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O Céu que Nos Oprime: sobre histórias que ainda precisam ser contadas

A Juventude Hitlerista — ou Juventude Hitleriana, como também ficou conhecida — surgiu, em seus moldes, ainda na década de 1920, durante a República de Weimar, com grupos juvenis nacionalistas, simpatizantes do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP, o Partido Nazista). Desmembrando-se posteriormente em seções que contemplavam crianças de 10 a 14 anos e meninas (a chamada Liga das Meninas Alemãs), a Juventude Hitlerista foi responsável por muitos dos atos que, anos mais tarde, seriam considerados criminosos — porque, de fato, eram. Há, no entanto, um evidente conflito moral que permeia o assunto: até que ponto crianças e adolescentes podem ser responsabilizados por suas ações? Em O Céu que Nos Oprime, Christine Leunens se debruça sobre essa questão a partir da trajetória Johannes Betzler, um garoto alemão obcecado pelo regime nazista, em uma tentativa de compreender o que tornava o nacional-socialismo de Adolf Hitler tão atrativo aos jovens da mesma geração.

Nascido em Viena, na Áustria, em 1927, Johannes é um menino de quase onze anos quando vê Hitler pela primeira vez, em 1938. Um ano depois, a participação de crianças e adolescentes na Juventude Hitlerista tornou-se obrigatória (vale ressaltar que, somente em 1937, a instituição já havia ultrapassado a marca de cinco milhões de meninas e meninos ingressos, o equivalente a cerca de 64% da população infantojuvenil). A exemplo dos partidos políticos, quaisquer organizações haviam sido proibidas na Alemanha e territórios do Reich (como a própria Áustria, transformada em uma província após a votação favorável pela anexação), incluindo sociedades juvenis, particularmente comuns no período subsequente à Primeira Grande Guerra (destaque para as associações católicas e grupos comunistas, cujos líderes foram mortos e/ou perseguidos). Em 1939, a Juventude Hitlerista já contava com a adesão de 98,1% dos jovens alemães, ao passo que uma pequena parcela resistente sofria os riscos de ser submetida às punições impostas pelo governo; exceções que, no entanto, contradiziam a imagem de aparente uniformidade projetada por Hitler e seus seguidores. Mesmo antes da obrigatoriedade, sanções de cunho político e social já eram impostas aos que se recusavam a integrar a JH — da proibição para prestar o Abitur (exame exigido para o ingresso no ensino superior alemão) até a impossibilidade de herdar terras, a pressão política e o banimento social —, o que ajuda a explicar o porquê dos números.

De acordo com o historiador Michael H. Kater, autor do livro Hitler Youth, a população infantojuvenil estava, de fato, mais suscetível ao discurso nazista. Em sua busca por identidade, sentido e pertencimento, muitos jovens encontravam na ideologia nazista uma resposta — ainda que uma resposta baseada em códigos de violência. Nesse contexto, a Juventude Hitlerista era apenas uma forma de tornar crianças e adolescentes parte da engrenagem nazista, recorrendo a instintos básicos de proteção e coletividade como forma de construir uma imagem atrativa da organização, que tornar-se-ia uma oportunidade para que esses jovens integrassem uma comunidade mais ampla, cujos objetivos transcendessem sua existência individual — o que instituições tradicionais como a família, a escola e a igreja já não eram capazes de oferecer. Johannes não foge à regra: seduzido pela promessa de prosperidade e glória, pelo conceito de eugenia e o antissemitismo, muito de sua motivação reside na idealização do seu papel; que ele, uma criança, pudesse fazer a diferença.

“Aprendemos fatos novos e assustadores. A vida era uma guerra constante, uma luta entre raças por território, alimento e supremacia. Nossa raça, a mais pura, não tinha terra suficiente — muitos de nós viviam no exílio. Outras raças estavam gerando mais filhos e se misturando com a nossa para nos enfraquecer. Estávamos em grande perigo, mas o Führer confiava em nós, as crianças. Nós éramos o seu futuro. Como me surpreendi ao pensar que o Führer que vi em Heldenplatz, saudado pelas massas, o gigante nos cartazes espalhados por toda a Viena, que falava até pelo rádio, precisava de alguém tão pequeno como eu. Antes, eu nunca me sentira indispensável; em vez disso, me sentia como criança, algo parecido a uma forma inferior de adulto, um defeito que só o tempo e a paciência poderiam curar.” 

