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O Mundo que Habita em Nós e a filosofia na atualidade

O Mundo que Habita em Nós, publicado em 2019 pela Editora Instante, é o oitavo livro publicado de Liliane Prata, jornalista e filósofa, mas o primeiro de não-ficção. Lili é escritora, redatora, roteirista, youtuber) e conhecida pelo seu primeiro livro O Diário de Débora, e pelas colunas na revista Capricho e na revista Cláudia.

Nesse livro, que se aproxima mais de um ensaio filosófico, a autora vai abordar temas caros aos dias de hoje (à modernidade, aos millennials, às nossas conversas cotidianas), como solidão, ansiedade, medo, pressa, aparência e essência, o eu e o outro; que também sempre foram assuntos da filosofia. Ela faz isso de maneira fácil e palatável para pessoas de diversas formações articulando trechos de músicas, literatura, textos teóricos e promovendo reflexões importantes.

A desesperança no mundo

“Se nunca foi tão difícil viver, não sabemos ao certo. De todo modo, […] anda bem difícil lidar com o cansaço da nossa época. Por que estamos tão exaustos?”

Óleo nas praias no Nordeste; animais morrendo; desabamento de prédio em Fortaleza; votação sobre uso da base de Alcântara e desapropriação de famílias quilombolas; fogo na Amazônia; crise climática; poluição; 13 milhões de desempregados; jovens negros sistematicamente assassinados pelo Estado e a perpetuação do racismo; censura na bienal do livro do RJ. Esses são alguns dos temas que me vieram à mente em dois minutos escrevendo. E são diversas notícias como essas que nos afetam e nos deixam com sentimento de impotência e desesperança, “e agora? a gente faz o quê?”, “haverá mundo no futuro?” Antes de tentar responder, acho que faz sentido pensarmos em deslocar um pouco o olhar: o que chamamos de fim do mundo já é estado permanente de vida para muitas outras pessoas: aqueles em vulnerabilidade social, indígenas, negros, população LGBTQ+. Acredito que seja proveitoso ressignificar o fim do mundo e expandir um pouco nossa perspectiva.

o mundo que habita em nós

Débora Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, em Há Mundo Por Vir?: Ensaio Sobre os Medos e os Fins, abordam a questão do fim do mundo de maneira filosófica. A nossa espécie está destinada a acabar, então precisamos ser capazes de pensar no impossível, de forma que só os mitos e a ficção dão conta, a fim de reinventarmos o presente. É essa espécie de ação resoluta, estratégica, quase desesperançosa, mas ativa, que vemos em Bacurau (dirigido por Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles): os moradores da vila atacada que estão isolados do mundo e abandonados por todos, reagem e resistem, mesmo sabendo que as probabilidades são contrárias.

“Ao menos até que tudo acabe, acredito que há, sim, mundo por vir, muitos mundos sempre vindo. […] Muito mais prováveis são esses iminentes fins imperfeitos, a violência das degradações e extinções, que deixam atrás de si um mundo em ruínas, mas também a vida que continua a crescer, e muitas vezes a prosperar de maneiras inesperadas, nessas ruínas. Isso não é apenas o futuro, nós já estamos vivendo em ruínas, alguns países e algumas regiões bem mais do que outras; quase todos os nossos biomas aqui no Brasil, por exemplo, já estão bastante empobrecidos ecologicamente, e ainda temos que lidar com as crises política e econômica, com o caos urbano, com as enormes desigualdades sociais, e tudo mais que já sabemos. Fora esse novo governo fascista que se abateu sobre nós.” — Déborah Danowski

O pano de fundo “em chamas” literal e metafórico em que o Brasil se encontra se junta ao contexto polarizado e as dificuldades de relacionamento que continuam se agravando e forma uma bolha de desesperança, ansiedade e medo que muitas vezes parece difícil de combater. Mas precisamos encontrar nossa maneira de existir no mundo hoje, mesmo diante do cenário diante de nós. Como fazer?

A filosofia como ferramenta 

Acho que ninguém sabe ao certo, e quem diz saber com muita convicção sempre me gera ceticismo, já que não está muito fácil para onde quer que se olhe. Mas a filosofia pode ser uma ferramenta para tentar compreender e atribuir sentido ao que nos rodeia, sem cair em determinadas armadilhas como as resoluções baseadas em discursos meritocráticos, motivacionais e/ou individualistas.

Lili vai aos poucos navegando neste mundo em que vivemos e no seu impacto em nossas vidas através de quatro partes:  “O ‘nós’ que habita o ‘eu’”; “O apagamento do outro”; “Muros e carências” e “O si mesmo no mundo”.

A partir e através dessa perspectiva que olha o eu em conjunto ao nós, somos capazes de nos identificar e a relacionar as nossas próprias experiências. A escritora traz reflexões importantes que nos ajudam a mergulhar no que quer que chamemos de “eu” e sair no “nós”, é a filosofia a serviço de uma humanidade mais compassiva e interessada no outro, no que acontece ao redor, no mundo em que habitamos, nossa única casa.

Mas não adianta mergulhar em si e ficar ensimesmado, como diz Lili. O mergulho em si é mais proveitoso quando supera o individualismo e consegue perceber as imbricações com o entorno. E as reflexões acontecem muitas vezes no silêncio da nossa própria companhia, mas durante a leitura somos instigados a olhar para o que nos rodeia, sejam as relações diretas, seja a natureza, sejam as relações indiretas e fazer contato, repercutir as inquietações e as descobertas com os outros.  Estamos “[…] nos perdendo em um redemoinho de idealizações, imediatismos, comparações, angústias e frustrações, de estarmos míopes para a alteridade e confundindo narcisismo com amor-próprio.”

Ela nos propõe um mergulho nos assuntos que nos rodeiam de maneira curiosa e ativa, buscando descascar as camadas de sentido e as respostas prontas. Poderíamos facilmente voltar às respostas individuais e ao encerramento dentro da bolha confortável do que já conhecemos, mas a autora consegue transpor essa dificuldade bordando uma colcha de reflexões que reforçam o caráter coletivo de nossa construção como seres humanos e pessoas no mundo, assim como o caráter coletivo de nossa vivência; ilustrando com casos pessoais, músicas, poemas e autores como Nietzsche, Byung-chul Han, Clarice Lispector, Lucia Berlin.

“Vamos aprendendo a viver graças ao encontro com o outro. Estar no mundo é encontrar e ser encontrado. É estar envolvido. Estar no mundo é estar acompanhado.” p.26

Além das reflexões sobre a coletividade, também somos instigados a nos perceber com maior afinco, entender de onde os sentimentos e ações estão partindo, confrontar nossas certezas, questionar o que nunca pareceu questionável e principalmente “sentir mais profundamente, com mais graça do que frustração, a experiência de estar viva”.

A leitura é um alento em tempos de incertezas não por mostrar uma solução mágica, mas por instigar a autonomia e a criticidade de pensamento, se aproximar dos questionamentos cotidianos, sem promessas, sem empáfia, mas com muita delicadeza.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

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