Em muitos momentos ao longo dos cem minutos de O Acontecimento é possível esquecer que a obra retrata algo que ocorreu em 1963. Longe de ser esse um demérito do filme, é, na verdade, um sinal do quão perturbadoramente contemporânea é a história vivida pela protagonista.
Vencedor do Leão de Ouro de Melhor Filme no Festival de Veneza em 2021, o filme dirigido por Audrey Diwan é uma adaptação da obra homônima, escrita pela autora francesa Annie Ernaux, um relato não-ficcional de seu calvário para realizar um aborto clandestino na França.
Disponível na HBO Max, O Acontecimento chegou aos cinemas brasileiros poucas semanas depois do tema do aborto estar em toda a imprensa. Enquanto os Estados Unidos regrediram quanto aos direitos das mulheres com a revogação da lei Roe vs. Wade, que garantia o aborto como um direito constitucional, no Brasil, o caso de uma menina de 11 que, vítima de estupro, foi impedida pela Justiça de realizar o procedimento garantido por lei mostra que pouco avançamos em suprimir anseios, medos e humilhações tais como Ernaux foi submetida nos anos 60.
Anamaria Vartolomei interpreta Anne, uma jovem como tantas outras. Dedicada aos estudos, sonha em ser escritora e reveza sua vida entre os livros, a família e festa com amigas e colegas. Seu futuro é então ameaçado por um gravidez indesejada que dá início a uma dolorosa e solitária busca pelo controle do próprio corpo, confiscado pela lei. Na época, toda mulher que realizasse um aborto poderia ser presa, assim como médicos e qualquer outra pessoa que a auxiliasse de alguma forma na execução do procedimento. Uma tática eficaz para isolar a mulher que desejasse interromper uma gravidez.
Dessa forma, Anne se vê desamparada, sem poder recorrer à família, ao pai da criança que não está interessado em compartilhar responsabilidades e desconfiando dos médicos que a condenam. Com as amigas, as conversas sobre gravidez e aborto são feitas aos sussurros, carregadas de medo e da repressão que tolhe também sua sexualidade. Os rapazes da mesma idade podem ter quantas parceiras desejarem, porém às mulheres o mesmo não se aplica, e o sexo é, para elas, uma ameaça.
A produção é bem-sucedida em fazer o espectador se colocar na pele de Anne. A câmera muitas vezes posicionada nas costas da protagonista nos coloca em sintonia com seu ponto de vista, e a proporção de tela de 1:37:1 contribui para a sensação de claustrofobia e opressão. A passagem de tempo é registrada por uma tela preta com a quantidade de semanas de gestação de Anne, numa angustiante contagem regressiva.
Mesmo quem já leu o livro de Annie Ernaux ou conheça o final da história sente a tensão ao longo do filme que beira o suspense e o thriller. O espectador não é poupado de acompanhar o sofrimento da protagonista em suas diversas tentativas de realizar o aborto. As cenas são difíceis de assistir; com poucos cortes e câmera parada, elas são ainda mais cruas e doloridas porque Anne está sozinha, mesmo quando acompanhada pela mulher que realiza abortos em seu pequeno apartamento, alguém que a protagonista desconhece.
Anamaria Vartolomei faz um ótimo trabalho no papel, comunicando no rosto e o corpo o que a personagem não pode dizer. Embora tendo que enfrentar árduos obstáculos, Anne não desiste de retomar as rédeas da sua vida, mas sua história ainda é um triste e preciso espelho da vida de tantas mulheres. Os minutos finais são um suspiro de alívio, porém sem conseguir mitigar a dor da experiência feminina numa sociedade construída para isolar e controlar as mulheres.