Quando Schitt’s Creek estreou na televisão, no início de 2015, com uma pequena produção, ninguém imaginou que uma sitcom canadense faria tanta revolução no entretenimento e conseguiria seu próprio lugar entre as nomeações do Emmy, maior premiação televisiva de Hollywood, quatro anos depois. O segredo de tudo? O amor.
Tudo se inicia no momento em que a família Rose, milionária no ramo de videolocadora, descobre que perdeu tudo e se vê obrigada a se mudar para a pequena cidade no interior do Canadá, Schitt’s Creek, lugar que Johnny Rose (Eugene Levy) comprou para seu filho, David Rose (Dan Levy), como uma piada no seu aniversário de 21 anos. O seriado se destaca das outras comédias ao focar nos relacionamentos entre os personagens, seja dentro da família Rose ou entre a família e os outros cidadãos de Schitt’s Creek, e a importância de criar raízes e se envolver em uma comunidade.
Em sua temporada final, lançada em 2020, nós acompanhamos os personagens em lugares totalmente diferentes de onde eles começaram. Nós sabemos que as relações que eles criaram ao longo desse tempo não podem mais ser quebradas; quando eles mais precisaram, as pessoas da cidade os ajudaram e também lhes deram os tapas de realidade quando necessário; se ajudaram a crescer e descobrir verdades sobre suas essências e quem eles queriam ser. Laços assim não são desfeitos facilmente.
Atenção: esse texto contém spoilers!
Família Rose
A família Rose vive em um mundo onde o status importa, o mundo superficial da alta sociedade. Eles não são pessoas ruins, porém perderam há muito o senso de comunidade, família e o prazer do contato caloroso com o mundo real. David e Alexis (Annie Murphy) nunca conheceram outra vida além daquela proporcionada por todo o dinheiro da família e, às vezes, nem o céu é o limite para eles que não conhecem a realidade ou possuem responsabilidades, dado que Johnny e Moira (Catherine O’Hara) ainda os chamam de “crianças” mesmo que ambos já tenham trinta anos de idade.
Vivendo em uma mansão, eles conseguiam passar dias sem ter contato outro membro da família. Enquanto Moira focava em sua carreira de atriz de novela de sucesso e Johnny comandava o império da família, seus filhos foram criados por Adalina, a babá dos Rose. Depois de crescidos, David e Alexis passaram a se aventurar sozinhos pela vida, aprendendo por conta própria e sem muita ajuda e apoio por parte dos pais além do dinheiro. Ao vermos Alexis contar sobre suas aventuras que vão de ter o seu primeiro beijo com Jared Leto a ser refém de piratas somali em um navio, percebemos que Moira e Johnny nunca tiveram contato com a vida de seus filhos ou sabem muito sobre eles.
Quando a família Rose se muda para Schitt’s Creek e passa a viver em dois quartos conectados em um motel, Johnny e Moira percebem que não conhecem seus filhos e se questionam, de tempos em tempos, se eles são pais ruins ou se faltaram em algum momento com seus filhos. Obrigados a passar mais tempo uns com os outros e enfrentando em conjunto a dificuldade de se adaptar em um ambiente tão diferente daquele com que estão acostumados, a rotina e a dinâmica da família começa a mudar e cada um deles aprende que nunca é tarde para criar laços — e tudo isso acontece em cenas que nos fazem rir e chorar, mostrando como os Rose ficam desconfortáveis quando demonstram seus sentimentos ou recebem elogios e palavras de incentivos uns dos outros.
Dentro da família é importante ver o desenvolvimento da relação entre Alexis e Moira. Sendo sua única filha, Alexis nunca teve uma relação próxima com a mãe ao passo que Moira e David têm uma relação mais próxima, apesar de não menos dramática. Moira, em um ponto, revela que não sabe nem o nome do meio da própria filha. Conforme elas se aproximam e ficam mais presentes na vida do outra, Alexis procura mais a aprovação da mãe ao terminar o ensino médio e ter uma formação profissional. Tanto Alexis quanto David, nunca escutaram uma palavra de orgulho vinda dos pais ou lembram de momentos em que eles estiveram realmente presentes em suas vidas, por isso, quando Alexis vê a mãe presente em sua formatura, percebemos que as duas estão no caminho certo e que qualquer dúvida que uma tem do amor da outra desaparece.
O interessante das relações entre a família Rose são os pequenos gestos. Eles não se sentem confortáveis em falar sobre sentimentos, porém são os pequenos atos que mostram como se importam uns com os outros: os sorrisos involuntários de satisfação, o comparecimento em momentos importantes, o apoio silencioso que um dá para o outro apenas estando lá — tudo isso nos mostra que, mesmo sem expressar verbalmente, eles se importam, se amam e sempre estarão lá quando a família precisar.
