias que são, historicamente, excluídas, e reconhecer a deficiência de modo interseccional e intrínseco com outros movimentos. Desta forma, a abordagem proposta por McRuer encontra raízes na Teoria Queer, sendo o termo pejorativo “crip” (aleijado) co-captado e ressignificado pelo movimento assim como “queer”, uma vez que “não faz sentido dividir o mundo entre heterossexuais e homossexuais — ou entre homens e mulheres —, porque a sexualidade humana é muito mais diversificada e complexa, a Teoria Crip diz que não tem por que dividir o mundo entre pessoas deficientes e não deficientes.” — em entrevista para o jornal O Globo.

A partir disso, o autor discorre sobre como a heterossexualidade e corponormatividade compulsórias estão relacionadas e se retroalimentam, reforçando os padrões e se opondo ao que que difere desta performatividade. Assim, é mais do que necessário que as discussões feministas e queer levem em consideração a experiência de pessoas com deficiência, uma vez que ser mulher, LGBTQIA+ e PCD carrega uma confluência de fatores de desigualdade, o que torna as vivências radicalmente diferentes e necessárias de serem ouvidas. O que pouco acontece, como pontua o texto Movimiento Queer-Crip: Nada sobre nosotras, sin nosotras, uma vez que apesar da atual visibilidade da luta pelos direitos de pessoas LGBTQIA+, dentro e fora deste contexto, as pessoas com deficiência tem pouca voz e vez.

“La #TeoriaCrip es un pilar del empoderamiento de las mujeres discapacitadas, ya que podemos hablar de la discapacidad en términos de sensulidad y sexualidad sin paternalismo, ni #PornodeAutomotivacion, ni fetiche”

“A #TeoriaCrip é um pilar do empoderamento das mulheres com deficiência, pois podemos falar de deficiência em termos de sensualidade e sexualidade, sem paternalismo, nem #PornodeAutomotivação, nem fetiche.”

Isso porque, como comenta McRuer, ainda em entrevista para O Globo, “deficientes não são vistos como pessoas que fazem sexo. Há uma tendência de não ver os corpos delas como bonitos ou desejáveis”. Sleep With Me ajuda a deslocar um pouco os alicerces destes pensamentos capacitistas. O primeiro episódio está disponível no YouTube e para assistir os demais episódios, você pode contratar o teste grátis do streaming iWantTFC.