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O simbolismo da cor em O Papel de Parede Amarelo, de Charlotte Gilman

A cor amarela é carregada de ambiguidades. Enquanto pode representar otimismo e luz, tal como um dia ensolarado, também pode, em certas combinações, representar sentimentos negativos, como o medo, a insegurança, e até mesmo a traição (como infelizmente sentimos ao vê-lo, hoje em dia, ao lado do verde). Em setembro, observamos a cor brotar em ipês por todo o Brasil, mas ela também protagoniza uma campanha em prol da saúde mental, cujo laço amarelo homenageia a triste história do jovem Mike Emme. Tantas ambiguidades e, principalmente, o sentimento de medo são também evocados no conto O Papel de Parede Amarelo, um terror psicológico carregado de sinestesia, de Charlotte Perkins Gilman.

Com tons autobiográficos, pincelados por uma escrita que lembra um diário íntimo, O Papel de Parede Amarelo foi publicado, pela primeira vez, em 1892, pela New England Magazine. Composto por cerca de 6.000 palavras, a sua narrativa sucinta é extremamente descritiva e aterrorizante, ao representar, por meio de sombrias metáforas, o longo processo de adoecimento de sua narradora. A partir da produção da escritora estadunidense, somos levados a confrontar as ideias antiquadas de “histeria”, que diminuem a relevância dos fatores de adoecimento mental das mulheres e constatamos, ao fim, que os gatilhos que manipulam a mente não são apenas predisposições psíquicas, mas são também sociais (sobretudo, frutos da desigualdade). Por todos esses motivos, e por se misturar tanto ao sofrimento vivenciado pela autora, esse conto, muito além de um terror psicológico, ganha poderes de denúncia.

Sua narrativa é feita em forma de diário, como dito anteriormente. Ao lermos, nos tornamos “confessores”, “confidentes” da escrita furtiva de uma narradora que está impedida de escrever — seu principal prazer e ofício. Nossa heroína não nos confidencia o nome, e parece ser um reflexo de uma existência apagada, que corresponde a cargos: esposa de alguém, mãe recente, cunhada de alguém e, por último, talvez esquecido por muitos, escritora. O que ela nos apresenta, de início, é um contexto de férias de verão, que na verdade se trata de um retiro para curar seus sintomas de “histeria”, tratados pelo marido, um médico muito renomado.

Nossa heroína portanto já traz um antigo processo de adoecimento mental, e o retiro em uma velha mansão, afastada do centro de sua rotina conturbada, aparece como o principal medicamento a ela receitado. De início, o local alugado desperta pressentimentos ruins, como se o ar assombrado que dele emana fizesse parte do seu charme e da sua estética. A desconfiança é vista com escárnio pelo esposo, que no conto materializa aquela clássica e machista dicotomia entre “razão” e “histeria” (conceitos absurdos que imperam até hoje e atribuem a razão ao homem e a “emoção descontrolada” à mulher).

“O John é extremamente prático. Ele não tem qualquer paciência para os assuntos da fé, tem um horror imenso da superstição e troça abertamente de qualquer conversa acerca de coisas que não se possam sentir nem ver nem traduzir em números. […] Ele é muito cuidadoso e terno, não me deixa dar um passo sem que eu siga uma direção específica.”

O “carinho” e o “cuidado” que o marido médico oferta a ela é traduzido como pura e simples manipulação. Sem ouvir os anseios e medos da pessoa em sofrimento mental, a melhora torna-se cada vez mais distante da personagem, que sente sempre que suas opiniões e desejos não são válidos, apenas criações de uma mente perturbada. Seu sofrimento é negligenciado até o ápice do conto, como se um marido racional evitasse, a todo custo, aceitar que havia “escolhido” uma esposa com “desvios mentais”.

“Se um médico de grande reputação, para mais um marido, convence amigos e familiares que nada de grave se passa realmente conosco senão uma temporária depressão nervosa — uma ligeira tendência histérica — que poderá uma pessoa fazer?”

A sua cunhada, descrita como “a dona de casa perfeita e entusiasmada”, que “não deseja outra profissão”, põe fé nas palavras do irmão e passa a fiscalizá-la, afirmando que foi a escrita que lhe fez ficar doente, como se as palavras pudessem criar perturbações e alucinações. Nesse reflexo distorcido, é possível ver que a personagem se sente frustrada pela vida doméstica, e por não conseguir melhorar por conta própria. Mas, diferente de todos, acredita fielmente que o trabalho é capaz de fazer com que ela melhore. É por isso que em diversos momentos do conto, a escrita é abruptamente interrompida, revelando uma narradora temendo ser pega no ato de usar as próprias palavras.

Nossa personagem sem nome é medicada pelo marido, e segue uma rotina rígida de “fosfatos e fosfitos”, constantemente deitada e “proibida de trabalhar até a melhora”. A proibição da escrita, transgredida em forma de páginas desesperadas, causa-lhe um imenso sentimento de frustração, o que piora o seu estado. E, por estar quase sempre deitada, ela começa a reparar no papel de parede amarelo, na sua mudança de cores, e no que ele aprisiona naquele antigo quarto de criança. A descrição da cor e do padrão do papel de parede no quarto infantil, agora ocupado pelo casal, causa extremo desconforto. É “revoltante, repelente”, envelhecido pela ação do tempo e do sol, causando o ar de sujeira.

