Categorias: LITERATURA

Controle: crescimento e sexualidade em forma de romance

Controle, publicado pela Companhia das Letras, é o primeiro romance da gaúcha Natalia Borges Polesso, autora de Amora, e conta a história de Maria Fernanda, uma menina ativa que desenvolve epilepsia depois de um acidente de bicicleta na infância e precisa redefinir sua vida em torno da sua nova condição. Ou essa seria a versão mais óbvia da sinopse.

Não existiria melhor título para o livro do que Controle, sendo essa justamente a espinha dorsal e a chave de leitura de toda a história. Durante a infância, Maria Fernanda (ou Nanda, como é conhecida) é uma criança muito ativa e destemida, que enfrenta e desafia seus próprios limites físicos junto com a melhor amiga, Joana. Apesar dos experimentos infantis, Nanda sempre se mostra extremamente cuidadosa para manter o controle, garantir que tudo permaneça sob seu domínio. Até que ela perde esse controle, de uma forma muito física e ao mesmo tempo muito simbólica.

O fim da infância de Nanda é marcado justamente pelo fim de sua ilusão infantil de controle. É quando ela e Alexandre, um de seus melhores amigos, resolvem criar uma pista de bicicross em um terreno baldio que a menina entra em contato com as ambiguidades e desconfortos da vida adulta. Após uma volta perfeita, ela vê Joana e perde o controle (da bicicleta, mas não só), derrapa e bate com a cabeça no chão. Mais tarde, constata-se que ela sofreu uma concussão e começam aí as crises epilépticas que vão acompanhar a personagem pelos anos seguintes da sua vida.

A partir desse momento, toda a vida da protagonista é definida com base e ao redor dos seus ataques. Ela perde a autonomia, a ousadia, a liberdade e a coragem. Incapaz de fazer qualquer coisa sozinha e envergonhada das crises, Nanda abandona a escola, se afasta dos amigos e passa a viver uma vida só e amargurada, definida pela tristeza e pela culpa. Culpa pelos gastos que seus pais têm com seu tratamento e seus remédios, culpa porque a vida deles agora gira em torno dela, culpa por se sentir um peso morto, culpa pela própria amargura, culpa por não ter coragem de lidar com os próprios sentimentos e assumir o controle da própria vida. A partir desse breve momento de descontrole que redefine toda sua vida, a criança corajosa e espontânea que Maria Fernanda era se transforma em uma mulher medrosa e insegura.

“Ninguém perguntava como eu me sentia. Eu não sabia responder com precisão. E as pessoas acreditavam na precisão dos sentimentos. Estou feliz. Estou triste. O que aquelas palavras queriam dizer, afinal? Estou com três quilos de areia molhada no estômago.”

Não precisa ser nenhum gênio ou mestre da interpretação para entender logo que cara que Controle é uma grande (ou não tão grande assim, considerando que o livro tem apenas cerca de 170 páginas) metáfora para a descoberta da sexualidade da personagem principal. O momento em que o acidente acontece e todos os ataques começam é, justamente, o momento em que Joana surge na pista, e indica uma mudança na forma como a personagem enxergava a melhor amiga até então. Não tem nada de errado, é uma metáfora interessante.

Controle - Natalia Borges Polesso

Essa descoberta de um detalhe tão fundamental de si mesma e, ao mesmo tempo, tão definidor da forma como uma pessoa experimenta o mundo é a centelha que faz com que Maria Fernanda deixe o mundo previsível e protegido da infância e comece a entrar na fase adulta, em que muitas coisas estão de fato além do nosso controle. A culpa que a personagem sente ao longo de todo o livro tem, claro, relação com todos os fatores que eu já listei, mas tem uma relação implícita muito forte também com essa questão da sexualidade, de se descobrir não-heterossexual em um mundo heteronormativo.

A culpa não é um sentimento incomum para quem se descobre LGBT. Todas somos criadas com muitas expectativas e dentro de normas sociais muito rígidas que incluem a heterossexualidade. Ninguém é estimulado a questionar esse ponto da própria personalidade em nenhum momento da vida; a heterossexualidade é o padrão, a única possibilidade; é compulsória, é “natural”. Mesmo que a família não seja ostensivamente homofóbica/lesbofóbica, ninguém é educado no vácuo, e a descoberta de uma não adequação a uma instituição tão fundamental da sociedade moderna é uma descoberta pesada de se carregar, especialmente tão jovem. Tudo isso envolve a quebra de muitos paradigmas, de muitas imagens mentais criadas e alimentadas desde o nascimento. Envolve culpa.

Infelizmente, a personagem Joana não é muito explorada no livro, por ser uma obra tão intimista e tão focada nas percepções e sentimentos da própria protagonista, que também é a narradora. Apesar de ser uma ausência perfeitamente justificada, as cenas das duas — especialmente as mais íntimas e sugestivas — são tão delicadas e belas que é difícil não querer ver mais. Entretanto, Controle é um livro que se mantém muito fiel ao seu propósito e não desvia do seu rumo. O que vemos é o que ele se propõe: uma jornada pessoal de crescimento e autodescoberta da Maria Fernanda. Isso também traz uma coerência muito grande à protagonista, que é em geral uma figura extremamente autocentrada.

“Bem no centro da lápide estava o nome dele numa letra perturbadoramente simétrica, com a data da morte logo abaixo e, por último, fora daquela simetria toda, a frase maior que o nome, dividida em duas partes: LOVE WILL TEAR US APART. Meus olhos se afundaram na imagem e pude ver meu próprio reflexo por trás daquela história. Depois sumi por um tempo. O que aquilo queria me dizer? Por que o amor tinha que ser um tipo de martírio? Por que as pessoas realmente se arrebentavam por causa de amor?”

Controle cheira a romance de formação, mas é só na reta final que temos a chance de ver a protagonista sair da sua nuvem de amargura e autocomiseração e começar a realmente viver. Isso me deixou com um gosto amargo na boca e uma sensação muito grande de tempo desperdiçado, ao mesmo tempo que traz, em alguma medida, a mensagem que essa parte final do livro quer obviamente passar: nunca é tarde demais. E isso se desenrola em um final intenso e catártico que é muito satisfatório de se ler.

O livro é uma leitura gostosa e rápida para quem não tem medo de sentimentos. A protagonista não é especialmente gostável, mas é realista: o retrato de uma menina que cresce frustrada por suas limitações, solitária e sufocada pelos próprios medos e pela superproteção dos pais. E, melhor de tudo: uma menina que supera isso e se reconstrói para alçar novos voos. Controle não é um livro perfeito, mas é delicado e muito sensível — definitivamente uma ótima estreia da autora no mundo dos romances.

Ficha técnica - Controle: 5 estrelas

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Companhia das Letras.


** A arte em destaque é de autoria da editora Paloma.

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