Há, ainda, o notório conflito geracional, que no livro é representado pelas diferentes dinâmicas que se estabelecem no seio familiar. Personagens como o pai, a mãe e a avó de Johannes fornecem pontos de vista distintos sobre a situação no país, em especial nos anos que antecedem a guerra, quando a obra retrata as opiniões divergentes que habitam um mesmo teto: da avó que vê na anexação uma chance de ver Viena novamente como a “florescente capital de um grande império”, à mãe que se cala diante da esmagadora vitória de uma opinião contrária à sua ou ao pai que confessa sentir nojo ao ver as palavras de outras pessoas saírem da boca do próprio filho. É Johannes, no entanto, o grande ponto focal da narrativa, aquele cujas ideias se manifestam de maneira mais radical.

Diferente da adaptação cinematográfica, Jojo Rabbit, em que a figura de Adolf Hitler se personifica como amigo imaginário do protagonista, em muito pela sua natureza satírica, O Céu que Nos Oprime possui um olhar distinto, embora não necessariamente mais profundo, sobre os efeitos da propaganda nazista na vida de um garoto em idade de formação. Christine Leunens capta com precisão o sentimento de excitação tanto quanto a necessidade de autoafirmação e, como sujeito da discussão, Johannes incorpora a rejeição pelos ensinamentos adquiridos dentro de casa ao mesmo tempo em que busca a comprovação da superioridade de suas crenças — e, consequentemente, dele próprio — frente aos pais. As acaloradas discussões com o pai, subtraído do filme, ditam a complexidade da situação, em que o medo é uma variável constante, palpável até mesmo nas relações entre pais e filhos.

” — Que tédio, que tédio! — esbravejou ele. — Um mundo em que todos tenham os mesmos filhos com cabeça de boneca, os mesmos pensamentos aceitáveis, cortem a grama do jardim no mesmo dia da semana! Nada é tão necessário à existência humana quanto a diversidade. É preciso haver diferentes raças, línguas, ideias, não só em benefício próprio, mas para que você possa conhecer a si mesmo! No seu mundo ideal, quem é você? Quem? Você não sabe. Você se parece tanto com tudo ao seu redor que some como um lagarto verde em uma árvore verde.”

Com o ingresso de Johannes na Juventude Hitlerista, e com o treinamento cada vez mais pesado, sua presença em casa torna-se cada vez mais rara. O avanço gradual da guerra e a ausência do garoto é o que permite aos pais abrigar, em segredo, Elsa Kor (Korr, no filme), uma menina judia que tomara aulas de violino com Ute, a falecida filha do casal. À exceção dos pais de Johannes, ninguém tem conhecimento sobre a presença da adolescente, que é mantida atrás de uma parede falsa, localizada no quarto de hóspedes, e mesmo a mudança perceptível no comportamento dos progenitores — da mãe que não toca na própria comida às ausência cada vez mais acentuadas do pai ou a tensão que se instaura nos breves períodos que Johannes passa em casa —, é impossível para o garoto estabelecer com o precisão o que acontecia com a família. É somente quando sofre um grave acidente, que mata seu melhor amigo e o leva a perder parte do braço, além de ter a face parcialmente desfigurada, que o jovem volta definitivamente para casa — e, uma vez entre aquelas paredes, é uma questão de tempo até que descubra o segredo dos pais.

Surpreendente, portanto, que, ao descobri-lo, Johannes decida não denunciar a presença de Elsa. Mantida como parte dos esforços da resistência, a qual o casal Betzler pertencia, ter uma judia sob o mesmo teto era, para Johannes, uma dor de cabeça tanto quanto uma burrice, e a denúncia só não acontece porque fazê-lo significava colocar em risco não apenas a vida de seus pais, mas também a sua própria. Até mesmo assassinar a garota deixa de ser uma alternativa quando ele considera que talvez o pai pudesse ter uma filha bastarda com uma judia ou que seus ancestrais não fossem puramente arianos, o que o encaminha para um inevitável dilema: seguir a doutrina na qual havia sido treinado para acreditar cegamente, independente das consequências, ou recorrer aos seus instintos mais primitivos. Ao escolher a segunda opção, Johannes, contudo, não é levado a uma jornada de iluminação; suas convicções, ao contrário, permanecem as mesmas, e Elsa, apenas um ponto fora da curva.

