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Bottoms (Passivonas): um filme que sabe rir de si mesmo

Duas amigas queer, nerds e perdedoras no último ano do ensino médio resolvem criar um “clube da luta feminino” para conseguir ficar com as gostosas do colégio antes de se formarem. Essa é a versão simplificada do brilhante Bottoms, filme da diretora canadense Emma Seligman, responsável pelo aclamado Shiva Baby (2020). A produção se popularizou entre a comunidade lésbica, bissexual e queer após algumas cenas do filme começarem a circular no finado Twitter durante o primeiro semestre deste ano.

O nome em inglês faz trocadilhos geniais que condizem com o humor ácido apresentado no filme. “Bottoms” pode se referir tanto a alguém que está embaixo na pirâmide social escolar quanto aquele que fica por baixo durante a relação sexual. Por isso, no Brasil, há uma verdadeira campanha para que o filme seja traduzido como “Passivonas” e não como “Clube da Luta para Meninas” — título que deve receber quando chegar à plataforma Prime Video no Brasil.

Bottoms resgata o humor das comédias besteirol e das narrativas coming-of-age (amadurecimento) populares dos anos 1990-2000, como American Pie, além de referenciar clássicos da comunidade lésbica, como But I’m a Cheerleader, agora dando voz ativa às mulheres queer e hétero presentes nessas narrativas, e pelo olhar de uma direção feminina. Ao invés das personagens femininas se desenvolverem ao redor das narrativas de um homem, são elas as agentes da ação nesta produção.

“Sabíamos que queríamos que as meninas lutassem de alguma forma ou fossem super-heroínas. E adorávamos filmes como Kick-Ass e Scott Pilgrim vs. The World, que tinha um elemento de aventura ou luta para conquistar a garota. Queríamos dar aos protagonistas as jornadas dos heróis para que se sentissem poderosas, quentes e legais.” — Selingman em entrevista a The New York

Bottoms

Perdedoras mandando ver

PJ e Josie, interpretadas por Rachel Sennott (Shiva Baby e Bodies, Bodies, Bodies) e Ayo Edebiri (Dickinson e The Bear), são “lésbicas perdedoras” que estão de saco cheio de não conseguirem pegar ninguém. Apesar de terem crushes há anos nas líderes de torcida Isabel (Havana Rose Liu) e Brittany (Kaya Gerber), nenhuma delas toma alguma atitude para chegar em suas paixonites. Mas, após um incidente com o time de futebol americano da escola, a oportunidade surge.

Todo o universo de Bottoms é uma loucura. As situações escalam de forma frenética para a coisa mais doida que poderia acontecer. Por isso, é importante ter em mente que o filme não tem como objetivo trazer grandes reflexões, mudar vidas ou ser potencializador da destruição do patriarcado. Bottoms ri de si mesmo e de todos nós.

“Acho que o público, e especificamente o público queer, merece assistir a algo que não os faça pensar muito sobre sua identidade e que apenas os deixe se divertir.” — Sligman em entrevista a Elle

Nesse sentido, por mais absurdas que algumas situações pareçam, Bottoms entrega uma boa história sobre as vivências queer. O desenvolvimento da relação entre Josie e Isabel, por exemplo, é digna de qualquer comédia romântica. O que começa como uma paixonite de colegial vai se fortalecendo porque as duas passam a se conhecer melhor. Isabel está numa relação tóxica com o astro do time de futebol (Nicholas Galitzine, o príncipe Henry do filme Vermelho, Branco e Sangue Azul), mas em parte porque só teve contato com esse tipo de afeto. Josie, aos poucos, vai mostrando outra forma de sentimento para ela. Desde o início, é possível perceber que Isabel já tinha algum interesse em Josie, que representando as tímidas — ou as passivonas — nunca percebeu nada.

É através do clube da luta que Isabel, assim como muitas meninas do colégio, desenvolvem independência emocional e encontram suporte neste coletivo, passando a agir de fato contra as micro violências que vivenciam. Bottoms não tem como prioridade discutir a fundo questões como machismo, violência contra mulheres e patriarcado, mas tudo isso está ali de alguma forma, na maior parte das vezes, mascarado de humor. Em uma das cenas, quando todas as integrantes do clube fazem uma roda para conversar sobre si mesmas, uma das personagens fala sobre os abusos que sofre na sua carreira como garota propaganda, enquanto outra cita o impacto do abandono materno, além de diversas menções ao assédio que sofrem continuamente dentro e fora do ambiente escolar.

