Categorias: LITERATURA

As Júlias de 1984 a 2022

“Se você quer mudar algo, antes
precisa saber como as coisas
funcionam. Todo ativista deveria
saber disso, E você aprende como
coisas funcionam
as ao praticá-las” — Nadya Tolokonnikova

A partir do momento que fazemos o que Nadia Tolokonnikova faz, que é entender como as coisas funcionam, começamos a movimentar. Teremos, então, como padrão o homem rico, europeu, heterossexual, pai de família e cristão. É para esse tipo de figura que as regras do sistema operam. É esse tipo de padrão que 1984, de George Orwell, nos faz olhar de uma maneira crítica.

A história se passa no ano de 1984 como um futuro distante, visto que foi escrito em 1949. Mas é uma projeção tão bem feita que, quando lemos o livro, temos a sensação de que ainda é uma obra do futuro, ambientada em uma Londres completamente bombardeada. Há o protagonista que resolve se rebelar contra o sistema em que vive: Winston é um rebelde e não um revolucionário, assim como Júlia. A obra é uma sátira política, ou seja, comentários que criticam uma instituição, um determinado conceito, forma de organização social. É necessário entender o controle, a vigilância, o totalitarismo, a guerra, a falta de liberdade; caso contrário, passa batido a censura, veneração ao líder, os expurgos e tudo mais. E essa sátira política, por comentar estruturas sociais muito profundas, são coisas que reverberam na nossa vida, que até hoje vemos ocorrer: a burocratização excessiva, o tipo de vida em que se vai de casa para trabalho e do trabalho para casa, não poder se relacionar com certas pessoas, a maioria da população vivendo na periferia e poucas pessoas morando no centro e trabalhando como funcionário público de um ministério, etc., quando nos identificamos com a distopia, quando há a sátira à vida cotidiana a cada segundo.

1984
1984 (1956)

Iniciando, o primeiro a se notar é Winston Smith que, ao contrário de Júlia, tem nome e sobrenome. Outro ponto a se pensar é o fato de que o primeiro nome e o sobrenome de Winston tem muito a ver com o pseudônimo de Orwell: um sobrenome extremamente comum na Inglaterra, Smith, e depois Winston, que era o nome do primeiro ministro à época em que o livro foi escrito. Analogamente, seria como Jair Silva (Orwell, me perdoe); é a questão do impacto, pegar o nome da figura que mais chama atenção com o sobrenome mais comum, ao contrário de Júlia, que é somente Júlia, como se fosse qualquer mulher, o retrato do apagamento das mulheres na sociedade.

Ambos são funcionários públicos: trabalham no Ministério da Verdade, porém Winston trabalha falsificando documentos, já Júlia trabalha na área da ficção. Aqui temos outro tópico significativo, em que é da prática do homem trabalhar com os fatos, com as questões, e a mulher com a fantasia, “historinhas”.

Os dois se rebelam contra o sistema, todavia Winston o faz de ordem muito mais abstrata: escreve um diário, organiza o pensamento de uma maneira que não era permitido. Por outro lado, Júlia vai se rebelar fazendo sexo com várias pessoas, ato que só era permitido com o fim da procriação. A rebeldia está em suas ações: ela passa batom, contrabandeia chocolate, sabe quem são as pessoas, sabe muito bem como o sistema funciona e quais são regras escolhe burlar.

“Não sabia o nome dela, mas sabia que ela trabalhava no Departamento de Ficção. Presumia — já que ele às vezes a vira com as mãos cobertas de óleo e carregando uma chave inglesa — que ela fazia algum trabalho mecânico em uma das novas máquinas de escrever romances. Era uma moça de aparência provocadora, com cerca de vinte e sete anos, cabelo grosso, rosto sardento e movimentos atléticos e velozes. Uma faixa escarlate estreita, símbolo da Liga Juvenil Antissexo, dava várias voltas ao redor da cintura de seu macacão, apertada o bastante para destacar a forma dos seus quadris. (…) Ela com certeza tinha uma esperteza prática que Winston não possuía (…) Valia a pena, ela disse, era camuflagem. Quem mantiver essas pequenas regras, pode romper as grandes.” (p. 16)

1984
1984 (1984)

Júlia entra na liga antissexo, que eram as pessoas que faziam votos para não fazer sexo, justamente para entender como as coisas funcionavam e quebrar isso. Quando falamos de prática, falamos de regras que parecem muito imediatas, mas é o que está ao alcance de Júlia fazer. Em 1984, há a divisão de classes, como é comum nas distopias: Ideais (Big Brother), Elite (partido, O’Brien), Classe Média (Winston e Júlia) e os Proletas (85% da população).

Orwell faz uma jogada muito bem feita ao utilizar a mentalidade da Classe Média, que tem a sensação de pertencimento a uma Elite, só porque é um funcionário público com uma pequena estabilidade. Entender a divisão do trabalho é entender as várias camadas na nossa sociedade que funcionam para nos afastar dessa consciência. O trabalho que exercemos no sistema capitalista é, por excelência, alienado, ou seja, não temos noção de sua totalidade.

