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Cidade das Garotas: uma história de sexo e liberdade

Cidade das Garotas é livro mais recente de Elizabeth Gilbert, publicado no Brasil em 2019 pela Alfaguara, parte do grupo Companhia das Letras. O livro acompanha a história de Vivian Morris desde os 19 anos, quando ainda é uma jovem rica, mimada e rebelde, até a terceira idade. Na obra, narrada por uma Vivian idosa em 2010 e endereçada uma mulher chamada Angela cuja identidade só conhecemos no final do livro, a vida da protagonista se mistura e dialoga com o cenário da cidade, e as transformações que esse espaço sofre com o passar do tempo, abarcando os períodos imediatamente anterior, contemporâneo e posterior à participação dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial.

Encontramos Vivian pela primeira vez em 1940, quando a jovem de 19 anos é posta pelos pais em um trem com destino a Nova York, onde vai morar com sua tia Peg. Peg é proprietária do decadente teatro Lily Playhouse, localizado em uma rua obscura de Midtown Manhattan, onde produz e dirige peças populares frequentadas principalmente pelos moradores da vizinhança, em uma era anterior à popularização dos aparelhos de televisão. Diversão simples e acessível seguindo sempre a mesma estrutura é o que se encontra dentro do prédio deteriorado do Lily Playhouse; e assim o pequeno teatro segue, mês após mês, lutando para pagar as contas.

Vivian é despachada de casa pelos pais após ser convidada a se retirar de Vassar (universidade feminina de elite localizada em Poughkeepsie, Nova York) por seu fraco desempenho acadêmico. A razão do fraco desempenho acadêmico dela não é falta de capacidade, mas falta de interesse. Vivian está muito mais interessada em se esgueirar para fora do dormitório toda noite para encher a cara do que em estudar, e encerra o ano como a última da sua turma. É assim que ela se vê em um trem com destino a Nova York, com uma mala imensa, sua máquina de costura e vestindo o vestido azul feito por ela especialmente para a ocasião.

Um fato definidor da personalidade de Vivian, e possivelmente uma das únicas características dela que se mantém estável ao longo do livro, é seu amor pela moda e pela costura, herdado da avó excêntrica, mãe de seu pai e de sua tia Peg. A moda para ela é claramente mais do que uma paixão, é um elo que a conecta com a avó já falecida, é sua forma de se colocar no mundo, é sua arma.

É essa versão imatura e rebelde de Vivian que acompanhamos durante aproximadamente a primeira metade do livro. Pela primeira vez no coração da cidade mais eletrizante do mundo, sem ninguém que tente controlá-la, Vivian se entrega a uma vida de esbanjamento e liberdade, inclusive sexual. Apesar de ainda ser virgem ao chegar à cidade, ela logo dá um jeito de “resolver a situação” com ajuda das coristas do Lily Playhouse, dando início a uma vida de exploração da própria sexualidade, que é outra característica marcante da personagem, apesar de ela só descobrir mesmo os prazeres do sexo quando conhece seu primeiro amor, Anthony Roccella. Acompanhamos as experiências dionisíacas da jovem, sempre ao lado de sua nova melhor amiga Celia Ray, corista promovida a atriz do Lily Payhouse, por uma Nova Iorque vibrante, intensa, e banhada de liberdade sexual.

“Mas quando a guerra terminou, eu já tinha posto um ponto-final em tudo aquilo. Acho que teve algo a ver com meu irmão ter morrido e com a crença sofrida de que aquilo havia acontecido sem que ele nunca tivesse aproveitado a vida. A guerra havia me incutido o entendimento de que a vida é ao mesmo tempo perigosa e fugaz, e portanto não faz sentido se negar a ter prazeres ou aventuras enquanto se está aqui.” (p. 339)

A minha impressão é que Cidade das Garotas é a justaposição de dois livros muito desiguais. Na primeira metade, acompanhamos muito detalhadamente a trama que apontamos até aqui. Assistimos às idas e vindas de Vivian enquanto explora a vida noturna da cidade e assume a função de figurinista das peças do Lily Playhouse. É também durante essa primeira metade que vemos a talentosa, chique e celebrada atriz teatral britânica Edna Parker Watson chegar com seu marido ao Lily, impedida de voltar à Inglaterra por conta da guerra. Uma coisa leva a outra e a equipe do Lily Playhouse se vê envolvida em uma empreitada para montar uma produção digna de Edna, e assim nasce a peça Cidade das Garotas. A peça estreia e é um sucesso como o Lily e Peg não conheciam havia anos. E tudo isso se passa no período de um ano, que ocupa cerca de 230 páginas do livro. Não é à toa que eu achei essa primeira parte muito mais repetitiva e arrastada, por vezes até um pouco monótona, por mais que relate a fase mais intensa, ousada e exuberante da vida da personagem.

Então, chegamos de forma muito inesperada a um acontecimento polêmico (de cunho sexual, combinando perfeitamente com o conteúdo do livro como um todo) que representa um divisor de águas não apenas na trama, como também na vida da protagonista. Pela primeira vez na vida Vivian vai ser obrigada a realmente encarar as consequências dos seus atos. Vou me abster de estragar a surpresa porque esse spoiler não é realmente necessário, mas é nesse ponto que começa o que eu identifiquei como a segunda parte do livro, que tem um ritmo e um tom bem diferentes do primeiro. É nessa segunda metade (“metade”, melhor colocando, já que tem menos páginas do que a primeira) que é contada todo o resto da história da personagem ao longo dos quase quarenta anos seguintes.

