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Killing Eve, segunda temporada

A tão esperada segunda temporada de Killing Eve estreou em abril de 2019. No Brasil, a série é distribuída pela Globoplay e está disponível desde março de 2020 sob o nome Dupla Obsessão. O sucesso da primeira temporada, produzida e roteirizada por Phoebe Waller-Bridge, deixou fãs e crítica atentos para o desenrolar da história de Eve Polastri, investigadora do MI-6, e Villanelle, psicopata fashionista e assassina de aluguel. De maneira não tão usual, cada temporada de Killing Eve foi conduzida por uma showrunner diferente, ambas mulheres, e na segunda temporada quem assume o comando é Emerald Fennell — escritora, diretora, roteirista e atriz.

Atenção: este texto contém spoilers!

Desde sua estreia, Killing Eve ganhou mais de 20 prêmios e foi indicada a outros tantos, o que nem sempre indica muita coisa, mas aqui serve de reconhecimento para um trabalho primoroso na primeira temporada. Nesse segundo ato, as atuações seguem de primeira linha com Jodie Comer e Sandra Oh dando vida a duas personagens complexas e intensas, mas o roteiro perde um pouco do brilho inicial. Fazem falta outros elementos além do plot da caçada entre as duas protagonistas. Já não é mais novidade que Villanelle é codinome de Oksana Vorontsova e as duas até já se conheceram pessoalmente, com direito a facada e fuga. Então, o que sobrou?

“Eu diria que toda obsessão é sexual em certo nível,” Emerald Fennell

Killing Eve é, para todos os efeitos, uma série policial. Na segunda temporada, temos, como era de se esperar, mais mortes inexplicadas a serem investigadas. Logo no princípio, conhecemos outra assassina, a Fantasma, e Eve e sua equipe precisam descobrir a identidade do mandante dos crimes. Na metade da temporada, descobrimos quem é o “vilão” da vez: Aaron Peel (Henry Lloyd-Hughes), um bilionário da tecnologia que contrata matadores para se livrar de quem entra no caminho dos seus planos de ganhar ainda mais dinheiro. A solução encontrada por Eve é se oferecer como isca para atrair Villanelle, e então usá-la para chegar a Peel.

Além de transparecer obviamente o desejo de Eve no sentido de encontrar a assassina, a ingenuidade e o potencial destrutivo do plano deveriam soar o alerta da superiora, Carolyn (Fiona Shaw), que percebe a obsessão da funcionária, mas não interfere. Villanelle lê a situação com facilidade ao encontrar Carolyn pela primeira vez: “Ela é a verdadeira chefe, não é?”. Num jogo de múltiplas camadas e sentidos de que só temos vislumbres, Carolyn comanda os atores e cenários como mestre e todos agem exatamente como previsto em seu script, mesmo que só fiquemos sabendo disso no final.

Jess (Nina Sosanya), colega de equipe de Eve, questiona no episódio cinco a falta de documentação dos projetos: “se você não faz a parte chata não é por ser especial, mas porque alguém não quer que você deixe rastros. Carolyn aceitar tudo isso não torna uma boa ideia”. O aviso direto não adianta de nada. Assim como o de Kenny Stowton (Sean Delaney) que também tenta avisar da armadilha, sem sucesso.

A imagem retrata cena da segunda temporada de Killing Eve em que Eve e Villanelle estã sentadas à mesa olhando em direção a algo que está atrás da câmera

Eve ainda é iniciante no jogo perigoso — como a morte de Bill (David Haig), na primeira temporada, nos lembra — do serviço secreto. Ela acredita que basta ser boa e fazer bem seu trabalho para triunfar. Mas isso deixa de ser suficiente depois que se envolve com Villanelle e descobre que pode ter e ser outras coisas. Assim que passa a seguir os projetos de Carolyn sem questionar, e com sua obsessão por Villanelle como motor poderoso, Eve se descuida da própria segurança. A adrenalina da caçada e as descobertas de suas outras facetas — uma mulher capaz de esfaquear alguém, que pensa em matar, que deseja outra mulher — se mostram mais estimulantes.

Protagonistas complexas

Tudo que Eve vê é Villanelle. E a dinâmica entre as duas se revela por meio de presentes, roupas, batom, comida, sexo com outras pessoas, conversas, olhares no espelho, ciúmes e tensão. Após a facada que marca o fim da primeira temporada, uma barreira é rompida. Se fosse uma relação tradicional, talvez um beijo cumprisse esse papel. Mas é importante relembrar — mesmo que o carisma de Villanelle seja irresistível — que ela é uma psicopata, e não há nada de comum ou ordinário nessa relação, que alcança mais profundidade a partir do momento em que Villanelle é convocada para o time.