Alexis Rose e Ted Mullens
Apesar de parecer que eles não têm nada em comum, Alexis e Ted (Dustin Milligan) formam um casal que a gente sabe que vai dar certo. Alexis se parece com todas as garotas ricas de reality show que tem a Califórnia como pano de fundo e leva na bagagem a experiência frustrada de ser cantora e protagonista do seu próprio programa de televisão. Ted, enquanto isso, é o único veterinário (e médico, em geral) da cidade, que viveu e cresceu ali e tem um sonho grande, mas, por enquanto, está feliz ali.
No final da primeira temporada, quando a família Rose acha que finalmente irá embora da cidade e voltará para os seus dias de glória, Alexis é pedida em casamento por Ted. Naquele momento, ela não entende suas responsabilidades ou o peso de suas palavras e, ao querer sair daquela situação, diz que aceitaria se eles não estivessem indo embora da cidade. Então, quando ela descobre que eles permanecerão em Schitt’s Creek, Ted acredita que eles estão noivos e esse segundo término é pior do que o primeiro.
É preciso que Alexis cresça e construa um rumo para a sua vida, dar um propósito para ela e estar finalmente feliz com o que conquistou para que perceba que a única coisa que falta é Ted. Em uma cena digna das comédias românticas, Alexis lidera a Noite dos Solteiros na cidade e então se declara para Ted na frente de todos. O importante é ver como os dois se reencontram e ficam juntos, não porque eles se completam ou são a resposta da felicidade do outro, mas porque um apoia o outro em suas loucuras e incentiva o outro a sempre buscar o que desejam. Alexis já teve inúmeros casos e namorados que foram tóxicos e só se importavam com o próprio status, então vê-la com Ted é gratificante.
O relacionamento dos dois se desenvolve e temos a oportunidade de ver a maneira como eles crescem dentro do relacionamento porque estão crescendo fora dele também. Entre trancos e barrancos, nós sabemos que eles vão sempre se encontrar. Quando Ted consegue o emprego que tanto queria na ilha Galápagos é preciso muita maturidade tanto de Alexis quanto de Ted para aceitar o destino do casal. Em um dos pontos altos da última temporada, vemos Ted e Alexis decidirem se separar, não porque eles não se amam mais, mas exatamente porque se amam. Um ajudou o outro a chegar onde precisavam e queriam chegar. Não é comum vermos na televisão um término assim, em que os personagens terminam um relacionamento amigavelmente sem traições, brigas ou desculpas para fazer esse momento triste mais fácil. Ambos decidem que chegou a hora de seguir em frente por ora, em uma conversa honesta e que nada tem além de puro amor.
Stevie Budd e David Rose
O relacionamento entre Stevie (Emily Hampshire) e David não começa do melhor jeito. Com temperamentos muito parecidos e um estranhamento inicial, é apenas quando os dois compreendem que são a distração um do outro em Schitt’s Creek que as coisas começam a melhorar.
Na primeira temporada, eles embarcam em uma amizade colorida e, no fim, quando a família Rose acha que vão embora da cidade, David convida Stevie para ir junto com ele para Nova York. Stevie, acreditando que o convite é feito de forma romântica, fica de coração partido quando David diz que encontrou um apartamento de dois quartos, o que significa que eles não se mudariam para a outra cidade como um casal. De alguma maneira, tanto Stevie quanto David percebem que um é a passagem do outro para fora de Schitt’s Creek, mesmo que de forma figurada, e que eles se apoiam para não afundarem na rotina enfadonha da cidade.
A relação entre os dois é mais do que a relação fraternal, sentimos que eles são alma gêmeas. David nunca se sentiu confortável em se abrir com as pessoas, porque quanto mais ele falava sobre sua vida mais as pessoas se afastavam, e Stevie é a primeira pessoa que conhece sua história e ainda está ali para ajudá-lo e apoiá-lo. Com um humor sarcástico compartilhado por ambos, com um atiçando o outro, eles sabem que, no fundo, se amam.
David Rose e Patrick Brewer
O romance entre David e Patrick (Noah Reid) é desenvolvido na metade da série, quando nós já aprendemos sobre a pansexualidade de David e entendemos como a cidade se afasta do estereótipo de cidade pequena conservadora que sempre esperamos. É interessante ver um seriado de comédia que não foca suas piadas e alívio cômico em questões de gênero, identidade, sexualidade e assuntos que muitos comediantes dizem que não se dá para fazer comédia sem. Schitt’s Creek nos prova que dá sim para fazer comédia de alta qualidade sem ofender ninguém e ainda celebrar o amor de todas as formas.
Patrick é novo na cidade e acompanhamos o momento em que ele se apaixona por David, descobrindo como um é perfeito para o outro. Quando Patrick precisa contar para seus pais que é gay, é possível entender o medo que ele sente de decepcioná-los, sentimentos que passam pela cabeça de toda pessoa LGBTQ no momento de se assumir para a família. Todos nós temos medo de decepcionar nossos pais e aqueles que cuidaram de nós visto que queremos que eles sintam orgulho das pessoas que nos tornamos, sabendo que estamos fazendo as escolhas certas; então quando Patrick se muda para a cidade após terminar o noivado com Rachel (Stacey Farber) e se envolve com David, é fácil compreender seu medo de magoar os pais. Quando ele vê que seus pais lhe amam independentemente de com quem ele está se relacionando, de suas escolhas profissionais e onde ele mora, o que resta ali é o amor e liberdade para ele seguir com a sua vida sem a dúvida de que está decepcionando-os.