Ademais, além de fazer a divisão social do trabalho, é importante frisar a divisão sexual do trabalho. Além de dividir o trabalho em classes sociais, existe uma divisão sexual, ou seja, uma hierarquização entre trabalho masculinos e trabalhos femininos. O homem como uma pessoa que circula no mundo social e a mulher que fica como a doméstica. Não é à toa que Julia, mesmo sendo uma funcionária pública, vai trabalhar na ficção e não numa parte mais abstrata, intelectual, o estereótipo de que a ficção é coisa de “mulherzinha”, e o homem, bruto, machão, não se preocupa com esse tipo de coisa.

O trabalho do homem também vale mais do que o trabalho de uma mulher — e aí temos as diferenças de salário, oportunidade, várias jornadas de trabalho, o cuidado de todos os afazeres da casa, incluindo, ironicamente, o marido. Silvia Federici, um importante nome no movimento feminista que estuda justamente a questão da carga de trabalho a mais dada às mulheres, possui um texto chamado “O que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago”, no qual defende que as tarefas realizadas no âmbito doméstico também deveriam ser remuneradas. “(…) A ideia era chamar a atenção para o fato de esses afazeres serem uma forma de trabalho, embora a sociedade não os veja dessa forma (…)”, ela escreve, e que a luta pelo direito ao aborto seja feita junto daquela pelo direito de ter filhos, criticando, ainda, o termo minoria e atacando a exploração da mulher como mão de obra barata.

Júlia é uma contraposição, sem informações de onde mora, se é casada, viúva ou divorciada, se tem mãe. Só sabemos as coisas que ela faz com Winston, homem, que tem mais a ver com a parte afetiva e cotidiana do trabalho deles. Não temos acesso a nenhum outro aspecto da vida de Júlia, mostrando que há um narrador onisciente seletivo.

1984
1984 (1984)

“Winston foi o primeiro a acordar. Hoje, pensou ele, não havia mais como sentir um puro amor ou um puro desejo. o. Nenhuma emoção era pura, pois tudo estava misturado ao medo e ao ódio. A união dos dois fora uma batalha; o gozo, uma vitória. Era um golpe assentado contra o Partido. Um ato político.” (p.193)

“Um ato político” justamente porque só poderia ter esse envolvimento amoroso espontâneo, só poderia haver sexo para fins reprodutivos.

“Desobedecer é inventar a vida. Essa ordem, a patriarcal da qual nos ajustamos, nos expropriou do nosso corpo, de nossos direitos, e nos considerou menos dotadas racionalmente, menos capazes de representatividade política e, por isso mesmo, mais vulneráveis a muitos tipos de violência. Essa ordem patriarcal precisa morrer para que formas mais libertárias surjam.”Debora Diniz e Ivone Gebara (2022)

Como estamos falando dos anos 40, é importante entender onde a obra se insere dentro das ondas do feminismo. Temos a primeira onda (1848-1920), na qual se destaca o movimento sufragista, ou seja, a grande reivindicação é o direito (de algumas camadas) ao voto. É um movimento ainda muito branco, europeu e feito por mulheres de classe média. A segunda onda, nos anos 60-80, traz à tona, principalmente, questões relacionadas aos direitos reprodutivos — o direito do uso da pílula anticoncepcional, ao aborto seguro (até hoje um assunto não resolvido). Já na terceira onda, temos a Interseccionalidade proposta por Judith Butler em 1991, e a reivindicação das mulheres do feminismo negro. O momento atual, caracterizado pelo ativismo digital e a ascensão de reflexões em plataformas on-line, como o movimento #MeToo, é considerado por algumas autoras como uma quarta onda, embora não seja uma unanimidade (existem autoras que discordam de tal designação).

1984 (2017)

1984, portanto, está inserido entre o final do período sufragista, mas nem perto dos direitos reprodutivos. É possível perceber que é um aspecto chocante da obra, para os padrões do período em que foi escrito, que uma personagem faça sexo por prazer (é de se imaginar os leques da aristocracia inglesa balançando em tal choque). E aí temos a relação de Júlia com outras figuras no romance, como, por exemplo, O’Brien, por quem vai ser torturada. Ambos são opostos a Winston, mas há um fascínio de Winston por O’Brien. Júlia e Winston se igualam na tortura, e, sendo assim, o vencedor é o sistema.

“Acho que sou mesmo esse tipo de garota, para quem vê de fora. Faço trabalhos voluntários para a liga juvenil antissexo. Horas e horas colando a droga da baboseira deles por todos os cantos de Londres. Nas paradas, sou uma das que sempre carregam as faixas, sempre com cara de alegre. é o que eu digo ‘Nunca deixe de berrar junto com a multidão’. Só assim você estará em segurança.” (p.124)

Se Júlia se afastar no meio dessa multidão reacionária que reafirma os valores do partido, ela vai estar correndo perigo. Então esse é um dos grandes disfarces que ela tem para conseguir navegar nesse sistema, assim como muitas usam diversos chapéus no dia a dia para conseguirem ter o mais próximo da “paz”, ainda que “paz é guerra”.