“É suficientemente vago para confundir o olhar que o siga, mas suficientemente nítido para irritar constantemente e provocar uma estudiosa atenção, e, se percorrermos essas incertas curvas imperfeitas, por algum tempo, reparamos que, subitamente, estas se suicidam […].”

A escolha de palavras nunca é por acaso. O papel de parede amarelo é assemelhado à confusão, ao desespero, aos sentimentos que a narradora nutre enquanto tenta melhorar. E talvez não seja por acaso ser o quarto infantil o causador dos seus maiores temores, quando percebemos, por suas palavras, como a maternidade lhe é um assunto sensível. Aqui, a cor amarela incorpora seus piores significados, e o seu tom sujo, envelhecido, desperta uma série de sentidos estranhos à personagem, que sente ser capaz de sentir até mesmo o “cheiro” da cor, um odor extremamente desagradável.

Fotos da escritora Charlotte Perkins Gilman

A metáfora das grades

A presença do papel de parede amarelo em sua vida vai se tornando cada vez mais sufocante. E, como se enxergasse o sufoco e a prisão em seu reflexo, o ponto principal da sua ameaça é a sua mudança a partir da luz do luar. Os padrões irregulares do papel, segundo a autora, tornam-se grades à luz noturna. E, dentro dessas grades, há uma mulher presa — às vezes, várias — que rastejam em busca de sua liberdade.

“Por vezes, há uma grande quantidade de mulheres, por detrás; outras, apenas uma, e ela rasteja rapidamente e o seu rastejar faz tremer todo o papel. […] E ela está sempre a tentar trepá-las para se libertar. Mas ninguém poderia trepar e sair desse padrão — estrangula tanto as pessoas; acho que é por isso que tem tantas cabeças.”

Ela sente medo por elas. Ela sente que é uma dessas mulheres, e somente a destruição do papel de parede amarelo pode garantir que ela não volte mais para lá. Em tal ponto da narrativa, sem sentir que pode confiar em alguém, nossa heroína está entregue às próprias paranoias, mas a beleza de suas palavras constrói uma grande metáfora por trás dessas grades, que sufocam em um certo padrão de vida.

Esse conto tem um grande poder de despertar nossa empatia, principalmente quando identificamos os sentimentos de decepção que despejamos em nós mesmos quando não conseguimos manter o padrão de um ritmo, quando não conseguimos fingir que está tudo bem. O fato de não poder confiar a ninguém suas palavras, apenas a seu diário, mostra o quanto a comunicação é importante para a manutenção da saúde mental. Afinal de contas, ela está sofrendo por não conseguir ser quem verdadeiramente é, embora toda a responsabilidade de sua cura esteja depositada nas suas costas.

“Disse-me que apenas eu posso me ajudar a mim mesma a sair deste estado, que devo usar a minha força de vontade e autocontrole e não permitir que fantasias patetas me dominem.”

Tons autobiográficos

Não raro vemos o arquétipo da mulher insana ressurgir na sociedade. Seja após um término, ao virar “a ex louca”, ou quando assume cargos de liderança, como a presidência de um país. Quando usa tons ríspidos, ou não está sempre sorrindo, todas as suas atribulações são atribuídas ao seu ciclo menstrual, ou à sua vida sexual, geralmente envoltos no corpo. Portanto, a força de denúncia desse conto está em mostrar que os fatores sociais são extremamente influentes na saúde mental feminina.

A saúde mental de Charlotte Gilman não passou impune desses gatilhos mentais. Durante a vida, passou por problemas familiares ao não se adaptar ao ambiente doméstico, foi internada numa clínica, recebendo como prescrição médica o abandono do ofício da escrita e a completa dedicação ao lar. Rasgando as paredes que a aprisionavam, a autora lutou até o fim contra tudo que tentasse lhe sufocar. O Papel de Parede Amarelo é o seu grito contra os métodos antiquados que lhe receitaram, denunciando até mesmo o seu antigo psiquiatra, Weir Mitchel, cujo nome aparece no conto rodeado por uma atmosfera de terror em prescrições terríveis e violentas.

No fragmento abaixo, é possível imaginar se a tal “amiga” que passou pelos métodos desse doutor não seria a própria escritora, afinal o limite entre autor e obra, em certos momentos, não é muito definido. Do mesmo jeito nossa heroína, por vezes, sente que ela é a mulher por trás do papel de parede, que se mantém quieta, rastejando durante o dia, e durante a noite luta para sair.

“O John disse que, se eu não melhorar, me enviará para o Dr. Weir Mitchel no Outono. Mas eu não quero, de modo nenhum, ir para lá. Tive uma amiga que esteve, em tempos, nas suas mãos, e ela me diz que ele é tal e qual como o John e como meu irmão, só que ainda pior do que eles.”

Talvez seja o entre-lugar da ficção e da autobiografia e a linguagem íntima de um diário que tornam essa história verdadeiramente aterrorizante, pois mesmo que cause a dúvida entre paranoia ou assombração, ela é extremamente real. E, apesar de difícil de digerir, suas palavras sempre me evocam essa época do ano, talvez pelo símbolo que o amarelo tem em sua narrativa, ou então pelo retrato de como os transtornos mentais, sobretudo de mulheres, foram negligenciados. Faz pensar, por fim, em quantas podem estar se rastejando em seus quartos amarelos, escondidas por estereótipos de “surtadas”, “malucas”, ou “histéricas”, e traz um lembrete de que lutar contra as desigualdades deve sempre fazer parte da política de saúde mental.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

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