Cidade das Garotas

Cidade das Garotas não tem nenhuma divisão explícita além dos capítulos, e essa separação foi apenas uma observação minha. Apesar disso, ao meu ver, é essa segunda metade que faz a leitura realmente valer a pena. É surpreendente que essa parte não seja corrida, considerando o longo período retratado, especialmente em comparação com o curto período que ocupa a maior parte da trama. É a partir do que eu considero o grande acontecimento do livro que a história e a própria personagem de fato começam a se aprofundar e a se tornarem mais interessantes e envolventes.

Até então, Vivian não é uma personagem muito cativante, se mantendo em uma superficialidade vazia e hedonista que não conseguiu me conquistar. As coisas continuam nesse pé até que conhecemos o que parece ser uma nova personagem, à medida que ela escolhe fugir de volta para a casa dos pais e se afunda em um processo depressivo, determinada a se conformar às expectativas sociais e deixar para trás o ano vivido no Lily. É nessa derrocada e depois na sua recuperação que o leitor, e possivelmente a própria personagem, começa a descobrir quem realmente é a Vivian para além da vida de prazeres que ela vivia em Nova Iorque. Mesmo depois de voltar à cidade, já durante a guerra, Vivian nunca mais volta a ser a mesma e finalmente temos contato com outras camadas que a formam. É muito evidente e muito explícito como o acontecimento central de Cidade das Garotas marca a protagonista pelo resto da vida.

Apesar disso, fica muito claro que os dois traços que marcam a personagem desde o começo continuam presentes: o amor pela moda e o amor pelo sexo, além da sua independência notável. Só que nenhuma dessas coisas tem conexão necessária com a vida de frivolidades que ela leva durante a primeira parte do livro, e todas elas assumem uma forma muito diferente no restante da obra. Se, no começo, Vivian não passava de uma menina voluntariosa, mimada e egoísta, no final nos deparamos com uma mulher madura, trabalhadora e autossuficiente.

Uma característica de Cidade das Garotas que me chamou muito a atenção é a falta de qualquer arco romântico dentro dos moldes tradicionais. Durante a primeira fase do livro, o único relacionamento fixo propriamente romântico que a personagem desenvolve é sua paixão avassaladora por Anthony Roccella, o protagonista da peça Cidade das Garotas. Os dois vivem um caso intenso e típico da juventude, que acaba de forma dramática logo antes do ponto de virada do livro.

‘”O mundo não é plano. Você cresce achando que as coisas são de certa maneira. Acha que existem regras. Que as coisas têm que ser de um jeito. E você tenta viver em linha reta. Mas o mundo não liga para as suas regras ou as suas crenças. O mundo não é plano, Vivian. Nunca vai ser. Nossas regras não significam nada. O mundo simplesmente acontece com você de vez em quando, é isso que eu acho. E as pessoas têm que seguir por ele da melhor forma possível.”‘ (p. 385)

Na segunda metade, já quase chegando ao final do livro, surge o outro relacionamento amoroso e responde ao “mistério” acerca da identidade da Angela, a quem todo o relato é endereçado. Dessa vez, não se trata de uma paixão avassaladora. Vivian já está muito mais madura, já encontrou seu rumo na vida e o tempo de arroubos apaixonados passou. Ainda assim, é um relacionamento emocionalmente intenso, mas que eu não tenho certeza se pode ser qualificado exatamente como romântico. O que vemos é uma conexão profunda, uma entrega e um companheirismo que chega a causar algum estranhamento por ser diferente de tudo o que eu já tenha visto até então. É muito interessante ver esse relacionamento de desenrolar, de forma quase secreta, durante um período considerável, no limite entre o lícito e o ilícito.

Ainda que Vivian seja muito marcadamente o centro da história toda, algumas personagens secundárias merecem destaque, em especial Peg, Olive e Marjorie. Peg, com sua personalidade excêntrica e extremamente livre, e Olive, que é o seu completo oposto, são tão maravilhosas individualmente quanto como casal, mesmo que essa trama seja apenas mencionada de passagem. Marjorie Lowtky, que é uma das duas personagens que são recuperadas na segunda metade do livro e assume paulatinamente uma relevância muito interessante e surpreendente, é cativante de uma forma que a protagonista, mesmo depois da reviravolta, nunca chega a ser.

No geral, é possível dizer que Cidade das Garotas é um livro um tanto inconsistente, não pelo conteúdo em si, mas pela forma como é dividido e desenvolvido. A primeira parte do livro não chega a ser ruim, mas é muito inferior e mais arrastada do que a segunda, o que prejudica a obra no conjunto. Apesar disso, não deixa de ser um bom livro, e uma história que não se encaixa em nenhum molde esperado.

‘”Estou decepcionada com todo mundo”, Marjorie disse depois de uma longa pausa.
“Com quem exatamente?” Imaginei que fosse falar dos nazistas.
“Os adultos”, ela declarou. “Todo eles. Como foi que deixaram o mundo sair do controle dessa forma?”
“Não sei, meu bem. Não sei se alguém realmente sabe o que está fazendo.”
“Parece que não”, ela pronunciou com um desdém teatral, jogando o cigarro no beco. “E é por isso que fico tão ávida pra crescer, entende? Para não ficar mais à mercê de gente que não tem ideia do que está fazendo. Imagino que quanto antes eu tiver controle total das coisas, melhor minha vida vai ser.”‘ (p. 303)

Cidade das Garotas - informações e classificação

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Companhia das Letras.


** A arte do topo do texto é de autoria da nossa editora Paloma.

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