Ver um romance entre dois homens na televisão em que eles são livres para amar e se comportarem como qualquer outro casal sem o enredo da homofobia ou julgamento pela sua sexualidade é o que faz o seriado se diferenciar. Em Schitt’s Creek a homofobia não existe, porque ela não deveria existir: com David e Patrick entendemos que amor é amor e amor sempre atrai mais amor. Poder assistir pessoas se amando e vivendo suas vidas sem medo é especial, mesmo que utópico, mas seriados são para sonhar e escapar da realidade e Schitt’s Creek nos oferece o espaço para encontrar pessoas e criar uma comunidade em que possamos nos apoiar no outro sem medo.
Na última temporada, nós testemunhamos a celebração desse amor com o casamento de David Rose e Patrick Brewer. Patrick é a pessoa perfeita para David e vice-versa, um completa o humor do outro e se entendem de uma forma única. Para celebrar a última temporada, um outdoor com uma imagem do casal se beijando foi colocado em cidades nos Estados Unidos: mais do que uma promoção para a série, o outdoor também é símbolo de tudo o que a série acredita, que todos nós devemos amar e merecemos ser amados. Um lembrete de que somos vistos.
Stevie Budd e a família Rose
Quando chegam na cidade, a família Rose não quer saber de nada que envolva Schitt’s Creek ou seus moradores. Por meio de David, Stevie foi derrubando essa barreira e conquistando seu espaço no coração e na vida do resto da família. De todos os moradores dali, Stevie talvez seja a que mais se pareça com a família: alguém que não pertence à cidade, que não sabe muito bem como sair dali mas, por mais que não queira admitir, gosta daquele lugar no fim do mundo. Nós não conhecemos a família de Stevie, mas sabemos que lhe falta algo e ela encontra isso com os Rose.
Quando Johnny decide fazer negócios com Stevie, dona do motel da cidade, eles desenvolvem o seu relacionamento. Antes, Johnny não gostava da atitude de Stevie, porém, um passa a admirar o outro. Johnny vê em Stevie a mesma pessoa que ele era quando jovem e começava o seu negócio de videolocadora e Stevie, perdida no que quer para o seu futuro e se ela tem o potencial para chegar lá, procura a aprovação e apoio em Johnny como se ele fosse o seu mentor. Mais para o final da série nós entendemos que Johnny já considera Stevie como uma filha, ele se emociona com suas vitórias e conquistas e fica triste quando ela vai embora e torce para que ela volte ao mesmo tempo que quer que ela seja bem sucedida no que fizer, como qualquer pai apreensivo com as idas e vindas de seus filhos.
A relação mais surpreendente talvez seja a de Stevie com Moira Rose. Na quinta temporada, Moira e Joselyn (Jennifer Robertson) fazem uma produção local de Cabaret e Moira vê em Stevie a oportunidade perfeita para interpretar Sally, a protagonista. De alguma forma, Moira entende Stevie e talvez também se veja um pouco nela, alguém que viveu sua vida toda em uma cidade pequena e é grande demais para permanecer ali. É com a produção teatral que Stevie toma coragem para explorar suas possibilidades e o mundo fora de Schitt’s Creek. No dia da estreia, Stevie tem a impressão de que todo mundo está crescendo a sua volta com o noivado de David e que sua vida sempre será atrás do balcão do motel, porém Moira diz que não está preocupada com ela e lhe dá, em suas palavras difíceis e teatrais, o incentivo necessário para que Stevie se sinta amada e com o apoio necessário para seguir em frente, assim como todo mundo.
Ao longo da série, Stevie passa de uma simples atendente com humor ácido para alguém que pertence ali com os Rose. Com ela, eles formam uma nova família em um lugar que eles nunca imaginaram estar. No último episódio do seriado, a última cena é reservada para o adeus à família. Vemos David e Patrick, recém-casados, Alexis e, ao seu lado, está Stevie. Ela faz parte da família e eles se amam. Ao longo dos três anos (e seis temporadas), eles cresceram juntos e aprenderam com seus erros e acertos. Ela irá sentir falta deles e eles vão sentir sua falta onde quer que cada um esteja, mas o que eles construíram dificilmente será quebrado.
Às vezes, parece que estamos cada vez mais longe um dos outros e os tempos não estão ficando mais fáceis, mas Schitt’s Creek nos ensina que com amor nós vamos longe e podemos superar qualquer coisa com uma rede de apoio e nossa comunidade. Nós não somos muita coisa sem outras pessoas, sem confiar em quem nos quer bem. Amor é amor, mas o amor também é carinho e força e luta. Que aprendamos com Schitt’s Creek e amemos todos os que estão do nosso lado.
** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!