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O período subsequente é marcado pelo desenvolvimento de uma relação de obsessão e dependência mútuas, fruto do abstrato de sentimentos e sensações tanto quanto do contexto — este inegavelmente concreto — que existe do lado de fora. Se, de maneira mais óbvia, Elsa depende de Johannes para sobreviver, serva de seu silêncio e da sua boa vontade, Johannes, ainda que em uma posição de evidente privilégio, torna-se perigosamente dependente da presença e do afeto de Elsa. A partir deste ponto, Leunens muda propositalmente o seu foco, fazendo com que a dinâmica entre os jovens se sobressaia ante o cenário na qual se insere. Embora a guerra continue a ser um fator importante, sem a qual não haveria uma história para contar, é notável a mudança que ocorre a partir do encontro entre eles, quando as variáveis do conflito passam a ser lidas por uma ótica bastante específica. Mesmo a morte dos pais de Johannes, considerados inimigos do regime, são vistas a partir do impacto que exercem no microcosmo familiar e, mais tarde, pelo seu valor na manipulação e chantagem que rege a dinâmica entre os dois jovens, mas pouco se diz a respeito do teor inegavelmente político que as cerca.

“O grande perigo de mentir não é que as mentiras sejam inverdades e, portanto, irreais, e sim elas se tornarem reais na cabeça das pessoas.”

Menos ainda se diz sobre a percepção de Johannes sobre a ideologia nazista uma vez que seus pais são vitimados por ele. Se é verdade que ele sente a ausência daqueles que se foram, sobretudo da mãe, é também verdade que sua postura se torna cada vez mais distante do mundo que o cerca à medida que Elsa se torna uma prioridade. Não se trata de uma preocupação genuína, no entanto, mas do desdobramento de uma obsessão antes reservada ao regime. Ao construir um mundo paralelo para os dois, Johannes perde a noção da própria realidade; o que existe do lado de fora se torna um empecilho, uma burocracia com a qual ele precisa lidar. Elsa, por sua vez, é levada a este mundo não porque deseja habitá-lo, mas porque é obrigada a fazê-lo. A mentira, que inicialmente parece se aplicar exclusivamente ao discurso nazista, ganha contornos menos nítidos quando aplicada ao relacionamento dos dois: é difícil precisar até que ponto Elsa sabe o que está acontecendo e quão conivente é com o garoto; da mesma forma, não há como determinar quanto dos ensinamentos incutidos em Johannes desde a infância interferem em sua compreensão de mundo. Compreender o que o nazismo e a guerra fizeram com esses jovens é uma pergunta que permanece sem resposta; em última análise, O Céu que Nos Oprime não oferece esclarecimentos, sejam embasados ou apenas sugeridos, preferindo, ao invés disso, instigar uma discussão baseada nas experiências de personagens ambíguos, por vezes desagradáveis, que não respondem a estereótipos nem se estabelecem como vítimas — muito embora, de formas distintas, ambos o sejam. Que construam uma relação abusiva é apenas uma nota sobre quão extensas são suas marcas e como se manifestam, ou podem se manifestar, em seu exterior.

Muitas histórias foram contadas sobre a guerra, o nazismo e o Holocausto: histórias reais e fictícias; histórias sobre crianças, mulheres e homens; histórias sobre pais, filhos, irmãos e amigos — nada que, no entanto, fosse suficiente para mantê-las vivas na memória coletiva mundial. Pesquisas comprovam que, somente nos Estados Unidos, um terço da população acredita que o Holocausto foi responsável pela morte de três vezes menos judeus do que os valores estimados por historiadores, enquanto 66% dos jovens entre 18 e 34 anos não souberam citar o nome de um único campo de concentração quando questionados. O antissemitismo e o nazifascismo tampouco deixaram de existir no período subsequente à guerra e reverberam ainda hoje. Em 1967, Ron Jones já comprovara, a partir da experimentação social, que nem mesmo sociedades democráticas estavam imunes ao discurso nazifascista. Em 2020, no entanto, a hipótese deixa de existir para se tornar realidade.

O Céu que Nos Oprime dificilmente poderia ser considerada uma história perfeita: ela ainda é uma narrativa densa — e por vezes lenta — e incômoda, com personagens tão complexos quanto detestáveis, a quem não resta qualquer tipo de redenção. Mesmo com o fim da guerra, finais felizes não são uma possibilidade; a Áustria continuaria destruída e pessoas ruins existiriam de ambos os lados, embora seja mais fácil distribuí-los de maneira dicotômica quando conhecemos apenas um tipo de história, aquela contada pelo lado vencedor. Tudo isso, no entanto, faz de Luenens uma escritora particularmente bem-sucedida em sua proposta. Já ouvimos muitas histórias sobre a Segunda Guerra Mundial, o nazismo e o Holocausto. É preciso que mais sejam contadas.

“— (…) É um dos fatos cruéis da vida, todo mundo sabe disso, geração após geração, mas ninguém quer admitir. É uma mentira coletiva. Talvez uma melhor maneira de definir a humanidade, em vez de ‘a fabricante de ferramentas’, seria ‘a fabricante de mentiras’.”

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Editora Record.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

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