Parece incrível que uma operação perigosa em tantos níveis seja aprovada, que tudo funcione tão bem, que os disfarces não sejam questionados, que a morte súbita da segurança da irmã de Aaron não coloque uma pulga atrás da orelha de ninguém… São pequenos elementos que enfraquecem o todo, mas que deixamos em suspenso para acompanhar o desenvolvimento de uma Eve moralmente questionável e de uma Villanelle cada vez mais envolvente.

O casamento de Eve e Niko (Owen McDonnell), balançado na primeira temporada, é definitivamente terminado por Villanelle, que se encarrega de importunar ambos, mostrando que Niko não conseguia satisfazer os desejos de Eve por violência e algum nível de dominação. Transtornado após descobrir que Eve esfaqueou Villanelle, ele a interroga: “Você quer que eu te ame ou que te assuste?”. Eve responde que não sabe, mas seu rosto e seu corpo claramente dizem: os dois.

Nessa temporada também vemos Villanelle um pouco menos no controle da situação: quando não vê Eve investigando um dos seus assassinatos, ela vai para uma boate, se droga, quase mata uma mulher que a irritou, acorda vomitando e chora muito. O momento de vulnerabilidade (se é que podemos chamar dessa forma) máxima da personagem acontece numa reunião dos Alcoólicos Anônimos (AA) em que ela revela que na maioria dos dias não sente nada e faz as coisas que a fazem parar de se sentir menos entediada.

O que observamos no decorrer dessa temporada de Killing Eve é que o figurino continua representando um espelho da personalidade das personagens: Carolyn Martens (Fiona Shaw) vestindo roupas em tons neutros ou escuros, calças e casacos bem cortados e passados, com caimento perfeito, sempre com um ar de tranquilidade e controle da situação. O guarda-roupa de Villanelle é sem dúvidas o mais incrementado e o mais analisado. Bastante extravagante, ela é fashion, gosta de combinar as roupas com as situações e inventar disfarces que são quase fantasias. A roupa escolhida para matar Eve, por exemplo, é um longo preto, com véu, batom vermelho e botas. Prática e dramática.

Eve, por sua vez, está ainda mais amarfanhada do que na primeira temporada, com muitas camadas, roupas básicas de caimento pior, tecidos mais comuns e cores como cinza, preto, verde musgo, bege. Os looks transparecem a confusão mental, o cansaço e expressam o ar “boring” de uma vida classe média, sem empolgação. Num momento em que precisa usar colete à prova de balas, é nítido o desconforto da personagem com a “peça” que muda sua aparência, restringe seus movimentos e a deixa sem forma. O cabelo é a única “extravagância” da sua aparência.

O crescendo da tensão durante a temporada acompanha a descoberta de Eve sobre si mesma, sobre seus desejos e sobre a parte violenta e cruel dela que apenas Villanelle acessa. O que começa sutil, com um pacote de doces devorado, cigarros acesos e olhares em espelhos, se encaminha para um quase beijo no colega Hugo (Edward Bluemel), um rompante assassino no metrô, mais comida e desemboca nos últimos episódios com direito a sexo pelo telefone, muita violência, e uma morte que muda tudo.

Fennell, em entrevista ao New York Times, defende o quão difícil é para ambas as personagens estarem juntas. Mesmo que exista desejo, respeito, certo ciúme… quando estão no mesmo ambiente, é desconfortável. Estar frente a frente com o objeto de sua obsessão não pode ser fácil. E, definitivamente, o último episódio mostra o quão difícil é ser a Eve que Villanelle idealiza. Em “You’re Mine” a investigadora ultrapassa seu limite — até então aparentemente intransponível — e mata alguém para proteger Villanelle. Desajeitada e histericamente, ela faz o que a assassina deseja e fica em choque.

Quando descobre que Villanelle possuía uma arma o tempo todo, Eve se revolta. O interessante é notar que o rompimento com Villanelle não acontece pelo ato de matar em si, mas por ter matado naquelas condições, sem uma necessidade real. Nesse ponto, na impossibilidade de ter o objeto de sua obsessão, Villanelle dispara contra ela, como quem diz: se não minha, melhor morta. O jogo das duas agora está empatado: um tentativa de assassinato para cada. A ver nas próximas temporadas de Killing Eve como tudo terminará.

A imagem contém os dados da série e a nota dada a temporada. Texto contido: Killing Eve, temporada 2, EUA/Reino Unido, 2019, 4 estrelas.