Bottoms

Vale destacar a própria representação dos atletas do time de futebol e do orientador do clube — todos com uma masculinidade frágil e evidente. No caso dos atletas, é mostrado aquela “broderagem” de que “homens se protegem a todo custo” e fazem drama por qualquer discurso que aponte isso, enquanto o professor é o típico esquerdo-macho aliado que, no momento em que uma mulher o decepciona, resolve atacar a todas, ou seja, apoio ao feminismo só enquanto for conveniente a ele. Essas discussões, no entanto, ocorrem de forma leve, aliada a sátira e funcionam bem com a proposta da narrativa.

Muitas das críticas que Bottoms recebe são por não escancarar esses pontos com mais contundência, mas, na verdade, esse é justamente o ponto forte do filme. Como Saligman disse em entrevista a Elle, a comunidade LGBTQIAPN+ também precisa de produções “farofa”, de “gaiatadas”, que não se levem tão a sério, porque eles precisam rir também. Nem sempre as narrativas que abordam questões relacionadas a sexualidade, identidade e gênero precisam ser sérias. Quantos comfort movies [filmes conforto] leves para a comunidade queer existem? Cadê o Clube dos Cinco, As Apimentadas, o 10 Coisas que Odeio em Você que pessoas LGBTQIAPN+ possam assistir, rir, chorar e se identificar com as narrativas porque há personagens como elas ali?

“Pode ter havido alguma parte de mim que queria que essas garotas se sentissem fortalecidas porque eu não era fortalecida no ensino médio. Eu gostaria de ter visto garotas queer nessa comédia sexual adolescente naquela época.” — Seligman em entrevista para a The New York

Outra crítica recorrente ao filme é que a personagem PF, de Rachel Sennott — que assina o roteiro junto com Seligman — é vista como tóxica, chata, irritante e antifeminista até. Entretanto, como apontado pela criadora de conteúdo e youtuber Anna Bagunceira, a personagem reproduz comportamentos que seriam bem aceitos em personagens masculinos em qualquer filme. Sem contar que estamos falando de uma obra que retrata a vivência adolescente, não de adultos com personalidades e caráter formados.

Bottoms

É interessante pensar que personagens que têm comportamentos, em certa medida, detestáveis, só são duramente criticados quando representam a comunidade LGBTQ+. A personagem de Jennifer Lawrence no filme No Hard Feelings (2023), por exemplo, tem comportamentos e faz escolhas de caráter duvidoso em boa parte da obra, mas por estar dentro de uma relação heteronormativa — mesmo sendo uma personagem bissexual — tem suas ações toleradas e seu arco de redenção e amadurecimento valorizado, ao contrário de PJ, que é apenas uma lésbica querendo transar.

“Elas não estão descobrindo um vibrador ou descobrindo pornografia pela primeira vez. São apenas adolescentes hormonais e egoístas, como todo mundo no ensino médio.” — Seligman em entrevista a Elle

Talvez o humor escrachado de Bottoms afaste algumas pessoas que esperam uma comédia adolescente engraçadinha, mas aqueles que aceitarem o filme pelo que ele se propõe a ser não vão se arrepender. A produção tem uma fotografia muito bem trabalhada entre os cenários externos e internos que dialogam com as mudanças entre os atos, além de efeitos especiais e uma trilha sonora que faz jus as referências que traz — toca Avril Lavigne, artista essencial na playlist de toda LGBT+ que foi adolescente nos anos 2000.

O filme, que estreou em agosto na América do Norte, vem recebendo boas críticas e está com 92% de aprovação no Rotten Tomatoes, merecendo indicações nas premiações pelas atuações do elenco, direção e roteiro original. Apesar de parecer reunir todos os elementos de uma “bomba”, Emma Seligman encontrou o tom certo para retratar jovens queer com tesão.

Referências

ZYLBERBERG, Nadine. Emma Seligman’s Bottoms Is the Newest Addition to the Teen Movie Canon. Elle Magazine (EUA). Reportagem publicada em 25 de agosto de 2023. Disponível neste link (aqui).

FRANCO, Gabriela. BOTTOMS: O FILME DE LÉSBICAS TRAMBIQUEIRAS QUE A GENTE PRECISAVA. Gibizilla. Resenha publicada em 6 de outubro de 2023. Disponível neste link (aqui).

BAGUNCEIRA, Anna. PASSIVONAS É TUDO E MAIS UM POUCO! – Eu assisti BOTTOMS!. Vídeo publicado no YouTube em 29 de setembro de 2023 (aqui).

FRY, Naomi. Why Emma Seligman Decided to Make a Movie About a Queer Fight Club. The New York Online (EUA). Entrevista publicada em 13 de agosto de 2023. Disponível neste link (aqui).